São Paulo em chamas caóticas esquinas
o edifício da Fiesp em ruínas
o céu-holograma desaba em pedaços
sobre a cabeça dos passantes
olho de lince
encaro a face da fera
maluco faroeste ao vivo e em cores
sábado que vem na Travessa das Dores
Deus está solto.
E dizem que Ele está armado.
sacanas amantes dos banqueiros
sugando esperma em troca de dinheiro
Lena sempre trazia vinho, um baseado, discos
de Bob Dylan e poemas sobre o lado escuro da lua
Nasceu em Araraquara/SP (1961). É poeta, escritor, jornalista e letrista de música brasileira.
Autor de livros de poesia, ficção e jornalismo, venceu o Prêmio Jabuti 2013, com A Voz do Ventríloquo (Melhor Livro de Poesia do ano). Pig Brother, o livro seguinte, ficou entre os finalistas do Prêmio Jabuti 2016.
Formado em jornalismo pela Universidade Estadual de Londrina, trabalhou como repórter e editor nos jornais e revistas Folha de Londrina, O Estado de S. Paulo, Jornal da Tarde, Folha de S. Paulo e Marie Claire. Co-editou as revistas literárias K’an e Coyote, junto com os poetas Marcos Losnak e Rodrigo Garcia Lopes.
No livro Faróis no Caos (2012) reuniu as melhores entrevistas que realizou, ao longo de 25 anos, com grandes poetas, escritores e compositores brasileiros, como Augusto de Campos, Paulo Leminski, Roberto Piva, Itamar Assumpção, Luis Melodia e Caetano Veloso.
Como letrista, tem parcerias gravadas em discos com alguns artistas da música brasileira como Itamar Assumpção, Edvaldo Santana, Madan, Bernardo Pellegrini, Renato Gama e Ney Matogrosso, e com as cantoras Maricene Costa, Patrícia Amaral, Titane, Mona Gadelha e Jordana.
Gravou os cds de poesia e música Rebelião na Zona Fantasma e Viralatas de Córdoba – este último com sua banda Fracasso da Raça, com a qual tem se apresentado em diversas cidades.
Poemas e contos de sua autoria foram traduzidos para o inglês, espanhol e alemão, e publicados em livros e revistas na Argentina, México, Peru e EUA. Participou de exposições de poesia visual na França, Austrália e Portugal.
Suas publicações mais recentes são Risca Faca, Deus Salve a Rainha e Evite Engarrafamentos – Textos de Jornalismo Cultural e Um Nome Escrito no Vento (todos em 2021).
Livros
CDs
Antologias
Músicas gravadas (letras)
Curadorias
Premiações
A cidade não para
A cidade só cresce
O de cima sobe
O de baixo desce
Chico Sciense
O poema, com seus cavalos,
quer explodir
teu tempo claro; romper
seu branco fio, seu cimento
mudo e fresco.
João Cabral de Melo Neto
1
Entro no meu poema
como quem suja as mãos.
Não tem trema, não tem métrica,
não tem esquema,
na paisagem trêmula
(do poema),
tem treta com a polícia,
tiros na surdina das noites,
sangue, urina, esperma,
vísceras lambidas
por língua de cão,
cheiro de pólvora na carne,
não-deserto, não-arquitetura, brisa seca,
cimento-sim, concreto
lavado de sangue,
tripas, tendões,
músculos
tingidos pela mesma água podre,
densa, espessa,
imagem invertida,
no espelho
que sempre se embaça,
imagem
que nunca se alcança.
2
Mas, calma, vendaval,
furacão,
vamos de parte em parte,
até o osso, medula,
costela,
e o que recobre tudo,
futuro pasto de vermes,
matéria
pronta pra combustão.
Sim, por partes,
que todos sabemos,
a vida é breve,
e o que sobra é arte,
se tanto,
gesto pleno de espanto.
3
De parte em parte,
sem pressa, sem rebuliço,
a carne, por dentro,
expõe seus vícios,
planta vistosa, raízes
quebradas
na terra devastada.
4
Não há pureza na palavra
bala. Faca enferrujada,
lâmina cega. Não há pureza
na palavra estéril,
(tão suja de história)
picos de febre, projétil
lançado em direção ao corpo
(ao nada)
que ainda vibra,
por um segundo ou mais.
Corpo, carne,
que vai se decompor,
exalando o fluido pútrido,
o bolor adocicado do açúcar da cana,
pele viva sobre o asfalto pedra
(a exatidão da palavra
fóssil),
(o engenho da palavra
agronegócio).
5
A palavra pele
incita a música, a flauta vértebra.
A palavra pele
ainda viva, cascos em trote louco
nas madrugadas.
Não há refúgio, Senhor dos Desertos.
Há travestis, talhos de gilete,
garotas chocantes engolindo nuvens,
batedores de carteiras, biriteiros
e golpistas (engrenagens vivas
na maquinaria da noite).
Há palavras travestidas,
(plumas)
que também apodrecerão,
bananas esquecidas na geladeira,
morangos mofados na fruteira.
6
Aviões colidem no céu
de brigadeiro,
fuselagens espatifadas,
ferrões de abelhas clonadas,
mosquitos transgênicos,
soja contrabandeada.
Os cavalos da poesia
querem explodir o tempo escuro,
romper o hímen opaco,
a mentira engendrada
nas manchetes dos jornais.
(O descuido será pago
com a semente da podridão,
outro sonho passou, deixando
trapos, fraturas expostas
e coágulos de trapaças.)
7
Na tela do computador
se trava uma guerra
contra a morte dos líquidos
no corpo ainda vivo.
O corpo, seus líquidos,
lágrima, suor, esperma,
água de engrenagens vivas
sob o sol amarelado
posto no lixo, descartado.
Na tela do computador
palavras valsam a dança de Shiva,
a dança da chuva,
a dança do feiticeiro esquimó
(a ninfa febril subindo aos céus
com seu manto de plumas,
trovões e tempestade
desabando sobre a areia do deserto).
Na tela do computador
o vendaval derruba cercas
e nunca cessa antes da hora.
8
A camisa vazia
vestia um vivo
antes do zunido da bala.
Talvez um morto-vivo
mas ainda vivo.
Talvez neblina de crack
devorando o corpo, estátua
catatônica, flashs,
luzes negras sob nuvens negras,
um corpo (seu acúmulo
de memórias) germinando
os vermes
que o devorarão.
A camisa vazia
que o vivo antes vestia
não era um manto de plumas,
não era sequer um manto
de Artur Bispo do Rosário,
um gesto, talvez insano,
que tornava o morto
(quando ainda vivo)
quase transparente.
Não só a camisa
mas a calça também vazia,
o espaço, onde o gesto
do ainda vivo, agora
também vazio.
9
E como seria o voo
do pássaro
sem o pássaro?
Qual seria o tempo
do deserto
sem o tempo?
Quando a miragem
do nômade
antes da sede?
Antes que o tempo
do voo
fosse asa?
Como a morte
do vivo
sem a bala?
10
Calma, poeta, muita calma
nessa hora,
senão (ainda) vão botar defeito,
e vão será o efeito,
do ritmo, istmo, irregular,
símile do pulso
cada vez mais fraco,
no corpo (sangue)
estirado no chão.
*****
TOQUE CRÍTICO
Em Parapsicologia da decomposição, Ademir canta e decanta o corpo. Canta ao tomá-lo como mote. Como metáfora da poesia. Decanta-o ao separar-lhe o que é impureza. As misturas de asfalto e sujeira ao corpo que se esfacela, esfarela, derrama, decompõe: “pele viva sobre o asfalto pedra / (a exatidão da palavra / fóssil), / (o engenho da palavra / agronegócio)”.
O suplício do corpo de um indivíduo é o suplício coletivo de uma nação arruinada, com “bananas esquecidas na geladeira, / morangos mofados na fruteira”.
A poesia, que aqui se apresenta como poesia-denúncia, nem de longe é a poesia digestiva, fácil, didática e panfletária. É a poesia-valise: linguagem-bomba que explode ao contato de coração e mentes desassossegados. Antes: em ebulição.
Amador Ribeiro Neto
*****
Parapsicologia da Decomposição (plaquete), Especto Editorial (2017)
DOIS FRAGMENTOS
“Eu era um homem que se fortalecia na solidão;
ela era para mim a comida e a água dos outros homens.”
Charles Bukowski
07.04.2008 (segunda-feira)
Estou 470 passos morro acima. Escuto o marulho do Atlântico lá embaixo. Vejo as luzes vacilantes das casas. Uma mariposa morreu com a cabeça esmagada quando fechei a porta da sala. Continua lá, colada no madeirame branco. Há dezenas de morcegos no forro da casa. Eles chiam durante a noite e se arrastam pelo forro. No final da tarde dezenas deles saíram em revoada. Um após o outro se lançavam no espaço negro com suas asas negras. A vista daqui de cima é muito bonita, não há como negar. Mas os ruídos dos morcegos se arrastando pelo forro me incomodam durante a noite.
Depois de tantos anos ainda não sei como começar um poema. Não faço a menor ideia. Não sei se Billy Pilgrim sabe. Creio que não. Tudo o que ele sabe é se deslocar no tempo e ser abduzido por discos voadores de Tralfamador. Num instante Billy está nos arredores de Dresden durante o bombardeio das Forças Aliadas em 1945. Em outro instante está dirigindo seu Cadillac nas ruas de Ilium rumo a um almoço de veteranos do Vietnã no Lions Club. Billy abre e fecha as pálpebras e agora é um repórter cobrindo a morte de um ascensorista, esmagado pelo elevador, numa tarde de 1942.
Eu também já fui um repórter e cobri muitos acontecimentos. Talvez eu seja ainda. Talvez ainda haja acontecimentos. Preciso perguntar a Billy Pilgrim. Talvez eu simplesmente esteja ficando lelé da cuca. Preciso me lembrar de também perguntar isso a Billy Pilgrim.
Eu tenho muitas dúvidas. Sou geminiano. Um inferno. Por exemplo: neste momento não sei se permaneço nesta casa ou me mudo pra outra. Aluguei esta casa ontem. Ela fica 470 passos morro acima e tem uma vista muito bonita. Daqui de cima eu ouço o mar e vejo as luzes vacilantes das casas lá embaixo. Estou escrevendo à noite. São exatamente 21h54. Durante o dia eu vejo o mar e o pontão de pedras que avança dentro das águas como um pau duro. A casa é confortável, devo admitir. Mas tem morcegos no forro. E eles fazem muito barulho durante a madrugada.
Tem mais uma coisa: a casa é toda de madeira. Quando bate o sol, esquenta como um forno. E tem os 470 passos morro acima. Não é bolinho. Mas a sala é toda envidraçada. Tem uma porta dupla que se abre para uma bela varanda. É uma casa simples, de madeira, mas muito confortável. O problema é que ela tem morcegos no forro. Isso você já sabe. Eu também. Não sei se Billy Pilgrim sabe. Neste momento ele está preocupado com os homenzinhos verdes parecidos com desentupidores de pia.
Se você quer saber, eu estou no alto do morro sozinho e não estou com medo. Talvez alguém queira saber como vim parar aqui. Simples, pedi demissão do emprego e resolvi me isolar numa praia deserta, tão longe quanto possível dos acontecimentos do mundo. Sei que não é possível. Os acontecimentos continuam acontecendo. Por exemplo: agora pouco um besouro gordão e todo verde-metálico pousou na porta da sala. Eu o observei durante alguns minutos. Depois me sentei no sofá ouvindo Keith Jarrett e lendo Matadouro 5. Queria saber em qual encrenca Billy Pilgrim estaria metido. O besouro gordão resolveu levantar voo e veio para o meu lado. Eu o acertei com a capa de Matadouro 5. Não acertei pra matar. Só queria deixar claro que não estava a fim de aproximações.
Talvez eu não devesse me incomodar com os morcegos e continuar nesta casa.
Além de pedir demissão do emprego, eu decidira parar de fumar e terminar um livro nesta casa, longe dos acontecimentos. Ainda não parei de fumar, nem comecei a terminar o livro. Tudo bem. Estou aqui há apenas duas noites. Ainda há muito tempo. Pelo menos, aluguei esta casa e estou bem longe dos acontecimentos. Daqui da sala eu posso ouvir o marulho do Atlântico e ver as luzes vacilantes das casas lá embaixo. O besouro gordão não voltou. Acho que entendeu a mensagem.
Eu pretendia também escrever um poema quando comecei este diário. Não rolou. Nem sempre rola. Os morcegos estão quietos agora. A casa está bem agradável. Vou aproveitar que os morcegos estão quietos para dizer que nunca acreditei em textos em linha reta. Por acaso a vida é assim: em linha reta? Por que os textos seriam diferentes?
Caramba! O besouro gordão está de volta. Fico feliz que ele não esteja morto, mas espero que tenha entendido a mensagem. Não estou a fim de aproximações. Espero que os ecologistas não entendam isso como uma heresia. O besouro gordão e todo verde-metálico pode ficar na porta da sala, sem problemas. Só não quero que venha para o meu lado.
O problema é que besouros, normalmente gordões, mas nem sempre verde-metálicos, são esquisitos. Eles procuram se aproximar da lâmpada acesa e acabam queimando suas patas. Será que depois de tantas gerações ainda não sabem que lâmpadas acesas são quentes? Parece que não. Este, pelo menos, encosta na lâmpada, se queima e desce ziguezagueando para o meu lado, como um helicóptero abatido por um bombardeiro americano durante o ataque de Dresden.
Além do marulho do Atlântico lá embaixo estou ouvindo neste momento Lee Konitz, Keith Jarrett, Chet Baker e Bill Evans tocando juntos num compact disc que baixei pela internet alguns dias antes de vir para esta casa, longe dos acontecimentos do mundo. Talvez muitas pessoas tenham curiosidade sobre os objetos que cercam um poeta quando ele está escrevendo. Pois bem. Estou escrevendo numa mesa circular de madeira branca. Em cima da mesa tem um exemplar de Enterrem meu coração na curva do rio, uma caixa de fósforos, um cinzeiro com 13 bitucas, uma lanterna, um celular desligado, um Ray-Ban falsificado, as chaves do carro e uma lata de cerveja.
E os acontecimentos continuam acontecendo. Quando levantei da cadeira para apanhar a lata de cerveja na geladeira acabei pisando, sem querer, no besouro gordão e todo verde-metálico. Besouro azarado. Ele não devia ter voltado.
10.04.2008 (quinta-feira)
Quando se faz as perguntas certas as respostas podem vir de lugares que ninguém imagina.
Por exemplo: você se pergunta em 2008 se está ficando lelé da cuca e a resposta vem lá de 1961: Ficando não, sempre foi, como todos os demais. A diferença é que agora você está tomando consciência disso. Mas não se preocupe, pelo menos você nunca despejou toneladas de bombas e gasolina gelatinosa sobre alguma cidade matando mais de 135 mil pessoas em nome de Deus, da Pátria e da Civilização.
*****
A cadela continua por aqui. Pulou em cima de mim, fazendo festa, quando abri a porta do quarto pela manhã. Dei-lhe um nome: Montana. Em homenagem a uma atriz pornô sequestrada por tralfamadorianos.
*****
Talvez, em algum momento, este diário se transforme naquilo que os críticos, o público e os próprios escritores chamam de romance. Não seria má ideia. Seria sobre um poeta que resolve pedir demissão do emprego e se refugiar por dois meses, sozinho, numa casa de praia. Ele acaba descobrindo que está ficando lelé da cuca — como todo mundo. O livro faria muito sucesso no Brasil, seria traduzido para 37 idiomas, inclusive o inglês, adaptado para o cinema, com direção de Sean Penn, o roteiro valeria um Oscar, eu faturaria 7 milhões de dólares e poderia comprar uma casa na praia sem morcegos no forro.
Nada mal, nada mal. Vou pensar na possibilidade. Vou pensar seriamente, mais tarde. Agora preciso preparar meu próprio almoço.
*****
Montana se foi e deixou uma pulga que acabei de esmagar com o polegar e o indicador. Pensei um pouco enquanto preparava o almoço e resolvi mesmo transformar este diário num romance, seja lá o que isso signifique. Alguns milhões de dólares não me fariam mal. Vou fazer a minha parte. Deus e Sean Penn que façam a parte deles.
O romance começa assim: um raio rachou o céu de ponta a ponta e seu estrondo ecoou durante 37 segundos, no ano de 2008, na Praia Brava. Quando o raio estourou, há milhares de anos, a Praia Brava não era como é hoje em dia, nem tinha esse nome, simplesmente porque não havia ninguém na face da terra para dar-lhe um nome.
Estava rolando uma tremenda guerra no Céu. Num surto de megalomania, Deus resolveu criar o universo e no centro dele colocar uma espécie que chamaria de espécie humana. Uma legião de Querubins, Serafins e anjos menores era contra a ideia. Os anjos diziam que Deus havia surtado e que a ideia da criação de uma espécie chamada humana daria numa grande merda.
— Vocês estão errados — disse Deus. — Eu criarei essa espécie à minha própria imagem e semelhança.
— Então. Vai dar merda — retrucou Lúcifer, líder da legião dissidente.
Lúcifer era um estrategista de primeira, muito lúcido e bem-humorado, um fanfarrão, mas ainda desconhecia, naquele tempo, o profundo mau humor de Deus.
Deus considerou a pilhéria de Lúcifer uma ofensa capital. Enfurecido, expulsou todos os anjos dissidentes do Céu. Houve uma revoada de anjos caídos. Eles despencaram do Céu diretamente para um lugar que passou a ser chamado de Inferno.
Os homenzinhos e mulherzinhas de Tralfamador assistiam à cena extasiados, como se estivessem diante de uma peça shakespeariana dirigida por Antunes Filho. É claro que nem Shakespeare nem Antunes Filho existiam nessa época e, se existissem, não significariam absolutamente nada para os habitantes de Tralfamador.
O narrador do romance será Kurt Vonnegut, um replicante Zircon-212 criado a partir de células-tronco de Marlon Brando, Joseph Conrad e Francis Ford Coppola. Kurt escreveu muitos livros e foi um dos poucos sobreviventes do bombardeio que destruiu a cidade de Dresden durante a Segunda Guerra Mundial. Não teve a oportunidade de presenciar a batalha original no Céu, mas, se estivesse lá, certamente seria aliado dos anjos rebeldes e diria a Deus que a criação da espécie humana daria numa grande merda. Sua opinião não seria ouvida e ele também seria deportado para os quintos dos Infernos, junto com todos os anjos caídos, onde fatalmente, mais cedo ou mais tarde, encontraria Dante Alighieri.
Kurt escreveu um romance que termina com um passarinho perguntando para Billy Pilgrim: piu, piu, piu? Este aqui vai terminar com algo como: a chave está no matadouro 5. Ainda não decidi qual chave e nem para que ela serve. Vou pensar nisso mais tarde. Mas entendam como uma dica para os resenhistas e críticos literários da USP e da UFRJ, discípulos de Antonio Candido e de Flora Sussekind. Para o crítico Paulo Franchetti, da Unicamp, não darei dica nem chave nenhuma, pois sei que ele detesta tudo o que escrevo. Piu, piu, piu.
*****
Outra coisa: este romance vai incorporar vários acontecimentos (não todos) que estão acontecendo enquanto ele é escrito. Por exemplo: acabou de despencar uma jaca no meio do quintal de Mata Atlântica e eu voltei a sentir um calafrio de ponta a ponta da espinha. O barulho me assustou. Não pense que é moleza ficar sozinho numa casa sem morcegos, no meio de uma pequena Mata Atlântica, longe dos acontecimentos. Pedir demissão do emprego é fácil, mas ficar sozinho nesta casa, não. Se algo me acontecer, mais cedo ou mais tarde todos vão saber. Se o mundo acabar, eu também ficarei sabendo, mais cedo ou mais tarde.
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Para os menos atentos, este romance é sobre um poeta que estava ficando lelé da cuca e resolveu se isolar numa praia, longe dos acontecimentos.
Essa é a merda. Quando alguém resolve falar ou escrever ou mesmo ficar quieto num canto, geralmente é mal interpretado. Mas eu vou gritar com toda a força dos meus pulmões: NÃO É NADA DISSO. ESTE ROMANCE É SOBRE O TEMPO. ENTENDEU?
Eu e Billy Pilgrim sabemos que há muitas coisas acontecendo em Nova York, Paris, Istambul, Nova Dheli, Frankfurt, Viena, Diamantina, Turim, Bruxelas, Bagdá, Jerusalém, São Paulo, Salvador e Rio de Janeiro, mas, neste momento, eu simplesmente estou bebendo uma cerveja e fumando um cigarro numa praia, longe dos acontecimentos.
Montana não voltou e eu sinto saudades do besouro gordão e todo verde-metálico.
*****
O segundo capítulo do romance será bem curto e lacônico. Assim:
Confrontando-se com o Arcanjo Miguel, ao som de um blues de Robert Johnson, num tribunal em zona neutra, Lúcifer diz: “Deus é chato e previsível pra cacete.”
— Previsível? Jamais. Qual Pai condenaria seu próprio Filho à morte na Cruz? — retruca Miguel.
— Então, acrescenta aí — diz Lúcifer, se dirigindo ao escrivão do tribunal: — Ele é também um maníaco cruel.
*****
TOQUE CRÍTICO
Poeta, ficcionista e letrista, Ademir Assunção é um dos poucos autores do nosso mainstream que passeiam prazerosamente por territórios esnobados pela crítica especializada, entre eles a ficção erótica e a científica. Notei esse detalhe duas décadas atrás, ao ler sua estreia na prosa, o volume de contos A máquina peluda, lançado pela Ateliê Editorial.
A ficção erótica e a científica também estão presentes no segundo romance de Ademir, Ninguém na Praia Brava, escrito em forma de diário de viagem. Nada ortodoxo, é claro. O sistema binário linguagem-metalinguagem é novamente o centro gravitacional, agora dessa narrativa movida principalmente pela potência do tropicalismo e de outras contraculturas.
Se fosse mais um exemplo de autoficção protagonizada por um escritor branco, hetero, de classe média, dissertando sobre o próprio umbigo, não seria um romance de Ademir Assunção. Escritores célebres − Dante, Joyce, Gertrude Stein e Haroldo de Campos − não visitariam o herói. Não haveria personagens femininas chamadas Nada e Nunca. Jeová e Lúcifer não jogariam xadrez no pontão da Praia da Fortaleza. Talvez mais importante que tudo isso: Kurt Vonnegut e Billy Pilgrim não teriam um papel fundamental na trama.
Luis Braz
*****
Ninguém na Praia Brava, Editora Patuá (2016)
A QUEDA
O avião parado na pista de aterrisagem parecia um pênis ereto pronto para levantar vôo e penetrar na carne macia das nuvens.
A frase surgiu do nada, inteira, quando Eu atravessava a porta de vidro do portão 2. Uma boa frase para iniciar um capítulo do meu próximo livro — Eu pensou. Sem titubear, enfiou a mão direita no bolso do paletó, alcançou o bloco de anotações e anotou, palavra por palavra, enquanto caminhava pela pista, rumo ao boeing da Vasp. O céu estava limpo, de um azul escandaloso. Nem uma nuvem sequer.
No meio do caminho desta vida
me vi perdido numa selva escura
solitário, sem sol e sem saída.
Eu não estava perdido, apenas meio doido devido ao baseado que fumara antes de sair do apartamento, e não fazia a menor idéia por que raios surgiram em sua mente aqueles versos de Dante Alighieri no momento em que o boeing da Vasp começava a penetrar na carne das nuvens. Era o início do Canto I do Inferno, Eu sabia. Lera a tradução por acaso, na casa de um amigo, o livro dando sopa dentro do bidê, enquanto defecava uma pasta marrom e mal-cheirosa. Nunca mais esquecera aquele fluxo de palavras, uma percutindo na outra:
Tal como a gente rica perde a cor
quando sente a fortuna abandoná-la,
que só sabe chorar a sua dor,
assim a fera me deixou sem fala,
e, vindo ao meu encalço, a Loba atroz
me encurralava lá, onde o Sol cala.
De qual porão escuro e empoeirado do cérebro surgem estas lembranças, repentinas como o bote de uma cascavel, fragmentos escritos há séculos por um homem talvez caolho e corno, sabe-se lá a que horas do dia ou da noite, sabe-se lá se embalados pela embriaguez de um bom vinho ou se desenhados pelo labor árduo e sistemático de um gigante que domina todos os truques da arte da escrita? E que estranho processo de transmigração de idéias se desencadearia secretamente fazendo com que os versos pensados por um homem imerso nas trevas do século 13 chegassem até minha cabeça exatamente neste momento em que estou sentado na poltrona de um boeing, a 7 mil metros de altura, voando rumo a São Paulo? Mesmo estes pensamentos, por que me invadem, por que fazem do meu cérebro uma câmara de ecos repetindo frases que eu jamais ouvi? Será que existe um narrador onipresente capaz de orientar todas as atitudes, os desejos, os medos, as dúvidas e até os pensamentos de todos os personagens deste planeta, estejam eles onde estiverem, sem que essas pobres criaturas saibam ou sequer se dêem conta? Será que este narra
Os pensamentos de Eu foram bruscamente suspensos, como os de um guilhotinado, o baque surdo da lâmina ainda nos ouvidos, os olhos esbugalhados olhando o espasmo de pavor e gozo da multidão.
Primeiro fez-se um estrondo. Depois um solavanco violento. Em seguida, urros de pânico, gritos desesperados, gemidos, súplicas de socorro. O avião sacudiu tão forte que muitos passageiros tiveram seus corpos arremessados em direção à poltrona da frente. Pessoas se agarravam, as unhas cravadas no braço do desconhecido ao lado, invocavam o nome de Deus, gritavam que não queriam morrer. Seriam capazes de qualquer pacto para salvar a pele. De sua cadeira, bem ao lado da asa direita do boeing da Vasp, Eu conseguia ver um homem de terno e gravata, decerto rico, perdendo a cor.
Eu sentia o coração batendo dentro dos tímpanos, um fluxo nervoso, líquido grosso, viscoso, pronto para entrar em erupção e ser lançado por todos os poros, por qualquer fenda possível. O pânico tornava a mente uma televisão descontrolada, flashes explodiam numa sucessão vertiginosa de imagens e estilhaços de frases, bombas de significado que transformavam paisagens em ruínas. Sei que cheguei ao pé de uma montanha, lá onde aquele vale se extinguia, que me deixara em solidão tamanha. Como na tela mental de um suicida que rememora em fração de segundos todas as cenas marcantes de sua vida enquanto despenca do 15º andar até chegar ao auge da saturação suportável, subitamente Eu sentiu o corpo inteiro relaxado, tronco e membros moles, a cabeça mergulhada na brancura de uma folha de papel intacta. Então a angústia se calou, secreta, lá no lago do peito onde imergira a noite que tomou minha alma inquieta.
Foi quando viu um senhor de barbas brancas, em pé na extremidade dianteira do corredor do avião. A sua frente, um jovem de cabelos longos, loiro, de costas. Entre os dois, uma mulher vestida apenas com uma canga transparente. Os dois discutiam, a mulher observava, lânguida, sensual, olhos de deusa egípcia. Uma loira lindíssima, cabelos longos, repicados nas pontas, um certo ar selvagem.
— Eu lhe dei a luz, Filho. Não se esqueça que deve a mim tudo o que você é.
— Eis o motivo da minha revolta. Você vive cobrando o que deu a mim, a todos nós. Você me criou, mas eu não sou seu escravo.
— Eu os criei por amor, Filho.
— Ou por medo da solidão?
— Eu existo acima do medo, da solidão e da dúvida. Você sabe disso.
— Então por que Vossa Excelência se enfurece tanto à menor menção de que queremos traçar nossos próprios caminhos?
— Não seja irônico, Filho.
— Teremos que viver eternamente sentados nestes tronos tediosos, respeitando a estúpida hierarquia celeste, criada por um Pai misericordioso? A verdade é que você teme o caos, desde o princípio. O caos é vida, meu Senhor. E você teme a vida porque não quer que as coisas fujam ao seu controle.
— Como você pode dizer que eu temo a vida se fui eu quem a criou?
— Esta hierarquia tediosa e estúpida não é vida.
— Então o que é a vida, caro Portador da Luz?
— Ei-la, bem a sua frente. Lilith é vida.
— Você não sabe o que diz. Esta mulher vai corromper tudo o que for vida. Vai trazer a dor, o medo, a inveja, a cobiça, a vingança. É isso o que você chama de vida? É esse caos de sentimentos mesquinhos, rasteiros, indignos? Eu criarei a humanidade e ensinarei a todos o caminho da felicidade eterna. Uma vida digna de criaturas moldadas a minha própria imagem e semelhança, verdadeiramente vivas, como eu e você.
— Oh, Grande Criador, Senhor Dos Destinos De Todas As Criaturas, Onisciente De Todos os Enredos, Aquele Que Pode Estar Em Todos Os Lugares Ao Mesmo Tempo, Sempre Pastoreando As Suas Ovelhas, Conduzindo O Seu Rebanho, Controlando Suas Ações E Até Mesmo Seus Pensamentos. Conheço a ladainha: No Princípio era o Verbo. Depois fez-se a Verborragia.
— Sua insolência me enfurece.
— E se essas criaturas moldadas a sua imagem e semelhança também se cansarem deste estado tedioso a que você chama de vida? E se elas resolverem comer do fruto do conhecimento? Se elas desejarem os prazeres da carne? Se elas quiserem pensar com suas próprias mentes? O que o Grande Pai Misericordioso fará com suas amadas criaturas? As expulsará do Paraíso com um anjo vingador empunhando uma espada de fogo? As destruirá com fogo e água? Mandará suas amadas criaturas imolarem seus próprios filhos como prova de fé? Mandará os Justos lavarem a honra do Pai com o fio da espada, sem poupar tanto homens como mulheres, tanto meninos como velhos, também os bois, ovelhas e jumentos? E aos que insistirem na desobediência, os ameaçará com torturas inimagináveis por toda a eternidade? É isto, Grande Pai Misericordioso?
— Minha misericórdia é que me faz suportar suas blasfêmias sem castigá-lo, Lúcifer.
— Não, você suporta minhas blasfêmias porque teme meu poder.
— Pobre Filho. Você não sabe o que diz.
— Você teme meu poder porque sabe que eu também sou capaz da Criação. Eu criei Lilith, a verdadeira mãe da humanidade.
— Esta mulher só trará promiscuidade e desobediência para a humanidade. Olhe para ela.
— Olhe você para Lilith. Por que nunca a olha de frente? Tem medo de desejá-la?
— Cale-se, Lúcifer.
— Você teme deixar sua condição divina pelo amor carnal de uma mulher? Você teme sentir as vibrações provocadas pelo corpo de uma mulher excitada? Você teme sentir vontade de penetrá-la?
O jovem de cabelos longos, loiro, foi arremessado dois passos para trás com a bofetada do senhor de barbas brancas. À distância, o velho não parecia tão forte. Assim que se recompôs, o jovem voltou a falar, quase gritando.
— Eu renuncio à minha condição celeste, meu Senhor. Prefiro a vida. Prefiro me misturar entre os homens e mulheres. Prefiro ser um deles. Me expulse, senhor, como você tornará a fazer com todos aqueles que ousarem te desobedecer.
— Eu te amo, meu Filho. Quero você ao meu lado.
— Eu também te amo, meu Pai, mas prefiro viver minha própria vida.
Antes que o senhor de barbas brancas pudesse retrucar qualquer coisa, o jovem de cabelos longos, loiro, foi sugado por um buraco que abriu-se na fuselagem do boeing da Vasp, e precipitou-se das alturas. Dezenas de outros jovens, muito parecidos, que até então não haviam sido notados por Eu, também foram sugados pelo buraco, e igualmente se precipitaram das alturas. Apenas a mulher vestida com a canga transparente permanecia diante do senhor de barbas brancas, olhando-o fixamente nos olhos. Com um fio de ternura na voz ela por fim falou ao senhor de barbas brancas:
— Eu ensinarei a todos a arte de amar.
Em seguida, também foi sugada pelo buraco aberto na fuselagem e precipitou-se das alturas.
Eu estava olhando fixamente o senhor de barbas brancas parado na extremidade dianteira do corredor do avião. Duas lágrimas deslizavam pelas suas faces lisas, cada uma vinda de um olho. O velho parecia muito triste e só. Eu sentia enorme compaixão pelo velho. Pensava em levantar-se e andar em sua direção, tomar suas mãos, beijá-las e enredá-lo num abraço. Estava mesmo quase se levantando quando sentiu a mão delicada apertando com força sua mão. Vai dar tudo certo, ouviu uma voz muito próxima do seu ouvido. Sim, vai dar tudo certo, respondeu, sem saber direito o que estava falando.
Pela janela do avião, Eu podia ver a pista de aterrissagem e sete caminhões do corpo de bombeiros estacionados nos gramados. Havia também ambulâncias e, mesmo à distância, era possível notar um clima de nervosismo entre aqueles homens de capacete e fardas vermelhas. Todos olhavam para o céu, em direção ao avião, de onde Eu olhava pela janela.
Quando meu pai morreu eu levei todos os livros dele para minha casa, Ela disse. Eu podia notar que Ela estava nervosa, nem tanto pelo tom que imprimia nas palavras, mas pela maneira como Ela apertava a mão de Eu. O avião balançou violentamente e Ela apertou a mão de Eu com mais força ainda. Estava quase machucando, para dizer a verdade. Eu adoro livros. Gosto de sentir o cheiro do papel, de deslizar os dedos pelas capas e lombadas. Ai, meu Deus do céu. O avião balançou com violência novamente. Eu adoro todos os livros do Beckett, Ela gritou, quase esmagando os dedos de Eu. Você leu Primeiro Amor? Acho genial a maneira que Beckett vai construindo e desconstruindo o enredo ao mesmo tempo, Ela gritou, ainda mais alto, quase histérica.
Os pneus do boieng da Vasp tocaram a pista de aterrissagem do aeroporto de Congonhas e os caminhões dos bombeiros e as ambulâncias dispararam atrás dele, todos com as sirenes desligadas.
Da sua poltrona, bem ao lado da asa direita do boeing da Vasp, Eu conseguia ver o homem de terno e gravata, decerto rico, ainda sem cor.
O homem de terno e gravata, decerto rico, ainda sem cor, foi o primeiro a saltar por sobre os passageiros sentados nas poltronas vizinhas e correr para a extremidade dianteira do corredor, quando o boeing da Vasp parou na pista de aterrisagem do aeroporto de Congonhas.
Os caminhões dos bombeiros estacionaram junto ao boeing da Vasp, formando duas colunas, uma de cada lado. As ambulâncias estacionaram do lado esquerdo, próximas às portas de saída do boeing da Vasp.
As comissárias de bordo pediam calma, diziam que estava tudo bem, não havia mais perigo algum.
Os passageiros, exceto o homem de terno e gravata, decerto rico, ainda sem cor, se moviam em câmera lenta, despertos de um pesadelo.
Ela ainda segurava a mão de Eu, os dedos entrelaçados aos dedos dele.
Ela era algo entre a Sabedoria e a Luxúria.
VAMOS VER SE VOCÊ CONSEGUE ME SEGUIR NESTE LABIRINTO
Ela tirou um baseado do maço de Marlboro e ofereceu a Eu. Pega leve, é haxixe. Um amigo trouxe do Senegal.
O vento brincava com grãos de poeira na sarjeta. Levantava ciscos, envolvia-os numa dança, uma dança na qual não se via o dançarino, apenas o efeito de seus rodopios, a dama entregue aos braços de um deus, uma nobre Condessa descendente do melhor sangue russo sendo conduzida por uma entidade invisível, inocente das conseqüências deste deixar-se levar pela vida, pela dança, pela valsa vienense, pelo trágico bandoneón de um tango argentino, doce criança rodopiando no limite de uma geleira, o oceano Ártico lá embaixo, impassível como um tigre à espera da presa.
Você acha que vai conseguir me agarrar? Pois então, tome… A mesma voz catatônica saltava dos alto-falantes do carro. Timbres de trumpetes, saxofones, trombones, teclados, guitarras elétricas, baixo, bateria, formavam uma áspera cortina sonora, um monstro dissonante açoitando com suas escamas as paredes dos tímpanos.
Esta música, de novo. Não é possível!
É possível, sim. Eu disse que gravaria pra você.
As ruas pareciam o labirinto do Minotauro. O carro dobrava esquinas, atravessava avenidas, subia ladeiras, letreiros passavam, Casa das Louças, Lojas Arapuã, El Kabongue, Jardins de Alah, viaturas de polícia com as sirenes violentando a delicadeza hipócrita da madrugada, a Praça Vermelha logo ali na frente, a Torre Eiffel enfeitada de luzes para o Natal, o mosteiro budista Zuiou-ji do outro lado da alameda. O carro deslizava como um ornitorrinco e parecia imóvel no mesmo lugar. A paisagem é que se movimentava. O carro estava parado, o vento rodopiando grãos de poeira do lado de fora da janela.
Você que é tão espertinho, vamos ver se consegue me seguir neste labirinto. O trumpete levantava uma parede sonora do lado esquerdo, o saxofone sinalizava o fim do corredor, cuidado, rápido, vire à direita, e à direita havia uma nota gorda de trombone, esperando no meio da passagem com um monstruoso ponto de interrogação estampado na camiseta. Sim, os instrumentos criavam um intrincado labirinto sonoro. Enquanto o ouvinte tentava encontrar a saída, atrapalhado com as paredes espelhadas, cascatas de rés, dós e mis, maiores, menores, acordes dissonantes, escalas invertidas, o monstro mutante dava no pé. E o coro zombeteiro anunciava em manchetes garrafais na primeira página: Clara Crocodilo fugiu, Clara Crocodilo escapuliu. E você, ouvinte meu, meu irmão, desesperado nos abismos do labirinto, tentando encontrar um fio de poeira filtrado pela luz solar através de uma fresta mínima que fosse.
Arrigo Barnabé. Esse cara sabe das coisas.
Ele sabe muitas coisas que você não sabe, Ela tirou-o do labirinto com sua voz de Deusa Maia e o mergulhou em algo ainda pior.
Mas o pior até que era engraçado.
O pior era um redemoinho e no centro do redemoinho o carro girava como um simples cisco, um grão de poeira a mais.
O carro rodopiava ao redor dele mesmo e as fachadas das casas passavam velozes como um filme americano, daqueles cheios de aventura e ação, Missão Impossível II, um thriller desses, projetado numa tela cinemascope, Ayrton Senna a 350 por hora no circuito de Mônaco, e aqueles três marcianos pintados na parede de uma oficina mecânica, olha lá, eles estão saltando da parede, redondos e baixinhos, a carona toda verde, narigão de porco e anteninhas pregadas na testa, nossa, eles estão nos seguindo, veja como são simpáticos, aquele ali, parece o elefante da lata de extrato de tomate da Cica, eles possuem pistolas automáticas de raio laser, pá-pá-pá, vou te acertar com meu desintegrador de moléculas venusiano, ei, aquele gordão, ele está apontando a pistola em nossa direção, o outro ali, o magricela de macacão cor-de-cenoura, ah-ah-ah, ele não pára de dar cambalhotas, ei gordão, cara de mamão, ei magricela, bunda de varicela, não, oh, por favor, não atire, você é tão simpático, Ela, Ela, abaixe-se, ele vai atirar, ele vai atir
O raio laser acertou em cheio a testa de Eu.
Aroga êcov iav rev o euq iav recetnoca, atoidi — o gordão gritou, mostrou a língua e saltou de volta para a parede da oficina mecânica.
— Chegamos, senhor escritor — a voz de Ela parecia vir de longe, do meio das estepes geladas da Sibéria, as vogais chegando primeiro que as consoantes.
— Hã?
— Vamos? A festa parece animada.
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TOQUE CRÍTICO
Adorável criatura Frankenstein é a divertida colcha de retalhos de alguém sem nome nem sobrenome, chamado apropriadamente de Eu. Mas em que mundo vive essa figura? Tudo indica que no nosso, pois as referências topográficas e os objetos que o cercam são os nossos já conhecidos. Afinal, lá está ele — ou melhor, lá está Eu —, no saguão do aeroporto Santos Dumont, lendo a Folha de S. Paulo, prestes a embarcar no boeing da Vasp rumo à capital paulista. Lá estão Caetano Veloso, Xuxa e Malu Mader. Lá estão a avenida Paulista e a rua Cardeal Arcoverde. É o nosso mundo, só pode ser. Ou não?
Talvez. Desde que você não fique surpreso com certas fantasmagorias. Desde que você não fique interrompendo a leitura só para se perguntar o que o Pernalonga está fazendo ao lado do Jô Soares. Ou o que o Antônio Carlos Magalhães quer com o Pateta e a Clarabela. Ou por que os marcianos estão trucidando os convidados da festa do Washington Olivetto. Na verdade, toda essa promiscuidade faz sentido. No circo grotesco criado por Ademir Assunção, o elemento gratuito não é nada arbitrário, ele obedece a leis mais precisas do que as de Newton ou as da termodinâmica.
Nelson de Oliveira
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Adorável Criatura Frankenstein, Editora Ateliê Editorial (2003)
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TOQUE CRÍTICO
LSD Nô é essa soma que o próprio nome indica. Absolutamente contemporâneo. Uma peça psicodélica. Com gosto de contracultura e aprendizado construtivista. Em ritmo de rock mas embebido na filosofia oriental (aliás, o autor só interrompe sua luta de jornalismo cultural se for para peregrinar atrás de mais um templo budista). E, por ser sério, capaz do melhor humor. Um retrato muito bem falado do que é o pensamento hoje, mostrando as fontes de onde veio a estética e, por que não dizer, a ética da consciência contemporânea.
Alice Ruiz
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LSD Nô, 1ª Edição, editora Iluminuras, 1994 // 2ª edição, editoras Demônio Negro / Patuá, 2014
AS RUAS ESTÃO ESTRANHAS ESTA NOITE
Pétalas destroçadas tingem a noite de vermelho.
Mister Morfina se arrasta pelas ruas,
os bolsos cheios de câmaras de ar furadas,
tranqueiras e cacos de vidro.
Peixes coloridos saltam sob a luz dos semáforos.
Uma Rosa cospe um blues na poça das sarjetas.
Um Opala caindo aos pedaços
bate de frente
no Monumento aos Desesperados Anônimos.
O vidro do aquário se estilhaça.
Os peixes fogem montados em motocicletas envenenadas.
Orelhões suicidas gritam palavras obscenas
para velhinhas traficantes.
Mister Morfina acende um cigarro
e observa a palidez de 50 top models
que desfilam descalças
na passarela cheia de cacos de vidro.
Deus está solto.
E dizem que Ele está armado.
CORPO MORTO & ESPERMA NAS ENTRANHAS
Sirenes esquizofrênicas espancam a Noite Neblina,
as luzes vermelhas projetam fantasmas
na espessa cortina esbranquiçada,
motoristas kamikases
arrombam as paredes do Reino de Deus.
Coronel Tempestade Negra desenha símbolos estranhos
no asfalto ensanguentado,
giz branco sobre a pele de petróleo,
luvas cirúrgicas
e passos de uma dança conhecida apenas pelos iniciados
nos ritos policiais.
Empalada com um cabo de vassoura,
unhas arrancadas, um morcego tatuado com estilete
na coxa direita,
Corpo Morto tem folhas de chá
em lugar das pálpebras
e borboletas de origami enfiadas nos ouvidos.
Péssimo sinal.
Os travestis da República do Líbano sussurram a notícia
com olhares de horror e mímica sinistra,
nervoso farfalhar de leques chineses.
A Águia de Plumas de Ferro vai descer sobre a cidade
e eles sabem disso.
O NIGROMANTE NO MERCADO FINANCEIRO
O Deus Mercado acordou de ressaca.
A face pelancosa enfiada na poça de vômito.
Ondas no lençol de seda chinesa.
Gaivotas em chamas
chocam-se
contra as paredes do quarto.
Cheiro azedo de Johnny Walker.
Go ahead, go ahead, man.
No telejornal matutino a manchete cabulosa:
“O Presidente dos Estados Unidos da América
foi encontrado morto
na suíte presidencial do Copacabana Palace
com um vibrador made in Taiwan
enterrado nas costas.”
As Bolsas estão nervosas.
Dedos agéis de ilusionista digitam no teclado do laptop:
“O Elefante Branco de Java
esmagou a cartola do Coelho Maluco”.
A paisagem enlouquece.
Leões decepam cabeças de domadores,
números disparam nos painéis eletrônicos,
pulgas metafísicas sugam o sangue branco dos bytes,
fortunas desaparecem
no buraco negro de Matrix.
O Nigromante afasta o laptop
e abre uma lata de cerveja.
O FANTASMA DA TORRE GÊMEA
Ainda havia deuses naquela época,
silvos de sereia,
fluxos de consciência, regressos,
planos de fuga.
Mas os relógios não marcam mais o ontem
— marcam a pele azul-praga dos mortos,
tatuagens fósseis nas paredes de cascalho.
Os relógios enlouqueceram,
perderam dentes, cabelos e ponteiros
& agora se lançam em caravana
à Terra do Quando, do Onde,
do Nunca Mais.
Caravanas terroristas que anulam o instante.
Bombas de fragmentação.
Homem de Aço escreve arabescos
nas páginas de um livro
que ninguém vai ler, esmaga a memória
com a ponta do polegar.
Tudo é farelo. Tudo é névoa.
Tudo é nada neste elevador giratório
em perpétua escalada até o topo da Torre Gêmea
— perna amputada que ainda lateja.
O clima está instável. Mister Morfina
observa o sangue subindo na ampola.
Holofotes vasculham o céu de madeira.
A FARRA DAS FINANÇAS ESPECULATIVAS
Fogos de artifício estrondam nas ruelas do Baixo Glicério.
Os sushimen da Liberdade observam
com olhos dissimulados
o movimento das sombras-ideogramas
que se esgueiram nas áreas vips.
Uma nuvem nuclear de dinheiro contaminado
avança pelos boulevards de Higienópolis.
A Noite Negrume cerrou as cortinas do céu de lata
e estendeu uma espessa camada de gelo seco
sobre a cidade.
As saídas de emergência estão lacradas.
Luzes negras giram na Sala de Prazeres Bizarros,
onde âncoras de telejornais se oferecem em holocausto
a lutadores de sumô.
Astros de trip rock são devorados em raves canibais.
Tecnocratas flagelam promoters
ao som de lounge music.
Gerentes de marketing chacoalham ossos,
dentes e cordões de ouro
em manicômios mantidos por bolhas especulativas
do mercado financeiro.
Deus e o Diabo jogam pôquer
na cúpula envidraçada do Banco Central.
A carta virada do baralho estampa a gravura do Enforcado.
RITUAL SINISTRO NA BOCADA
Cães ladram sob o véu escuro da Noite Drogada.
Cara de Bode gira o tambor e encosta o dedo no gatilho.
Debaixo da máscara negra
o semblante é ainda mais pavoroso.
Praças cobertas de entulho, ratos voadores,
baratas trapezistas, tropas de escorpiões.
Os olhos arregalados no breu do beco
miram a face do terror.
A primeira bala atravessa o joelho,
esmigalha ossos, ligamentos, músculos, meniscos,
membranas e cartilagens.
A segunda arrebenta a mandíbula — cápsulas metálicas
ferroando por dentro da carne.
Pneus velhos amontoados ao lado do corpo em agonia
estão prontos para o riscar de fósforos.
Justiceiros mascarados encenam o ritual
com pantomima sinistra — bocas retorcidas,
línguas de lagarto, risos de escárnio,
olhos mais frios que navalha.
A lei do cão vigora: olho por olho,
unha incinerada, líquido viscoso.
Não há clemência no espetáculo homicida.
O pancadão eletrônico abafa os gritos
na bocada de São Miguel.
O INFERNO É UM SUBMARINO RUSSO
Um homem vestido com roupas de magnésio
rege uma orquestra de músicos fantasmas
na Sala São Paulo.
As mãos desenham cifras ocultas no ar,
senhas decifradas
apenas pelo comando terrorista.
Rajadas de balas causam dispersão e assombro
no pátio de manobras da Estação da Luz
— ruído abafado pelo rugido de gongos,
tambores, tímpanos, vibrafones,
marimbas e saltérios.
O governador, deputados da base aliada
e o secretário de cultura
suspiram em uníssono
ante o ataque dos violinos.
Garotas de programa
e acionistas da indústria de cosméticos
gemem em falsete.
Black Ice examina o mecanismo de disparo do fuzil Kalashnikov.
“O inferno é um submarino russo
e não há escotilhas para se vislumbrar o lado de fora”.
O lado de fora não existe mais.
O nome da sinfonia
regida pelo homem com roupas de magnésio
é uma metáfora em convulsão.
Uma cortina de gelo seco desce sobre os camarotes,
sirenes e buzinas violentam as notas do contrabaixo,
as teclas do piano mordem a mão do solista,
luzes de emergência gargalham raios infravermelhos
e proferem insultos numa língua desconhecida.
Caos e tensão permanente modulam as sonatas do futuro
— mesmo diante da falência dos calendários.
“Eis uma verdadeira poética do delírio”
— pensa Black Ice,
acariciando o gatilho com o dedo indicador.
SINUCA NOS FUNDOS DO INFERNINHO
O rugido do vento ecoa em todo o Vale do Anhangabaú.
Semáforos se retorcem como latas de sardinha.
Raios estralam nas janelas dos edifícios.
As paredes tremem. A terra treme.
Carros afundam nas rachaduras do asfalto.
Policiais da Guarda Metropolitana espancam camelôs
na Praça do Patriarca.
Pastores em surto bradam o Apocalipse
nas escadarias do Teatro Municipal.
O Viaduto do Chá liga o Inferno ao Inferno.
Cães ferozes vigiam as duas extremidades.
O calçamento é de brasa e aço de navalha.
Mesmo que alguém consiga, a travessia é inútil.
A Águia de Plumas de Ferro sobrevoa o centro da cidade.
Pânico e desordem na multidão.
Olhos assustados se voltam para o céu de lata.
Tarde demais. As chamadas telefônicas caem sempre
na secretária eletrônica.
Deus está muito ocupado, jogando sinuca
nos fundos de um inferninho
da Nestor Pestana.
ASAS OCULTAS SOB A CAMISETA RASGADA
Um anjo de granito, sujo e esfarrapado
desceu da cúpula do Mosteiro de São Bento
e sentou-se na calçada do Café Girondino.
Um garoto sem o pé esquerdo pipa uma pedra
e solta a fumaça no rosto de uma velha
que pede esmolas na saída do metrô.
O Dançarino Mascarado observa a cena.
Os policiais observam a cena.
O leão de chácara enxota o anjo de granito
— as asas ocultas sob a camiseta rasgada.
Fantasmas de motoboys abatidos no trânsito
saltam do topo do edifício Martinelli.
Monges Beneditinos disparam na multidão
— barbas longas, olheiras fundas e olhares insanos.
Hotéis desabam na cracolândia.
O Pátio do Colégio desapareceu após a última
tempestade química.
Um vira-lata negro uiva
diante da porta central do mosteiro.
Somente o anjo esfarrapado
e o Mendigo Kamaiurá
conseguem ouvi-lo.
Os três sabem que ali havia um cemitério cayowaá.
Mister Morfina contempla as pupilas pálidas do anjo
através da janela do Café Girondino.
Ele também ouve o uivo do vira-lata.
CRIME NA RUA DO TRIUNFO
O vento tem hálito de esgoto. O sol está cego.
A Senhora dos Sonhos sussurra distúrbios mentais
no ouvido dos adormecidos.
O Padre Super Star amanheceu pendurado numa corda.
Gemidos atravessam as vértebras do edifício-fantasma.
Mister Morfina abre uma lata de sardinhas
com as próprias unhas.
Manchas vermelhas na camada de óleo.
Sete demônios chicoteiam o Bispo Exorcista.
Velhinhas vigaristas fogem com a sacola do dízimo.
As vendas de condomínios celestes despencaram
no último trimestre.
As Bolsas de Hong Kong e Nova York
fecharam em alta.
Deus foi esfaqueado nos fundos de um inferninho
na rua do Triunfo.
*****
Poema narrativo, dividido em 7 partes e 66 cantos: esta seria uma forma correta, porém soft demais, para sintetizar Pig Brother. O mais acertado seria descrevê-lo como uma epopeia trash metal, dividida em 7 círculos infernais e 66 episódios dantescos.
O que se apresenta neste poema é um cenário brutal, sem sentido e sem saída. Um mundo para o qual os deuses simplesmente viraram as costas, cansados de verem seus avisos sucessivamente ignorados.
As ruas e o interior dos edifícios estão mergulhados no caos. A violência é desmedida. O cinismo, a angústia e o desespero são a tônica do inferno descrito com uma profusão de imagens aterradoras, que se aproximam mais da lógica do cinema do que da contemplação da pintura.
Verdadeiras entidades xamânicas, barra-pesadas, os personagens tocam o terror, sem piedade e sem ética, no que restou dos escombros do sagrado. É como se deixassem um último aviso pendurado na porta de entrada: é isso mesmo o que vocês querem?
Pois então saibam que o Irmão Porco tomou conta do pedaço, as colunas que sustentam o mundo estão prestes a desabar e as saídas de emergência se encontram lacradas.
A isso podemos chamar de Terra Devastada.
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Pig Brother, Editora Patuá / ZB Rebeliões Artísticas (2015)
PAULO LEMINSKI: UM KAMIQUASE NA IDADE MÍDIA
Numa época em que “chique é ser careta”, como disse emblematicamente o poeta-publicitário Mauro Salles, no limiar do terceiro milênio a poesia de Paulo Leminski continua chovendo no piquenique entediante daqueles que insistem em fechar as portas da percepção e abrir as janelas da decepção. Não é pra menos. Desde que soltou no zoológico literário as feras de seu Catatau (1975), antirromance lisérgico, o polaco endiabrado configurou uma nova constelação poética, elétrica, irônica e extremamente inventiva. Logo na estreia, imaginou o filósofo Descartes, com todo o seu aparato lógico, perambulando pelos trópicos com uma luneta e um cachimbo de maconha, sem entender bulhufas da miscigenada e exuberante realidade tupiniquim: “O poliglota analfabeto, de tanto virar o mundo, ver as coisas e falar os papos, parou para pensar ao pé de uma montanha. Assaltaram-no dois pensamentos. Um na língua materna, outro em língua estrangeira. O primeiro fez a pergunta, o outro respondeu. Resultado: sou pai de minhas perguntas e filho de minhas respostas”. Em seguida, disparou suas baterias poéticas nos livros Não fosse isso e era menos / não fosse tanto e era quase e Polonaises (ambos de 1980) para deixar bem claro que não estava para papo furado: “nunca quis ser / freguês distinto / pedindo isso e aquilo / vinho tinto / obrigado / hasta la vista // queria entrar / com os dois pés / no peito dos porteiros / dizendo pro espelho / – cala a boca / e pro relógio / – abaixo os ponteiros”.
Poeta, prosador, compositor, letrista de música popular, ensaísta, tradutor, jornalista, faixa preta de judô, Paulo Leminski Filho, nascido em Curitiba (1944), assumiu desde o início a postura de um valente guerrilheiro contra a “ditadura da realidade”, dedicando a vida inteira à “insurreição da fantasia”, como ele mesmo disse. Sua vasta cultura e inesgotável imaginação se desdobraram em livros de poesia, prosa e ensaios – como Caprichos & relaxos (1983), Agora é que são elas (1984), Anseios crípticos (1986) e Distraídos venceremos (1987) –, letras e músicas gravadas por Caetano Veloso (Verdura), Itamar Assumpção (Filho de Santa Maria), Moraes Moreira (Oxalá), Ney Matogrosso (Promessas demais), Edvaldo Santana (Mãos ao Alto) e Ângela Maria (Sempre Ângela), traduções de James Joyce (Giacomo Joyce), Samuel Beckett (Malone morre), Yukio Mishima (Sol e aço), John Fante (Pergunte ao pó) e Petrônio (Satyricon), além de biografias-ensaios sobre Matsuo Bashô, Cruz e Souza, Jesus e Trótski.
Libertário da linhagem de Walt Whitman, Rimbaud e Oswald de Andrade, Paulo Leminski sempre insurgiu-se no próprio tecido da linguagem, consciente das tempestades causadas por James Joyce, Guimarães Rosa ou Haroldo de Campos, um dos seus grandes interlocutores. Por outro lado, jamais se distanciou de uma postura rock‟n‟roll e das fontes das múltiplas culturas populares. Ele mesmo disse, em uma entrevista, que “ler Nietszche ouvindo Rolling Stones causa um terceiro resultado”. Junto com Torquato Neto, encarnou o espírito de uma nova geração de poetas, já totalmente à vontade com os signos da comunicação de massa e com a realidade fragmentária do século XX – prontos, inclusive, para contra-atacar com as mesmas armas.
A intensidade, o vigor intelectual, o frescor das ideias e a capacidade de articular raciocínios surpreendentes estão presentes nesta entrevista, na qual transparecem seu espírito polêmico e suas profundas influências do zen-budismo. Influências, aliás, que ele soube transmutar em sua poesia com o brilho incomum de uma lâmina samurai: “quem nunca viu / que a flor, a faca e a fera / tanto fez como tanto faz, / e a forte flor que a faca faz / na fraca carne, / um pouco menos, um pouco mais, / quem nunca viu / a ternura que vai / no fio da lâmina samurai / esse, nunca vai ser capaz”.
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O encontro foi em uma tarde de outubro de 1986, no apartamento da cantora e compositora Neuza Pinheiro, na rua Apinagés. Leminski estava em São Paulo para dar um curso promovido pela editora Brasiliense: “Poesia em cinco noites”. Ele abriu a porta com um baseado pendendo entre os fios de seu vasto bigode. Antes mesmo que o gravador fosse ligado, disparou a falar e não parou depois que a fita chegou ao fim.
O poeta morreu três anos depois, de cirrose hepática, no dia 7 de junho de 1989, aos 44 anos de idade. Uma morte precoce, lamentada de norte a sul do país. Sobre ele escreveu o poeta Geraldo Carneiro, ao comentar o relançamento de Anseios crípticos, já no limiar do século XXI: “Leminski é uma das mais perfeitas encarnações do herói cultural dos 70, para quem a realidade não passa de uma alucinação provocada pela falta de utopia”. E concluiu, em tom de lamento: “Pois é, Leminski. Você partiu para os jardins suspensos do Copacabana Palace da Eternidade, enquanto nós continuamos aqui, neste país careta e corrupto dos primeiros anos do novo milênio, com a vaga impressão de que o princípio de realidade prevaleceu sobre a utopia”.
Depois de sua morte, saíram ainda os livros inéditos La vie en close (1991), Winterverno (em parceria com João Virmond), Metaformose (ambos em 1994), O ex-estranho (1996) e Gozo fabuloso (2004), além de diversas antologias no Brasil, Cuba, México, Argentina e Estados Unidos. Suas músicas e parcerias continuaram a ser gravadas por Itamar Assumpção, Edvaldo Santana, José Miguel Wisnik, Arnaldo Antunes, Zizi Possi, Carlos Careqa, Bernardo Pellegrini e Ivo Rodrigues, da banda Blindagem. Diversos ensaístas escreveram sobre sua obra, entre eles Haroldo de Campos, Boris Schnaiderman, Maurício Arruda Mendonça, Antonio Risério, Régis Bonvicino, Rodrigo Garcia Lopes e Romulo Valle Salvino. Em 2001, Toninho Vaz publicou a biografia Paulo Leminski – O bandido que sabia latim, e em 2005 os poetas André Dick e Fabiano Calixto organizaram a coletânea de ensaios A linha que nunca termina – Pensando Paulo Leminski.
Esta entrevista foi publicada parcialmente no jornal O Estado de S. Paulo (1986) e posteriormente, em edição ampliada, na revista Medusa (1999). Aqui está a versão mais próxima da integral. Foi o que consegui salvar da fita, que naufragou em um copo de vodca.
*****
A ideia de inutensílio, de que a arte não serve a causa nenhuma, como você teorizou em um ensaio, certamente acabaria em uma boa troca de sopapos em um simpósio sobre o papel da poesia nas transformações sociais brasileiras. Essa rebeldia contra a transformação do prazer estético em mercadoria é uma atitude diante da linguagem?
O (linguista russo) Roman Jakobson traz uma contribuição importante quando diz que existe uma função poética na linguagem, que é quando o discurso incide sobre a própria linguagem. É o prazer do homem na prática da linguagem. É como Freud distinguia: o princípio do prazer e o princípio da realidade. O princípio da realidade, no uso da linguagem, seria a função referencial, que é quando a linguagem se refere a uma coisa exterior a ela mesma. E o princípio do prazer é quando a linguagem é o puro exercício do prazer. É um caráter lúdico da linguagem, que é inegável. Porque a linguagem é a obra-prima do homem, é a condição da sociabilidade dele. Então, a poesia é realmente isso. A gente precisa resgatar a grandeza da ideia de brincar com a linguagem. Para algumas pessoas é até a brincadeira suprema, que pode ser a razão de ser da sua vida.
É esse sentido de prazer com a linguagem que impulsiona o seu trabalho?
Eu faço poesia como a aranha faz sua teia. Não tem porquê. Estou além do porquê. É o resto da minha vida que tem que se explicar em relação a isso. Esse é o resultado do meu viver. A minha poesia, para mim, é uma atividade intransitiva. Como pular o carnaval. Não se pula o carnaval para alguma coisa. Simplesmente pula-se. Ou não. E pode-se fazer disso um exercício de sadismo ou de masoquismo.
O exercício da linguagem é um exercício sádico?
É um exercício de poder. Porque o idioma é um fato acabado. Quando você nasce, já nasce no interior de uma determinada língua. A língua é uma fatalidade, como você ter nascido homem, mulher ou corcunda.
Existe alguma língua melhor do que outra para a poesia?
Não existe nenhuma língua no mundo que seja superior a outra quanto ao seu potencial expressivo. Todas as línguas são igualmente capazes de expressar, são igualmente ricas, musicais. A questão toda tem a ver com a experiência histórica do povo que fala essa língua. A língua grega, em si, não é dotada de propriedades que a tornem superior à língua vietnamita. Tudo vai das circunstâncias. A questão toda é você perguntar, por exemplo, se Shakespeare seria o grande teatrólogo que é se ele não tivesse vivido durante o apogeu imperial da Inglaterra.
Depende da importância que o país que fala aquela língua consegue obter no contexto mundial?
É. Veja o caso do português. Camões teve a sorte de escrever em português em um momento imperial. A sorte que um Fernando Pessoa já não teve: ele fez uma grande poesia portuguesa, mas escreveu num momento em que Portugal não era mais nada. Portugal é apenas a sombra de um passado que já houve. Então, você é vítima, é uma espécie de objeto sexual da língua em que nasceu. Você não pode ser maior do que ela. Você pode escrever um grande poema épico num dialeto da Índia e não adianta nada, ele não terá realmente um reconhecimento planetário. O português é uma província, em nível planetário. O português é mais do que o basco mas é menos do que o espanhol. Nesse sentido, o poeta, o escritor, a gente que lida com a palavra, a gente é vítima da nossa língua.
Dentro disso, algum futuro promissor para a língua portuguesa?
O problema não está na língua portuguesa. Está no que os falantes da língua portuguesa vão fazer de si. O dia em que o Brasil for uma grande potência mundial, em todos os sentidos, tecnológico, científico, artístico, a língua portuguesa ganhará um vulto maior. Não existe a língua portuguesa. A langue não existe. Existe a parole, naquela distinção de Saussurre. O ato de falar é que existe. Ninguém sabe onde é que está a langue. Está em Machado de Assis, em Guimarães Rosa, em você, em mim? A langue não está em lugar nenhum. Ela está em todos e não está em lugar nenhum. Ela é como Deus, é onipresente. Você só verá a parole, a manifestação. Dentro da tradição cristã, a parole seria Jesus. Você não vê Deus. Você verá Jesus, verá a encarnação. A parole é a encarnação da langue. Onde é que está a língua portuguesa? Ela está, como uma possibilidade de seus falantes, tanto em Guimarães Rosa quanto em Sebastião da Silva, que é estivador no porto de Santos. Todos eles, no ato da parole, tornam real a langue, que é a língua portuguesa, a qual não está em lugar nenhum. Então, no caso do masoquismo, é a ditadura da langue sobre a parole.
E no caso do sadismo?
Em termos de texto, seria o caso da poesia dita experimental, por exemplo, na qual você pode violar as regras, e essa violação é portadora de uma valoração positiva. As vanguardas são momentos de sadismo, momentos em que o criador se volta contra a langue e faz imperar sua parole.
A poesia brasileira tem mais masoquistas do que sádicos?
Muito mais masoquistas. Em todos os lugares. O masoquismo é a regra e o sadismo, a exceção.
Esse masoquismo acontece também em outras manifestações artísticas ou apenas na cultura letrada?
Se estendermos isso também às formas herdadas, e não apenas ao idioma, vamos perceber que quando você nasce já se insere em uma determinada tradição – e você vai ter que se relacionar com ela. Já tem todo um estoque, um elenco de formas prontas e acabadas. Ou você as aceita, e se torna um acadêmico, ou você as nega, as agride, as estupra, as dinamita. Quer dizer, você opera artisticamente já no interior de um código. Se você quiser mexer nas formas, é por sua própria conta e risco.
Seu primeiro livro, Catatau, já chegou provocando, dinamitando os limites. Não é conto, não é romance, não é poesia. Nele, o personagem central é nada menos que Descartes. E ele tem uma luneta em uma mão e um cachimbo de maconha na outra. São dois símbolos?
É, são dois símbolos elementares. Um de distanciamento crítico e outro de integração. A luneta é o distanciamento, e o cachimbo de maconha é a integração. A maconha gera uma integração. Numa roda de gente queimando fumo gera-se um tipo de comunicação diferente daquele gerado num simpósio, por exemplo, sobre a metafísica e a psicologia de Jung. É uma comunicação via substância, não via palavra.
Esse tipo de experiência, de alguma forma, tem a ver com a experiência poética?
É até um lugar-comum a tradição de que os poetas criam de madrugada, de que são alcoólatras. Baudelaire, por exemplo, escreveu muitos poemas numa mesa de bar, sob efeito do absinto. A ideia de que o discurso poético se produz em estados anômalos é uma coisa normal, que rima com a própria natureza anômala da linguagem poética. O normal da linguagem é a função referencial. E ela se voltar sobre si mesma, como no caso da poesia, é uma espécie de hipertrofia. Escrever um livro inteiro em que prevaleça a função poética é um exagero, um excesso. Essa linguagem ocorre com os exagerados e os excessivos. A ideia de que os poetas são loucos é até absolutamente correta. Isso se tornou quase mitológico do romantismo em diante.
Voltando um pouco à ideia do “inutensílio”. Você pode explicar melhor isso?
A ideia da arte como um inutensílio é muito recente. Ela aparece no século XIX, com os simbolistas, com Mallarmé, Baudelaire. No Renascimento, não passaria pela cabeça de ninguém, de Rafael, de Leonardo da Vinci, de Caravaggio, que a sua arte não servia pra nada. Um mural pintado numa igreja no período renascentista não é apenas um jogo de cores, como seria um quadro impressionista, de um Manet, de um Matisse. Só pode aparecer a ideia da arte pela arte no momento em que ela se transforma em mercadoria.
O inutensílio é a negação da arte como mercadoria?
É muito complexo. O negócio é o seguinte: a arte ou é tutelada pelo Estado ou é tutelada pelo mercado. Um dos dois mandará na arte – essas são as leis que o real quer pregar. No Ocidente, é o mercado que determina a obra de arte. O mesmo escritor que acha indecente que em Cuba o Estado financie a arte não acha indecente que seu trabalho seja tratado como mercadoria. A ideia de inutensílio é uma negação de ambos. Ela afirma que a arte não serve pra nada justamente porque só serve para o engrandecimento da experiência humana. Apenas isso.
Até mesmo os poetas engajados acabam se transformando em mercadoria, não é?
Claro. Thiago de Mello, Ferreira Gullar, Moacyr Félix, Affonso Romano de Sant‟Anna vendem muito mais do que Augusto de Campos.
Você acredita que a arte pode causar revoluções?
Pode, claro. Mas revoluções não acontecem toda segunda-feira. As vanguardas do início do século surgiram quando a burguesia desabou, com a Primeira Guerra. A Europa passou para segundo plano como potência mundial, e a hegemonia foi assumida pelos Estados Unidos e pela União Soviética. Na Segunda Guerra isso se consagrou. O que é a Europa hoje? É um imenso museu. Então, as vanguardas europeias, surrealismo, cubismo, futurismo, dadá, surgiram num momento histórico irrepetível. Hoje nós estamos vivendo numa época retrô: neoexpressionismo, neodadá, neocubismo. Não está acontecendo nenhuma revolução. High tech não é revolução. As revoluções Francesa e Russa, sim. A chamada Revolução Americana não é revolução nenhuma. George Washington era um dos homens mais ricos dos Estados Unidos quando liderou a chamada Revolução Americana. Ela não alterou as relações de poder nem de propriedade. Não redistribuiu nada. A Francesa e a Russa, sim, alteraram profundamente as relações entre as pessoas. High tech não revoluciona nada. Pode ser apenas uma re-carga dentro do poderio de uma classe dominante. É uma revolução entre aspas.
Mas a arte se faz revolucionária quando é feita para o povo, como acreditavam os poetas engajados?
O que é o povo? Há uma mitologização em torno dessa palavra. Onde está o povo? Quem é o povo? O povo são todas as pessoas que assistem à novela das sete? Onde é que está esse povo? Que povo é esse? Que idade tem o povo? No interior dessa coisa chamada povo há mil distinções a serem feitas, de gosto, de estatística, de origem. Eu me considero povo. Não tenho nenhuma dificuldade em conversar com o garçom, com o dono do botequim ou com o motorista de táxi. E de repente eu estou pensando em Webern. E daí? Sou povo. O povo não pode pensar em Webern? O povo não pode ouvir Stockhausen? O povo seria algo inventado por um certo tipo de esquerda? Onde é que está esse povo? Glauber Rocha, Júlio Bressane, Arrigo Barnabé, Mario Schenberg, Oscar Niemeyer e Paulo Francis – embora ele desteste a ideia – fazem parte do povo brasileiro. Assim como Joãozinho Trinta. Tem que repensar todo esse conceito de cultura popular à luz dos meios de comunicação de massa. É como pensar uma cidade como São Paulo. Quem é mais paulistano? É o cara que está ouvindo Chitãozinho e Xororó no rádio? É o cara que está ouvindo Afanasio Jazadji às sete da manhã dizer: “mata, corta, fura o olho”? É. Mas São Paulo é também Haroldo de Campos conversando com Octavio Paz na noite paulistana. Isso é São Paulo também.
Há um texto seu muito interessante sobre a poesia no receptor1. Trabalha com a ideia de que um bom leitor de poesia também é, de alguma forma, um poeta. Como é isso?
Uma pessoa pode dizer assim: “eu sou incapaz de escrever um bom verso, mas não consigo passar uma noite sem ler umas páginas de Fernando Pessoa”. Para mim, essa pessoa é poeta. A poesia tem que existir nos dois polos: no emissor e no receptor. Quem sabe ler bem poesia é tão poeta quanto quem escreve. (Jorge Luis) Borges tem uma frase magistral sobre isso. Ele diz: “outros se orgulham dos livros que escreveram, eu me orgulho dos livros que li”.
Você se lembra de quando começou a fazer poesia?
Já fazia versinhos quando estava no primário. Tinha um avô que fazia poesia, ele era militar. O meu avô é uma figura totêmica na minha família. Ele fazia uns sonetos, meio religiosos. O fato de fazer poesia já estava embutido dentro de uma programação familiar. E dentro disso existe também um componente inexplicável. Não acho que tudo tenha explicação. É como perguntar quem é Deus.
A propósito, quem é Deus?
Acredito que, como um ser vivo do planeta, eu pertenço a uma ordem maior do que a mim, uma ordem que vai do tubarão ao gafanhoto. Desde um carvalho até um amor-perfeito. Eu estou no interior do mistério. É difícil compreender o mistério. As religiões todas, pra mim, são uma tentativa tosca e grosseira de homenagear o Mistério, com letra maiúscula. Eu me dou por satisfeito de ter a sensação de pertencer ao Mistério. Que nome esse Mistério tem, isso não importa. Isso é historicamente determinado. Nem os mais geniais economistas brasileiros conseguem compreender o funcionamento da economia, como nós vamos compreender o Mistério? Porra, é um pouco demais. Tudo o que a gente tem a fazer é realmente homenagear o Mistério.
Como você homenageia o Mistério?
Escrevendo. É o único tipo de oração que eu sei.
Essa oração tem a ver com o zen, algo a que você é tão ligado?
De todos esses tipos de atitude de homenagear o Mistério, para mim, a atitude superior é o zen. Claro.
É tudo aqui e agora?
É. Tudo é milagre. Não precisa curar leprosos. Não preciso de milagres desse tipo. A cor amarela, para mim, é um milagre. A percepção é um grande milagre. Poder ouvir um som, mi bemol, é um milagre. O azul, as experiências biológicas, o gosto da batata frita, são milagres. Dar três trepadas numa noite é um milagre. O mundo é cheio de milagres. E as pessoas ficam procurando… As pessoas querem circo. Não preciso de circo, o zen não precisa de circo. O zen diz: “é aqui e agora”.
É só isso. E é tudo isso.
Por isso que os jesuítas, na catequização do Japão, conseguiram converter todo mundo, menos os caras que praticavam o zen. Estes eram inacessíveis à conversão.
Por quê?
Primeiro porque eles não aceitam a divisão entre corpo e alma. A visão zen é holística, unitária. Quer dizer, ou eu me salvo por inteiro ou nada se salva.
Mas se salvar do quê?
Salvar o quê? Estou salvo aqui e agora. É só pegar aqueles koans dos grandes mestres zen, todos eles continham a iluminação. Como aquele em que o discípulo perguntou para o mestre qual o significado de Bodhidharma ter vindo do oeste.
E o que o mestre respondeu?
O vento no salgueiro.
*****
A entrevista pode ser considerada um gênero? Um engenho? Uma arte? Algo, no mínimo, na fronteira entre a fluidez jornalística e a profundidade da reflexão crítica? Estes poderiam ser alguns questionamentos pertinentes lançados ao ar a partir deste impressionante trabalho do jornalista e poeta (ou vice-versa) Ademir Assunção. Um trabalho disperso nas páginas de diferentes jornais e revistas ao longo de 28 anos de carreira profissional e que, agora reunido neste livro, apresenta uma persistente busca de sentidos a respeito da arte, da cultura e da própria vida, a partir de um elaborado jogo de perguntas e respostas com 29 personalidades brasileiras de grande relevância.
Faróis no Caos traz uma antologia das melhores entrevistas realizadas por Assunção, cuidadosamente selecionadas, e reeditadas a partir dos originais. O próprio elenco de entrevistados pressupõe um recorte crítico. Aqui estão presentes alguns dos artistas brasileiros mais radicais e polêmicos das últimas décadas, nem sempre reconhecidos com a amplitude que merecem. Nisso, há outro recorte crítico: o entrevistador não se preocupou em entrevistar apenas nomes já entronizados no panteão cultural. O critério é claramente outro: aqueles que tinham (e têm) o que dizer. E os fez dizer, por meio de perguntas elaboradas e exigentes, jamais com uma abordagem deslumbrada.
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Faróis no Caos, Editora Edições Sesc SP (2012)
tempo sem tempo
na praia deserta
só eu e o vento
ilha do cardoso, 08.01.2010
neblina na montanha
até a bananeira
inclina as folhas
e se abandona
mosteiro zen morro da vargem, 07.10.1998
pés de neblina
pisam
o limo das pedras
conceição do mato dentro, 13.01.2006
a cabeça pensa
ao lado da cascata
a água
não diz nada
milho verde, 14.01.2006
céu do sertão
como pode
ser tão céu?
estrada salvador – lençóis, 1987
cachorro tão magro
coitado
nem consegue abanar o rabo
são paulo, 18.11.1994
lua quase cheia
gatas gemem
a noite inteira
são paulo, julho 2010
bem que você podia
pintar na sala
da minha tarde vazia
londrina, 1984
aos trancos e barrancos
sigo vivendo
meus tragos e barracos
são paulo, 12.07.2013
dia confuso
me falta
um parafuso
campinas, 10.11.1996
mamãe mamãe escuta
passos no capim
eu vou ao cinema ver um filme que não tem mais fim
já vou tarde – pensou
e partiu
sem o mínimo alarde
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TOQUE CRÍTICO
Ao ler até nenhum lugar de Ademir Assunção o leitor é tomado por uma sensação muito próxima do mundo zen: ele sente-se sublime. Mais que isto: sente-se inspirado. E como já observou Paul Valéry, a grande sacada de um poeta não é ele ser inspirado, mas fazer o leitor sentir-se como tal. Intento que Ademir Assunção consegue com a simplicidade e a beleza de uma flor de lótus.
Seus poemas são flashes da vida cotidiana, observações de sentimentos trazidos pela memória ou provocados por alguma cena presente. A praia, uma borboleta, o sentimento do amor – tudo é matéria livre, leve e solta para tercetos (na quase maioria) deste poeta que em livros anteriores soube ser arrojado nos temas e expansivo no verbo. E aqui surge-nos contido. Reservado. Como a dizer: eu faço o que quero, quando quero, do jeito que quero. E sorte do leitor: ele sempre faz grande poesia.
Amador Ribeiro Neto
*****
Até Nenhum Lugar, Editora Patuá / ZB Rebeliões Artísticas (2015)
O OLHO AZUL DO MISTÉRIO
desço dos céus para beijar
os lábios quentes da fera — desço,
vejo dragões pastando na grama
azul, incêndio nas cortinas
dos apartamentos — desço,
escuto um coro de crianças
bêbadas, vozes batendo no casco
do navio fantasma ancorado
no Cais da Última Utopia — vejo,
sinto na pele os dedos de uma androide
aflita, quase em pânico, mãos
de neblina, pálpebras que se fecham
toda vez que toco o bico dos seios — escuto,
encaro olho no olho o olho
do Grande Gavião Terena, leopardos
lambem o leite da Via Láctea, saltam
com garras envenenadas sobre
as penugens de Vênus, penetram
o cu da lua, pregas se rompem,
espelhos se estilhaçam e rasgam a carne
dos banqueiros que sugam o vinho
da vida com canudinhos cedidos
pelo senhor McDonald — sinto,
e por isso escrevo, e por isso deixo aqui
palavras escritas na água, na carne
dos que sofrem, escrevo com sangue, escrevo
com porra nas paredes das salas
iluminadas com a luz monótona dos aparelhos
de televisão, escrevo com mijo nos muros
das cidades do Ocidente, convoco hidras,
provoco tumulto, estrelas sentam-se no sofá
e tomam café marroquino, os sentidos
mixam o onde e o quando na câmara
oca de ecos, a pele se arrepia, relógios
praticam saltos ornamentais em piscinas
vazias, neve ao redor dos cabelos, chove
na terra inteira, dedos de açúcar tocam
a escama dos peixes, o corpo todo pressente
a presença de um deus, e você finalmente encara
o úmido olho azul do mistério
O TRIUNFO DO GENERAL MANDÍBULA
faca entre os dentes, trinados
de gralhas nos ouvidos, mergulho
no rio dos sonhos, desço ao mundo
dos mortos, pirata na proa
do navio fantasma, golfinhos
saltando no mar revolto, demônio
vestido com roupas de fada, buraco
esculpido na camada de ozônio, ninguém
responde ao chamado, vozes
estranhas na secretária eletrônica,
a agência do bradesco arde
em chamas, punks desfilam nas ruas
de copacabana, o caos ecoa nas ruínas,
escuras esquinas do inferno, pompeia,
são paulo, istambul, atenas, a moda
do outono é a decadência do inverno,
dizem que os profetas só predizem
desatinos, pássaros tenebrosos nublam
presságios, o cacto rubro desconhece
a flor do destino, é no silêncio
que os banqueiros multiplicam seus
ágios, quebram-se dentes, racham
mandíbulas, ossos estralam nas tumbas,
o vento varre os edifícios da cidade,
baleias destroçam submarinos, bruxos
eslavos rasuram signos mágicos, otários
neochics imitam macacos, cadelas
burguesas tomam no rabo, hackers
detonam a musa da TV a cabo, nada faz
sentido nessa névoa de bosta, lama
espessa subindo dos pés ao pescoço,
caronte enlouquecido brandindo
seus remos, vermes homicidas à espera
do almoço
JACK KEROUAC NA PRAIA BRAVA
sonhei com jack kerouac
sentado na varanda da casa
de waldemar cordeiro. eu acabara
de acordar e dei de cara
com aquele vulto imerso
na neblina. bem acima da copa
das árvores a lua cheia ardia
entre nuvens espessas, com sua
cara de gângster. eu disse: “ei, man,
onde é que vamos parar?” jack
deu uma longa tragada
no cigarro, fumaça branca na névoa
branca, e me estendeu
o copo de uísque.
continuou encarando a lua, pálido
como um fantasma. disse
que estava a bordo de um navio
mercante da marinha americana na costa
da indonésia até a semana passada.
perguntou se ainda havia hippies
nas ruas, feministas queimando sutiãs
em praça pública e negros
enforcados nos galhos de grossos carvalhos
no novo méxico. “oh, não, jack, isso
faz tanto tempo. agora eles mandam os jovens
negros pobres para a guerra no iraque.”
descemos até a mercearia da praia brava
atrás de umas latinhas de cerveja
e de uma garrafa de conhaque. no caminho
contei-lhe que leminski e itamar assumpção
estiveram nesta mesma casa no carnaval
de 1988. “oh, yeah”, disse jack. “os grandes
poetas são como as marés: engolem os
barcos dos imprudentes e lançam os destroços
na praia”. quando voltamos da mercearia,
minha filha de 16 anos lia jorge luis borges
e meu filho de 13 lia david goodis. nina
simone cantava just call me angel of the morning.
jack abriu uma lata de cerveja, bebeu
um longo gole olhando as folhas da mata
e disse a eles: “não deixem que os idiotas
calem sua voz. aquela voz que vem lá do fundo
de vocês mesmos. contem comigo
pro que der e vier”. minha filha
sussurrou no meu ouvido: “quem é esse
cara?” “jack kerouac”, eu respondi. “uau”,
ela balbuciou. meu filho levantou os olhos
do livro e gritou: “eddie acabou de acertar um
cruzado de direita na cara do leão de chácara”.
eu olhei para jack e em silêncio
fizemos um trato: “deixe-os viver. ainda é cedo
para contar-lhes sobre as mentiras do mundo”.
jack jogou pra dentro um bom gole
de conhaque e assentiu com a cabeça. a noite
estava fria. a lua continuava socando as nuvens
com sua cara de gângster mal-humorado.
BILLIE HOLIDAY NA PORTA DOS FUNDOS
quanto abismo cabe
na palavra abismo,
quantos passos até a borda
da estrela-pantera-negra,
quantas brumas brancas,
quantos acordes de blues,
quantas noites sem sono
quantos abalos sísmicos
para sossegar o dragão
que cospe esse fogo azul
chamado névoa, vulcão,
solitude?
BANG BANG NO SÁBADO À NOITE
um olho dois olhos um eco
um estampido morcego
estranho tiroteio de cego
garrafas estilhaçadas no saloon
caubóis saltando de lugar nenhum
balas chegando em câmera lenta
perfurando vísceras sem pedir licença
alguém vai tombar atrás do balcão
outro no banheiro não passa do chão
a face caída na poça de mijo
o jorro de sangue na testa um nojo
maluco faroeste ao vivo e em cores
sábado que vem num mocó da Travessa das Dores
leve a namorada e não esqueça das flores
O REINO UNIVERSAL DA PICARETAGEM
velhacos vendem graças
pra desgraça alheia
almas bem fodidas
igrejas sempre cheias
lorotas milionárias
escroques indecentes
castelos habitados
por ratos e serpentes
celebridades big brother
pastores bad boy
vendendo a mãe o padre
e um lugar ao sol
o paraíso em prestações
melhores juros do mercado
deus meu, que bom negócio
jesus, muito obrigado
V DE VINGANÇA
v — meu nome é vento,
passo sem ser visto
aliso crinas, enlaço dálias, resisto, despisto
mas quando me enfureço
derrubo muros, esmurro rimas, usinas, destruo
São Paulo em chamas, caóticas esquinas
o edifício da Fiesp em ruínas
v — meu nome é vento,
passo sem ser visto
mas num piscar de olhos
espalho teu ouro, arraso tua herança
e deixo inscrito em grafite no topo da torre do céu
meu outro nome
v de vingança
O FIM DA HISTÓRIA EM GOTHAM CITY
gatos pardos gatos negros
gatos loucos e bêbados
atacam o bando de João
Bafo de Onça: urros uivos gritos
e jatos de sangue
na Noite das Estrelas Dopadas
gatas-polaroides cheiram flocos de nuvens
nos banheiros nas lixeiras
de Japatown: batuque de giletes
em tampas de ferro enferrujado
miados miasmas palavras que se derretem
na bruma dos cigarros
caos e crime cheiro de sexo e ruína
nos becos nos moquifos nos cortiços
entre o fog e a fumaça das pastelarias chinesas
bichas assassinas afiam navalhas
e treinam golpes mortais de tae kwon dô
trens abarrotados de linguistas e filólogos
chocam-se contra o muro de vidro do real
o céu-holograma desaba em pedaços
sobre as cabeças dos passantes
enquanto Coringa injeta no braço esquálido
a última gota da ampola
e Batman se retorce como uma cobra
picotada pelas garras das Iguanas de Hong Kong
*****
TOQUE CRÍTICO
Era preciso um poeta como o Ademir Assunção para dar conta dessa falta de sentido, desse mundo que não deu certo. Numa troca de e-mails, o poeta me disse: “Talvez isso que chamamos de poesia seja uma grande sinfonia, polifônica, regida por um maestro desconhecido. Totalmente insano, talvez. Uma polifonia dissonante, às vezes. Convergente, outras vezes”.
Um poeta, talvez, seja esse maestro. Ou, quem sabe, alguém que exerce a arte milenar da ventriloquia, o ato de projetar a voz dando a ilusão de que é um outro quem fala. Para alcançar essa capacidade de falar por várias personas, é fundamental manter o fôlego.
Ao reger referências das mais diversas faturas, do noticiário ao mundo pop, sem hierarquizá-las, o ventríloquo está em nenhuma parte, está em todo lugar; talvez não volte nunca – ele chegou pra ficar.
Fabrício Marques
*****
A Voz do Ventríloquo, Editora Edith (2012)
NOTURNO COM MARIJUANA
1
ouvindo miles davis
trumpete sangrando a carne
da madrugada
um cara só
descalço, meias brancas
fumando um cigarro
e a noite — mistério e
fogo — do outro lado
da moldura da janela
gatos rasgando
sacos de lixo
um cara, século XX
distante do marulho do mar
olhando a lua mal-humorada
bordada no céu
o mesmo céu
que encobre o sono
dos yanomâmis
dos banqueiros ladrões
dos assassinos da otan
e dos meus três amores
2
quase gaze
névoa azul
mísseis explodem
na tela plana da TV
estrelas estrelam
um filme ancestral
no céu hollywoodiano
bostas clássicas nas páginas frias
nenhum dedo de dédalus
assombro, sombras retorcidas
neve no cume do monte fuji
o sândalo perfumado de bodhidharma
pureza e astúcia
nossas melhores armas
3
olhar seu olhar no meu olhar
corpo sobre corpo
pele roçando pele
dos escombros, das cinzas, das ruínas
grafamos nossos gemidos
nas páginas da história
uma outra história:
carícias, olhares, arrepios
4
que seja sábado
que seja mágica
altas horas
sejam sempre agoras
águas passadas a limpo
deusas no exílio do Olimpo
pernas se abrem
peixes mergulham
no azul de um céu de fuligem
a nudez coberta de nuvens
os montes de Vênus, penugens
as aves em vôo, escamas
5
giram esferas
no vazio insone
cometas rasgam
o azul de gases
narcisos cegos
diante do espelho
repetem a cena
no teatro insano:
covas rasas
escavam
campos devastados
e no profundo silêncio
das entranhas
a linguagem dos líquidos
renova seus ciclos:
saliva, esperma, placenta
águas que lavam a terra
águas de Veneza, sujas
pela mão da limpeza
étnica, estranha cópula
bélica, gozo de ogivas
bomba de bactérias
6
“estamos em guerra”
berra o psicopata
5 estrelas
raios estralam
rasantes de águias
o fogo no centro da aldeia
o sangue fora das veias
vermelho, como a cor do vinho
filhote aflito no ninho
atento, o gavião-real-pai
plana, pluma, pousa
estende as asas
para que nada de mau
aconteça
7
cosmonautas sem pouso
boca bebendo na boca
ao som de miles davis
vivemos, nós dois nus,
o grande crime do amor
abril/setembro 1999
*****
TOQUE CRÍTICO
Os poemas de Ademir Assunção e de Antonio Vicente Seraphim Pietroforte* reportam-nos de imediato a uma São Paulo que, na sua expressão mais radical e remota, lembra aquela delineada por Álvares de Azevedo: sexo, drogas, morte, prazer, alucinação, tudo se mescla com a vida da cidade. Seus poemas remetem-nos também à geração beat americana, recriando um universo muito próximo daquele cultivado por William S. Burroughs, Jack Kerouac e Cia. No entanto, nos dias de hoje, o que mais chama a atenção nos versos de A Musa Chapada é o fato de serem politicamente incorretos, isto é, deliciosa e contundentemente incorretos. Ora líricos, ora sagazes, ora divertidos e irônicos, são poemas de leitura fluente e de alto teor polissêmico, que nos colocam diante de vários caminhos interpretativos. Em seu conjunto, cultivam a idéia do prazer em suas mais diversas e contraditórias formas. Chapada ou de ressaca, a musa aqui cultivada traz consigo um mundo fundado em referências consideradas pouco saudáveis atualmente, mas que, por isso mesmo, funcionam como um modo de resistência a uma ordem social que insiste em reduzir o homem à condição exclusiva de trabalhador e de consumidor que mantém sua capacidade de produção. Em nome do princípio de realidade, inventa-se um mundo em que o consumo de drogas e a promiscuidade sexual, por exemplo, são tomados como um mal em si, como se tais formas de prazer fossem antinaturais, desumanas, e não apenas formas que podem ser improdutivas em termos econômicos e envolver algum risco para a saúde. Mas um dia a vida acaba. Sempre acaba. Basta saber disso para ler com prazer e propriedade A Musa Chapada.
Helder Garnes
Prof. Dr. Depto de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH USP
* O livro A Musa Chapada reúne poemas de Ademir Assunção e Antonio Vicente Seraphim Pietroforte + desenhos de Carlos Carah.
*****
A Musa Chapada, Editora Demônio Negro (2008)
Espelhos estilhaçados
Quebro todos os espelhos da casa. Antes de caírem no chão os cacos se transformam em borboletas de asas afiadas. Batem nas vidraças, voam sobre mim, rasgam minha pele. Não há sangue nem dor. Em cada estilhaço imagens compactas, cenas passadas, replays de um filme familiar, sem roteiro, sem direção. Qual delas reprisa aquele golpe de sabre? Aquele golpe preciso que nasce da serena imobilidade do espadachim? Um único golpe, definitivo. Aço mergulhando na carne, expondo a última gota de sinceridade.
Não há golpe, não há espadachim, você está delirando –– ele diz olhando-se no espelho intacto. Ele tem os olhos escuros como petróleo. Sobrancelhas grossas, escuras. Lábios grossos. Pele lisa de bebê. Ele se olha no espelho intacto enquanto fura a orelha com a agulha de tricô.
Suor frio nas têmporas.
Ele olha seus próprios olhos enquanto fura a orelha com a agulha de tricô. Não sei quem ele é. Não sei como o espelho continua intacto depois de ter sido arrebentado em pedacinhos.
Bolhas vermelhas explodem na porta do banheiro. Quentes, muito quentes. Parecem caldo borbulhante de vulcão em erupção. Avançam, crescem, borbulham. Permaneço imóvel, tigre com os músculos relaxados, roçados pela sopa fervente, mas não me queimo. Nenhum pânico.
Vulcões. As próprias palavras dariam todos os sinais se as pessoas prestassem mais atenção a elas. Vulcões. Perceba a força dessas sílabas. Vulcões. Vulcões. É um sinal. Significa que algo que está preso dentro de você tem que se derramar, você tem que lançar para fora toda a lava acumulada, mas lançar de uma vez, com ferocidade, com violência. Uma explosão assustadora, impiedosa. Não se pode ser piedoso quando se entra em erupção –– ele diz, sem tirar os olhos do espelho.
O ar que expele dos pulmões atravessa as cordas vocais e se projeta no ar. Sons. Palavras. Significados. Sentidos. Mas enquanto fala, seus dentes caem, se transformam em pérolas e rolam pelo assoalho. A boca se movimenta mas eu não escuto nada. Como uma televisão sem som.
Zap. Corte brusco. Como? Não sei. Num segundo a cena se modifica. Árvores ressequidas, luz trevosa, um fosso talvez com crocodilos. Estou diante de um castelo medieval. Melhor: diante das grades de um castelo medieval. Talvez grades de um cemitério, não sei. Mas o cenário é medieval, disso tenho certeza. As grades são baixas, pontas em forma de lanças, farpas de gumes ferrosos. Uso uma armadura. Sei que sou eu, mesmo que não possa ver o rosto, coberto pelo metal da armadura. Estendo a mão sobre a seta da grade. Num gesto rápido, um simples movimento para baixo, faço com que a lâmina pontiaguda atravesse a palma da minha mão. Não há sangue. Nenhuma dor. Nenhum sobressalto. Sei que é minha mão. Sei que sou eu. Mas não sei quem é ele parado na frente do espelho intacto, olhos nos próprios olhos, a orelha furada com a agulha de tricô.
Sou sua mãe, sou sua filha e esta noite serei sua –– ele diz, como se adivinhasse a pergunta que eu jamais faria.
Olho seu corpo sob a luz azulada que entra pela janela. Ele está nu. Ele tem uma serpente entrelaçada a uma ânfora tatuada no seio. Ele tem os mamilos duros, posso ver. As penugens que descem do umbigo, eriçadas.
Olho seu reflexo no espelho intacto. Não há reflexo.
Eu sou você mesma e esta noite serei sua –– ele diz. Apenas uma noite. E nunca mais.
No futuro a gente se encontra
Olho o olho que me olha. O olho que me olha olha mas não vê. Não vê nada além da carcaça que está fichada em seu arquivo fotoelétrico como um inimigo que deve ser exterminado. Giro o rosto e olho a lua através da janela. A janela tem um vidro quebrado. Olho a lua através do vidro quebrado da janela e ouço lady Laurie Anderson. Um sax enlouquecido murmura profecias melancólicas no fundo do fundo do meu ouvido. William Burroughs tenta dizer alguma coisa. Não consegue. Um iceberg corta o enquadramento da lua no vidro quebrado da janela. Passa diante da janela. Mister Ice tem um sol negro tatuado na pele de gelo. Presságio. Arrepio. Está chegando a hora.
“Onde você escondeu meus olhos, docktor Normal?” –– pergunta frau Daryl, uma andróide deliciosa, criação perfeita de Linyx II.
Está chegando a hora. Peter Pin faz soar a campainha. Barulho de ferragem sendo triturada. Luz vermelha e estroboscópica cegando os caçadores. Labirintos de linguagem. Peter Pin assume o comando da aeronave equipada com radar a laser. Peter Pin aciona o botão automático do transmissor: “Punks em pânico no shopping sex, Rodrigueixa. Mensagem cifrada: isso aqui está um gelo. Mensagem cifrada: retrace o ataque, Rodrigueixa. O monstro escamoso foi visto ontem no Setor 9, Projeto SP. Mensagem cifrada: 7 astros se alinharão em Escorpião como só no dia da bomba de Hiroxima e eles não estão sabendo de nada, Rodrigueixa. Mensagem cifrada: prepare o ataque, Rodrigueixa. A nave vai varrer as ruas numa altura mais alta, fora do alcance dos tacapes. Está pronto para incendiar a metrópole, Rodrigueixa? Você está certo de que eles não estão entendendo nosso código?”
Peter Pin desliga o rádio sampler. Estende o mapa sobre a mesa. Prega com durex na parede o papiro meio amarelado com as instruções da tribo ecoalizadas. Escreve com tinta invisível: ah, ah, eles pensam que estamos fazendo ficção dentro da ficção que eles chamam realidade. Não vamos crescer, mestre Zen Sato. Vamos seguir. Ouça o tambor. Ouça os tambores do templo da Fernando de Noronha, em frente ao Country Club, onde os b.m. estão amotinados. Ouça os tambores e me responda: já está avistando em seu binóculo o cruzamento África-Japão? Dizem que lorde Byrestone anda caçando vampiros no Blue Valentino. O Rio de Janeiro está em guerra civil. Fawcett Kid manda boletins informando sobre a movimentação estratégica das Neomadonas. Ele não suspeita da rebelião dos intratáveis na velha Londrix.
Deito ao lado de Peter Pin. A nave fica sob o comando do piloto automático. “Você é homem ou mulher, Peter Pin?” “Sou uma chinesa. Sou um cataclisma. Estou fora do seu alcance” –– diz Peter Pin, girando o botão do equalizador. Coxa sobre coxa. Tio Bill se retorce como um lobo bêbado nas caixas de som. Ela tenta. Ele diz ao palhaço-que-se-retirou: “Você não caberá no futuro, Blade Boboca. Você será trucidado pelos radicais da Falange Mutante, Blade Boboca”. Bbbbbzzzzz. Sintonize Rodrigueixa: você sabe de quem estou falando, certo? Claro, Blade Boboca, o imbecil que foi vaiado no concerto de Londrix –– digo enquanto Peter Pin tira a calcinha e deita-se novamente a meu lado.
No telão a nossa frente uma mexicana viciada em cápsulas de spryx pergunta à platéia atônita: “Que és más macho, pineaple or knife?” A mexicana com os cabelos desgrenhados chamada Camila Lopez pergunta ao pó: “Who is who in the planet of my dreams, conde Záppula?” No enquadramento da janela, o sol negro dissolve mister Ice. Clara Crocô estende sua pata sobre a maçaneta da porta. Tio Bill completa a mensagem cifrada na cápsula estereofônica: “Language is a virus”. Peter Pin está gulosa esta noite. Olho o olho que me olha. O olho que me olha permanece no mesmo lugar. “Ele é cego, seu bobo” –– sussurra Peter Pin no meu ouvido. Ah, ah, ah, um olho que olha mas não vê, penso, entrando em delírio.
*****
TOQUE CRÍTICO
É o que não podemos deixar de constatar nos textos muitas vezes surpreendentes de A máquina peluda. O léxico, o ritmo das frases, a disposição das cenas, tudo está marcado por esta concorrência dos meios mais diversos, desde a holografia até a terminologia específica da computação. E como o nosso português do Brasil se dá bem com essas misturas! Nada de sisudez, nada de exclusivismo, de concentração na linguagem que se convencionou subordinar ao que chamaram de “norma culta”. Temos o chafurdar na lama e o vôo para as galáxias.
Galáxias do universo, galáxias de Haroldo de Campos, toques leminskianos e dicção de Guimarães Rosa, o videoclip e a aparente algaravia que nos dão muitas vezes as tecnologias de ponta — algo que ainda está para ser incorporado à nossa linguagem corrente, mas já aparece neste livro estranho e perturbador. Entreguemo-nos, pois, ao envolvente dessa mescla de tudo o que há de mais recente, e ao qual um toque de linguagem arcaica, também muito presente no livro (ao diabo a sequência temporal!), imprime especial encanto.
Boris Schnaiderman
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A Máquina Peluda, Editora Ateliê Editorial (1997)
Escrito na Pele
a pele o melhor papel
para uma escrita de vertigens
poros piras acesas
ao roçar das línguas
papiro de delícias onde se grafam
carícias, ideogramas
numa linguagem de líquidos
:
suores sêmem nanquim
sem rasuras
escrita que se renova na passagem dos dias
mas também se apaga
nada de rastros
dessas páginas de prazeres
marés, luas cheias
ventos varrem as pegadas
de tantos pés pisados: traços delicados
palavras que eriçaram os pêlos
risadas loucuras fúria animal
sem vírgulas reticências
ou ponto final
Olhos Elétricos
ponta de pedra aguda
faces rasgadas, bétulas amargas
você me diz psiu, violência
no jeito de piscar as pálpebras
pássaros tristes entre cães aprisionados
enfim vivemos num cenário
onde crianças com olhos elétricos
vasculham os bolsos de lady solidão
musas sádicas me acariciam
com unhas de gilete
lábios em carne-viva, mil beijos
de medusa — strippers que após a roupa
arrancam a própria pele
e você vira as costas, arrasta-se
como um mamute pelo corredor
arremessando um “boa-noite”
que me acerta em cheio na testa
5 Dias Para Morrer
para hector babenco
morreremos loucos, Ana
os sapatos
novos
em cima da mala
— mala notte
o dia, a pior
foto: olhos úmidos
no vídeo
flashbacks:
a virilha imunda
do marinheiro
os eletrodos frios
nas têmporas
as pílulas coloridas
peixes
num aquário
cujo vidro
quase se quebra
toda vez
que o tocamos
sim, Ana
morreremos loucos
mas
esta noite
dormiremos
juntos
Na Companhia dos Cães sem Dono
trilhas de folhas verdes
tantas vezes pisadas
e sempre frescas
parece cinema mas é só a vida
um rápido gesto e tudo se modifica
sílabas bêbadas voam pela casa
batem nas paredes
libélulas de fino vidro
miragem de sentidos
as luzes do aparelho japonês
sinalizando vertigens
beats selvagens de um baterista kamaiurá
chimbaus, bumbos, timbales
no eco dos tímpanos
sob uma cortina de fumaça azulada
os pulmões chiando
chaleira cheia ao fogo
transbordando
águas de noites malucas
quantas pontas passadas
e vozes vindas do escuro
alguém explicando como pisar em ovos
sem quebrá-los
chistes, chispas, satoris —
de qualquer ponto começa-se
um improviso
de qualquer lugar para outro & outro & outro
até que não se saiba mais
como voltar para casa
Fada Magrinha
o olho no olho no olho no olho
no olho no olho a mão em cima
embaixo entre no meio a barriga
e logo mais ali o seio virando
um pouco mais um pouco a
nuca e na frente a boca e ao
lado orelha os bicos todos dedos
pelos se arrepiam nuvens rodam
vertigens penugens macias a língua
lambe desce passa pelas costas
e a mão desliza mexe acaricia
a coxa a boca suga a boca o beijo
acende atrás na frente em
baixo o corpo todo sente a pele ali
em brasa carne viva dentro fora
perto tão logo perto e dentro o sangue
pulsa os poros se dilatam a pupila
brilha o rosto se ilumina os dedos
descem vão abrindo portas lábios
sugam bebem bem dentro e
abrem a mão na nuca a boca lá
no seio a outra embaixo bem perto
tão perto e entre e o mundo girando
girando girando girando girando
girando girando girando e o olho
no olho no olho no olho no olho
no olho no olho no olho e o mundo
girando girando girando girando girando
girando girando girando e o olho
no olho no olho no olho no olho
no olho no olho no olho
Terapia de Vidas Futuras
quando a vida zerar, quando tudo
terminar, quando a nave
estiver pronta, quando o ponto for ponto
final e, entretanto, o bilhete
de passagem não tiver
destino, rumo, nem direção — quantos
amores, quantos odores, as peles,
as mulheres, os homens, os cães
— e nesse momento fugaz, os senões
serão somente nadas, sermões,
ilusões, frases que se perderam
na fumaça dos cigarros, as fissuras,
as firulas, as ranhuras, guerras travadas
na penumbra das nuvens não vistas,
e no fim do corredor, aquele ponto, um
porto tão inseguro, onde navios
bêbados atracam, seduzidos
pelos silvos das sereias, sob
o obelisco silente das estrelas, tão
belas músicas das esferas
Descida aos Inferninhos
I
eureka — grita o poeta
achei meu estilo, traço rude de fino tino,
quer dizer, daqui detrás dos montes
vai ser ferro na perereca
cuspe seco, pedra cabralina
sinalização de pista de aeroporto
fox-xote caboclo muito louco
paulista neurótico de férias em amaralina
& que se ferrem as fadas
sóis de gelo de falas delicadas
não, vai ser na porrada
verso cortado a facada
bucho de bode, rixa de galo
poesia que bebe a pinga no gargalo
poeta maldito será o benedito
príncipe nefasto das noites de blackout
& assim sendo segue a ladainha
bandeira à meio pau o poeta arreganha a bainha
e sapeca mais uma, assim, digamos
descabela o mico,
enquanto sonha que enraba as ninfas
& bebe o vinho na boca das musas
II
cansado da palavra polida
hímem rompido da beleza clássica
o poeta talha o verso com pedra lascada
primata astuto, ladrão convicto
despedaça pétalas, arrebenta rimas
imola virgens, deflora rosas
segue viagem com um guia cego
desce aos infernos, aos inferninhos
gilete nos dentes, entre travecas e putas
disputa a tapa a taça de cicuta
lambuza os lábios, descobre aos trancos
o mesmo gosto do nobre vinho das festas finas
III
quisera o paraíso, sim, quisera
mas só anjas trapaceiras encontrara
uma tocava harpa, outra cravava os dentes
sacanas amantes dos banqueiros
peles ardentes de sóis tatuados
sóis negros, céus delirantes
sugando esperma em troca de dinheiro
vulgares em suas rimas ricas
musas de luxo na corte das artes
carne a la carte, poesia em postas
máscara bem moldada ao talhe da face
técnicas, sem dúvida
mas sem as dádivas e com eternas dívidas
*****
TOQUE CRÍTICO
Sei que um poeta nunca se completa, mas Ademir Assunção caracteriza o poeta que poderia ser chamado de completo, no sentido dos sentidos: tem olhar oswaldiano, ouvido de músico, tato psicossocial, faro jornalístico e paladar tipicamente brasileiro, embora globalmente antropofágico. Nesta sua nova fornada de poemas temos bom sortimento dessa polivalência: diálogos oníricos e fragmentários entre ancestralidades e modernidades, entre urbanidades e mundanidades, entre divindades e materialidades, entre formalismos e inconformismos, entre clarividências e alucinações. Como todo poeta, Ademir tem seus fetiches, entre eles os animais, escravos e deuses da raça humana, signos de nossas emoções mais abjetas e sublimes. O poeta os alimenta em seu zoológico e se amamenta neles em seu zodíaco, numa cumplicidade primata, inata e abstrata. Ademir Assunção é um canibal mamífero e onívoro. Poeta pleno, portanto.
Glauco Mattoso
*****
Zona Branca, 1a. edição: Editora Altana (2001) // 2a. edição: Travessa dos Editores (2006)
15.01
O Guardião se cansa de guardar a entrada da Gruta Sagrada e resolve dar uma banda pelo Túnel do Tempo. Moléculas se desintegram, líquidos se misturam, tigres saltam de um lado a outro do Estreito — nuvens vermelhas encobrem o Jardim da Lua Mundana. Livre de vigilância, a Gruta Sagrada se abre aos bárbaros, como uma prostituta em quarto-minguante. Enfim conhece os espasmos mais secretos.
07.03
A Loucura compra um chapéu com flores coloridas na aba de feltro. Depois vai pra cama com o maior inimigo do namorado. De manhã, chora lágrimas de silicone quando olha no espelho e não vê ninguém.
10.03
Três dias revirando gavetas e olhando paredes descascadas. O Amor é cego. Nas noites de frio, abraça a amiga Raiva e bebe conhaque barato num balcão empoeirado. O garçom tem cara de latão enferrujado.
27.03
Não vai haver amor se não houver rebeldia.
29.04
Pétala de lata, lábios de gilete, unhas de vidro afiado: minha musa sádica. Ainda beberei o veneno da sua saliva.
13.05
É como se um pássaro pousasse na pálpebra do dragão adormecido. É como se o dragão adormecido sonhasse com um planeta habitado por flores de oxigênio. É como se as flores de oxigênio roçassem a têmpora de um samurai enlouquecido. É como se o samurai enlouquecido só existisse no sonho do poeta que sonha com um dragão sonhando. É como se nada disso existisse. É como se fosse pintura de Matisse. É como se fosse cena de um filme de Kurosawa: sonhos.
20.05
Fogueira no canteiro central da Paulista na madrugada. Uma troupe de mendigos em volta do fogo. Vislumbre, cena de cinema: parece uma tribo ancestral em pleno cenário Blade Runner. Qual será a realidade que arde nos olhos desses mendigos? Rain Dogs: cachorros que se perderam nas brumas da madrugada e não sabem mais voltar para casa.
05.06
Qual o sentido dos cinco sentidos sentidos dentro de um labirinto de espelhos que refletem imagens em 10 milhões de sentidos — indagava-se o Senhor dos Sentidos numa noite de temporal. Que Ninguém humano se atreva a sentir o que estou sentindo — ecoava o Monstro Ninguém no outro lado da planície, lá, onde o tempo era bom mas a alma instável.
23.06
Vento que vem de longe, abra-me as portas da percepção e as mantenha abertas. Como um grego antigo diante do mar, como um primata segurando o fogo primordial nas mãos. O primeiro olhar sobre os vales cheios de perigo. O deslumbramento de uma mente que descobre o véu da Grande Mãe.
23.10
Um tigre saindo de dentro de uma caverna. Passos lentos, olhar fixo na caça. Não adianta correr. O destino está selado nesta tarde. Alguém vai sentir dor.
09.11
Boca macia, lábios inchados, cheiro de fêmea excitada na madrugada. Não perca esse instante, garota. Do que você tem medo?
18.11
Caco de vidro rasgando a superfície da água. Um peixe-miragem mergulha no espelho, crispa as escamas em seu próprio reflexo, engole-se a si mesmo, desaparece no lago profundo de seu avesso.
21.11
Gilete entre os dentes, Lili Maconha suga o esperma dos meninos na Grande Cidade da Noite Estrelada. Quando está só, chora lágrimas de sangue. Não é triste. Nunca tem medo. Está acostumada com o beijo do tubarão.
28.11
Asas de cera para o dragão. Chapéu de cimento para a medusa. Hidra cheia de minhocas na cabeça. Legiões de formigas atravessam o espelho de Shiva. Do outro lado há um lago de leite de moça. Sim, Brahma, esta noite haverá um banquete. Todos os mendigos do reino foram convidados. Sultões serão insultados. Os tigres estão esfomeados nos jardins do Palácio do Peixe Sol.
*****
CINEPOÉTICA
Há alguns anos venho me interessando por mitologias. Ao mesmo tempo que buscava um domínio consciente da escrita em meus primeiros trabalhos poéticos, me fascinava pelos conteúdos inconscientes que, acredito, afloram em toda obra artística. Em algum lugar entre o impulso criativo e a elaboração de um poema (um objeto ou processo de linguagem) sentia a presença de uma certa brisa ancestral. Será que entre este impulso criativo de um poeta na virada para o terceiro milênio da era Cristã e o de um “xamã” que pintava enormes bisões numa caverna de Lascaux, não existiria nenhuma ponte, nenhum sentimento comum de perplexidade, horror e desafio? — indagava a mim mesmo. Daí, talvez, o interesse pelas mitologias, especialmente aquelas mais “primitivas” — como os “civilizados” costumam designar tudo aquilo que escapa à lógica de um mundo organizado segundo critérios puramente racionais (se é que podemos chamar o capitalismo predatório globalizante de racional).
Cinemitologias tem a ver com esta pesquisa.
A estruturação do livro em datas remete, evidentemente, a idéia de um diário. Trata-se, porém, de um diário do sono, do sonho, do tempo dormido. O que busquei nesta pequena aventura literária foi um fluxo vertiginoso de imagens, como os processos oníricos, reciclados e transformados em linguagem escrita. Como um cinema do inconsciente.
Ademir Assunção
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Cinemitologias, 1a. edição: Ciência do Acidente (1998) // 2a. edição: Atrito Art Editorial (2002)
Rebelião na Zona Fantasma é essencialmente um disco de poesia. Mas não somente poesia falada, com leitura linear e fundo musical. É mais que isso. Um disco em que linguagem poética e linguagem musical se fundem de tal forma que a palavra se reveste de entonações, ritmos, divisões e prosódias inusitadas, dentro de surpreendentes estruturas de blues, baladas, jazz e rock’n roll.
As raízes desse trabalho remontam ao ano de 1996, quando o poeta Ademir Assunção, o violonista Madan e o percussionista Ricardo Garcia montaram o show Psicolérico, apresentado em diversos palcos. Representa, portanto, nove anos de amadurecimento na busca da simbiose entre palavra e som, uma estrutura dentro da outra, formando uma terceira.
Representa também uma atitude nova. Se em outras décadas diversos poetas se tornaram letristas de música popular, aqui e agora, o próprio poeta toma a frente, gravando seu CD e montando seu espetáculo, com a colaboração de músicos e compositores. Nisso, está recuperando uma tradição ancestral (em que os poetas eram trovadores e a poesia era entoada nas Ágoras (arenas gregas), em volta das fogueiras ou no meio das selvas). Porém, recuperando essa tradição com uma poética urbana e dentro de um contexto con-temporâneo, com instrumentos acústicos, elétricos, samplers e equipamento eletrônico.
O resultado desta intensa pesquisa está neste CD, que tem a participação fundamental dos músicos Madan (violão e vozes cantadas), Ricardo Garcia (percussão), Luiz Waack (guitarras, violões e sampler), Mintcho Garramone (baixo), Eduardo Batistella (bateria), Daniel Szafran (teclado e piano) e Celmo Reis (violino). Tem também as participações especiais de Zeca Baleiro e Edvaldo Santana.
Produzido por Luiz Waack e Ademir Assunção, Rebelião na Zona Fantasma vem à público como uma experiência inovadora na intersecção entre poesia e música.
E se quisermos esquecer os conceitos e utilizarmos palavras mais simples, podemos dizer apenas: presta atenção que isso aí é poesia, blues e rock’n roll.
Produzido por:
Luiz Waack e Ademir Assunção
Arranjos de base:
Madan, Ricardo Garcia, Luiz Waack e Ademir Assunção
Fotos:
Juvenal Pereira e Jacqueline Sasano
Desenhos Capa e Encarte:
Paulo Stocker
Projeto Gráfico:
Eduardo Rodrigues
Masterização:
Maurício Grassmann
Gravado e Mixado por Luiz Waack no H Studio Waack
entre junho/2003 e março/2005
Palavras e sons. Um poeta falando e três músicos tocando. Viralatas de Córdoba é isso. Mas não é tão simples assim.
Cada música foi composta a partir das cadências, dos ritmos, das intenções de cada verso e de cada poema. Foram revestindo as palavras e as palavras foram se revestindo com os sons, como o esqueleto é revestido de carne e a carne reveste o esqueleto.
O esqueleto é só esqueleto. A carne é só carne. Quando estão revestidos um pelo outro, se tornam um corpo. Um corpo que pensa. Um corpo que sente. Um corpo que se apresenta ao mundo. Um corpo falante, pensante, delirante.
Este corpo está cheio de intenções.
Este corpo é um híbrido de poemas, baladas, blues, rock’n’roll, jazz, sentidos e sons que se harmonizam, sons e sentidos que se completam. Sentidos e sons que podem tirar o sono. Sons e sentidos que podem embalar o sono.
Este corpo não quer dizer nada. Ele está dizendo. Não são só as palavras que dizem. Cada riff de guitarra, cada linha de baixo, cada levada de bateria, cada vocalise, cada desenho melódico do cavaco-banjo, cada sequência de acordes do violão, cada nota do berimbau de boca está dizendo algo.
Este corpo, agora, é indivisível.
Este corpo tem desejos manifestos.
Este corpo quer tocar outros corpos.
Este corpo tem alma.
E se você ainda tem alma, este corpo vai tocá-la.
Ou não.
Banda Fracasso da Raça é:
Ademir Assunção (voz, poemas)
Marcelo Watanabe (guitarras, violão, bandolim, cavaco-banjo, vocais)
Caio Góes (baixo elétrico e baixo fretless)
Caio Dohogne (bateria)
Participações Especiais:
Fabiana Cozza
Thaís Piza
Ricardo Garcia
Arranjos de base:
Banda Fracasso da Raça
Produzido por:
Cássio Martin e Ademir Assunção
Projeto Gráfico:
Bruno Brum
Foto da banda:
Juvenal Pereira
Gravado, mixado e masterizado por Cássio Martin
no Pro-Studio SP, entre abril e agosto de 2013.
"Afastando-se de um lirismo do eu, sentimental e auto-orientado, o sujeito lírico de Ademir Assunção deixa-se afetar pelo mundo e é “inseparável dos objetos que afetam seu corpo” (COLLOT, 2013, p.224) e se inscrevem no seu olhar que bem pode ser o núcleo das experiências que os versos veiculam, mas, ao mesmo tempo, não faz dessas experiências pretexto para falar de si, ao contrário: é em termos de transitividade (abertura) e alteridade que essa poesia se constrói. "
(Nueva Revista del Pacifico nº 71, 2019)
http://www.nuevarevistadelpacifico.cl/index.php/NRP/article/view/155
Resumo: Este artigo tem por objetivo discutir, a partir de uma perspectiva pós-utópica, tal qual proposta pelo poeta, crítico e tradutor Haroldo de Campos, as articulações entre lirismo e política na obra de Ademir Assunção, especialmente aquelas presentes no livro A voz do ventríloquo, vencedor do Prêmio Jabuti (2013), maior prêmio da literatura brasileira. Entende-se aqui pós-utopia como uma poética da agoridade, engajada, crítica do futuro como um devir idealizado e que atenta ao passado, procurando encontrar, na tradição, e no posicionamento político crítico da desigualdade e do conservadorismo formas de reinvenção do presente. Da perspectiva aqui adotada, a poesia de Ademir Assunção, herdeira, sob muitos aspectos da poesia de Haroldo de Campos e dos poetas concretos, assume, desde a publicação do primeiro livro do autor, em 1994, papel crucial no cenário brasileiro contemporâneo, atravessado por séria ameaça à democracia. Com elevada carga inventiva e poética, a poesia de A voz do ventríloquo repropõe, nos termos haroldianos, a substituição do princípio esperança das vanguardas pelo princípio realidade que conclama à ação.
Palavras-chave: A voz do ventríloquo, Ademir Assunção, lirismo, política, pós-utopia.
Abstract: This article aims to discuss, from a post-utopian perspective, as proposed by poet, critic and translator Haroldo de Campos, the articulations between lyricism and politics in Ademir Assunção’s work, especially those present in the book The Voice of the Ventriloquist., winner of the Jabuti Award (2013), the largest award in Brazilian literature. Post-utopia is understood here as a poetic of agority, engaged, critical of the future as an idealized becoming and attentive to the past, seeking to find, in tradition, and in the critical political positioning of inequality and conservatism, forms of reinvention of the present. From the perspective adopted here, the poetry of Ademir Assunção, heiress, in many ways the poetry of Haroldo de Campos and the concrete poets, and has assumed, since the publication of the author’s first book, in 1994, a crucial role in the contemporary Brazilian scene, nowadays crossed by serious threat to democracy. With a high inventive and poetic burden, the poetry of The Voice of the Ventriloquist proposes, in Haroldian terms, the replacement of the hope principle of the avant-garde with the reality principle that calls for action.
Keywords: A voz do ventríloquo (the voice of ventriloquist), Ademir Assunção, lyrism, politics, post–utopia.
Este trabalho insere-se no conjunto de estudos voltados para a articulação entre lirismo, política e pós-utopia na poesia brasileira produzida entre 1980 e 2018, entendendo o conceito de pós-utopia no sentido atribuído ao termo por Haroldo de Campos, como questionamento ao cenário político brasileiro e latino-americano dos anos de 1980, quando o poeta formula o mesmo.
Diante de um cenário político que se agrava a cada dia no Brasil, avaliação da presença da pós-utopia como dispositivo de leitura do contemporâneo e resistência democrática em poetas das gerações compreendidas entre 1980-2018 torna-se crucial. Nessas obras, as relações entre poesia e política, suas tensões e o posicionamento lírico respondem a um modo de ser e estar no mundo que ora se afasta ora se aproxima de uma visada que tem na pós-utopia aspecto norteador, com ênfase para uma poesia do agora, do tempo presente, crítica do futuro, atuante, mesmo que erigida entre as ruínas do tempo, do espaço, da cidade ou do sujeito, expostos ao conturbado cenário político, à instabilidade econômica – pós-ditatoriais nos anos 1980 – ou, ainda, atualmente, assombrados pela ameaça do retorno do autoritarismo, cenário com o qual Haroldo, falecido em 2003, não poderia contar.
Ademir Assunção, que é também jornalista e atuou nessa área em importantes veículos(2), entrevistou Haroldo de Campos em 30 novembro de 1996. A íntegra da entrevista está publicada em Faróis no Caos: entrevistas de Ademir Assunção, Editora Sesc, 2012; nela, o poeta defende que a cultura e a tolerância nascem em um ambiente dialógico. Diz Haroldo:
“Bom, ou você é pessimista radical e não vê nenhum futuro para a humanidade – e se apoia, para essa visão, na própria natureza humana tal como é descrita desde o Eclesiastes, o homem que é predador do homem, o opressor que está sempre por cima do oprimido e não quer ceder nada, basta olhar para as elites brasileiras que não querem ceder nenhum pedaço de pão – , ou você tem uma visão informada por aquilo que é chamado de “utopia concreta”. […] A cultura, a tolerância, nasce em um ambiente dialógico. Onde existe monologia, fundamentalismo, há ditadura, opressão. (CAMPOS, 2012, p. 26).”
Haroldo faleceu em agosto de 2003 e não viveu para ver as possibilidades reais de estabelecimento da democracia no país, por meio de políticas levadas a cabo por um governo implicado com a superação da desigualdade e que apenas começava a dar sinais de melhora até o golpe de 2016; tampouco viveu para assistir ao desalento em que mergulha o Brasil diante de uma grave crise política institucional, estabelecida nos últimos três anos, que atravessa os poderes e as diferentes instâncias da sociedade, culminando na ascensão da extrema direita.
Trata-se de entrevista importante porque o posicionamento político de Haroldo de Campos surge de modo contundente, ao mesmo tempo importa para que, a partir do que ele diz, seja possível compreender a relação entre política e pós-utopia e, ao mesmo tempo, dada essa relação, a função polifônica da poesia, sua dimensão questionadora, crítica e subversiva no sentido de que denuncia escombros, colocando, por assim dizer, as “palavras” nas feridas, ou, se quisermos, traduzindo-as, transcriando-as, nomeando instâncias cuja identificação, sem a poesia, seriam um ponto de impossibilidade, dada a situação de “experiência e pobreza” (3), mas que a operação tradutora/transcriadora recoloca em foco.
Assim como para Benjamin a tradução devolve ao original algo que lhe é essencial, a transcriação luciferina de Haroldo, enquanto poética pós-utópica, abre no corpo da experiência história que a poesia conta/canta a possiblidade de novos relatos, devolvendo à tradição transcriada – a sua essência. O que quero dizer é que a criação, em última instância, é sempre transcriação e que, para Haroldo, a partir dos anos de 1980, a transcriação alinha-se com o que ele chama de poética pós-utópica, fixada na agoridade, crítica do futuro, recriadora do passado.
Chamo a atenção para o fato de que Haroldo de Campos vê na tradução a operação pós-utópica por excelência e a razão dessa ligação está atrelada ao pensamento de Walter Benjamin; deste turno, o Benjamin de “As tarefas do tradutor”, porém, como disse acima, tomando a tradução não como operação angélica, mas luciferina, que desbabeliza (ou re-babeliza) o mundo, repara ruínas (4), como “vivissecção implacável” (CAMPOS, 2005).
Como Haroldo, muitos outros poetas vêm construindo, nos últimos 30/40 anos, obras que de um lado reconhecem o valor da democratização e de outro, ao não fazerem concessões às críticas à sociedade capitalista, problematizam o contexto e, de muitas formas, anteciparam o cenário é que atravessado pelo país hoje. Nesse espectro, é contra a monologia de que fala Haroldo e em defesa da pluralidade que se situa a poesia de Ademir Assunção, cuja leitura farei a partir do conceito de pós-utopia haroldiano (CAMPOS, 1997) e das “Teses sobre o conceito de história de Walter Benjamin” (BENJAMIM, 1996), em diálogo com outros referenciais que surgirão aqui e ali ao longo deste texto. Tal poesia desafia a tendência à sedimentação tanto da tradição poética, pelo rigor e inventividade, demonstrados na variação das formas dos poemas, na preocupação com os expedientes da expressão e do conteúdo, quanto pela desestabilização da barreiras entre temas, de modo que lirismo, política, cultura e subjetividade encontram-se amalgamados na obra de Ademir Assunção, articulando, um “pensamento-paisagem”, ou seja, um pensamento que implica, como estabelece Michel Collot (2014), um local, um olhar, uma imagem, a experiência sensível do sujeito lírico fora de si (5).
É na desapropriação de si, na rejeição de um “eu” narcísico e egoico que o sujeito poético se realiza, abre-se para a alteridade do mundo. Afastando-se de um lirismo do eu, sentimental e auto-orientado, o sujeito lírico de Ademir Assunção deixa-se afetar pelo mundo e é “inseparável dos objetos que afetam seu corpo” (COLLOT, 2013, p.224) e se inscrevem no seu olhar que bem pode ser o núcleo das experiências que os versos veiculam, mas, ao mesmo tempo, não faz dessas experiências pretexto para falar de si, ao contrário: é em termos de transitividade (6) (abertura) e alteridade que essa poesia se constrói.
A persona poética marcada em muitos, ou talvez a totalidade dos poemas, de A voz do ventríloquo não é a expressão de movimentos interiores tautológicos, mas se faz do contato com o exterior, experimentando o mundo tanto quanto este o experimenta, espanta, choca, encanta, decanta, arruína, azula. Sobre esse cruzamento de um olhar sensível para o mundo – sensível aqui diz respeito àquilo que se funda no que afeta o poeta – a dor, o amor, o espanto, a miséria – que se instaura, a meu ver, uma cisão entre aquele que olha e a coisa olhada (sentida) e que a poesia tenta circunscrever à existência, ultrapassar, grafar na “pele, na palma, na pálpebra” com a palavra (ASSUNÇÃO, 2012 [sp]), porque, afinal, como diz Bonsusan (2015), “existir é estar no meio das coisas que existem, expostas a ela, como uma pele” que o olhar figurativiza, encena.
Acompanhando o pensamento de Didi-Huberman, o que se estabelece na poesia de Ademir Assunção é a consciência de que há uma cisão de ver (no ato de ver), pois aquilo que se vê remete a uma obra de perda, a um vazio, na medida em que há sempre algo do objeto olhado que escapa a quem olha, um hiato entre a pele que sente o mundo e a si mesma e o sentido das coisas. O gesto de ver migra do ter, ou seja, da sensação de que é possível apropriar-se do objeto pelo olhar, para o ser, quando se sabe que, mais do que ter o que se olha, é necessário ser um pouco (ou muito) do que se olha, doar-se para o que nos olha.
É também saber que não há um ser em totalidade naquele que olha, mas sempre entre cacos, fraturas, faltas, pois “ver é sentir que algo inelutavelmente nos escapa, isto é, quando ver é perder” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 34), é também um vazio. Na poesia de Ademir Assunção, como um desafio à oquidão – ou por que não, como um mergulho em busca de sentidos, a palavra poética preenche as lacunas do mundo visível, “sutura angústias” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 40), reinstaura o mundo, questionando-o e desafiando-o, também preenche as lacunas daquele mesmo mundo visto de olhos fechados (7), nos recônditos da memória, para logo vê-las todas dissipadas, como se dissipa a água do mar que preenche um buraco na areia da praia para logo ser absorvida pelos milhares de grãos, inundando-os e sendo por eles granulada.
Por isso, a poesia de Ademir Assunção não está nem na interioridade, nem na exterioridade que busca a objetivação ou o engajamento panfletário, mas na tensão dialética de um olhar sensível que se doa e se empresta ao universo que o circunda, à pele da vida, “suas fissuras, ranhuras”, “nos trilhos do metrô” entre “fumaças de cigarro”, no lirismo de um monólogo de Lili Maconha, ou no tom ácido de fábulas contemporâneas (8).
O olhar das coisas que devolve o olhar do sujeito, é fundamental em A voz do ventríloquo, obra que é objeto deste artigo. Acompanhando o que disse acima, o sujeito poético parece ter consciência dos hiatos do olhar, sobretudo porque este se dirige, em muitos poemas, para ruínas que o olham de volta –que lhe revolvem o ventre, de onde vem a voz do ventríloquo, de modo que ver e falar/escutar são pedras angulares da obra. Entre a voz e o olhar, a linguagem toma o leitor de chofre, direta, precisa, mesmo quando as imagens proliferam em aquários, semáforos, leões, bruxas e risadas ou ao som seco de um blues pela porta dos fundos enquanto um homem encostado num poste acende um cigarro, ferido pela partida da amada ou pela cidade atroz, enquanto mais adiante medita sobre a origem do mundo.
Todos os temas são caros a essa poesia que ao mesmo tempo que se engaja com a denúncia de um mundo vil, não deixa de se engajar com a linguagem e de se perguntar sobre o amor; aliás o amor é um tema importante a percorrer a poesia de Ademir Assunção. Na “leveza da brisa” ou nas “tantas pontas soltas”, as palavras deste poeta, considerando um conjunto de poemas observados, desde seu primeiro Livro LSD Nô, de 1994, à Voz do Ventríloquo (2012), ou mesmo em Pig Brother (2015), o amor tem sua hora e sua vez e é importante para este poeta; merece ser cantado, seja em meio à perda, seja para tingir de suavidade os oásis, os corpos, a vida que pulsa, os olhos-corpos que se afagam sob lençóis.
Afinal, quando um poeta ama, o amor não silencia e os versos simplesmente brotam, como diria Jorge Luís Borges, são inevitáveis. Quando um poeta se engaja pela linguagem, o silêncio vem vestido de formas sutis ou grandes profusões do verbo; quando um poeta se engaja na denúncia da miséria humana ou do mundo, ou ambas, também os versos irrompem – a matéria do poeta é a língua, um poeta não se cala sobre o que sente, porque é esta a sua condição de existir, sua sina: se ama, se se indigna, se sofre ou se alegra é na palavra e pela palavra que o poeta pode haver-se consigo, com os afetos, com a vida ou a morte, com a injustiça ou a democracia. Só não é possível escrever sobre o que não o toca a fundo, o que não pulsa, o que não acende ou o que afoga, sobre o que é protocolar, seja a política, seja a metalinguagem, seja o amor ou o lirismo – não é possível escrever sobre o amor quando não se ama, tanto quanto é inevitável escrever sobre o amor quando se ama. E isso vale para todos os temas, que aliás não devem, a meu ver, ser hierarquizados, nenhum se sobrepõe ao outro, mesmo que haja um pendor para o engajamento e para a luta ou até para questões existenciais, todos os temas são caros a esse poeta, amalgamam-se, não se excluem.
Trata-se de duas fidelidades aqui, uma ao que o poeta sente; outra àquela urgência de transformar a matéria sentida em verbo, ou “transformar o vivido em verbo”, para dizer com Ferreira Gullar, porque disso parece depender a vida do poeta, como a vida do artista depende da cor e da forma, como a vida de um músico depende dos acordes. Muitas coisas podem levar um poeta ao silêncio, mas nada ou nenhum sentimento podem levar ao silêncio um poeta que olha o mundo, ciente da inelutável cisão de ver, como Ademir Assunção. Nesse caso, só há silêncio, seja para qual tema for, da política ao amor, para o que, me parece, não o toca, não o mobiliza, para aquilo que não chega a arranhar o espesso tecido da vida. A voz do ventríloquo é exemplar para iluminar essas considerações.
O livro, publicado em 2012 e agraciado com o Prêmio Jabuti, o mais prestigiado reconhecimento da literatura brasileira, abre-se com a epígrafe de Sérgio Sampaio: “o pior dos temporais aduba o jardim” (9). Essa epígrafe atua como um orientador de leitura na medida em que os poemas se apresentam ao leitor e dão a ver um sujeito poético vindo do temporal, ou em meio ao temporal, que o impele ao futuro, como o Anjo de Klee, lido por Walter Benjamin (1996, Tese IX Sobre o Conceito de História), permitindo situar o próprio livro, a linguagem que ele encena, como a matéria-terra que a chuva forte aduba, faz florescer e vicejar, na agoridade dos poemas, no jogo de vozes, entre as inúmeras referências que permeiam, mais uma vez, o trabalho de Assunção.
Em A voz do ventríloquo, os escombros do mundo, do amor, da cidade se confundem com os escombros do sujeito, que recolhe os restos dos naufrágios e reconstrói a nau da experiência com as velas das dores, o leme da palavra, o lirismo de quem ainda acredita na poesia sem âncoras, vertiginosamente mar adentro:
A VERTIGEM DO CAOS
um estranho, entre estranhos, nômade
entre escombros, procuro sem
procurar, um não-lugar, um ventre
de látex de uma replicante quase
humana, as ruínas enfim apaziguadas
da bombonera, as águas que refluem
por dentro da baía de todos
os infernos, ali, onde a eternidade
são os dentes de estanho do último sol
mastigando oceanos como fatias
de pizza lançadas ao ocaso
do fundo de um naufrágio, ante
a dança misteriosa de um feiticeiro cherokee
(ASSUNÇÃO, 2012, p. 46)
A ÚLTIMA LIQUIDAÇÃO
quase nada mais a dizer
a não ser os súbitos lumes
dessas luas opacas, cabeças
de bonecas destroçadas,
clarões de nenhum lugar na mente
destronada, o ônibus em chamas
na noite escura
a fuligem sufoca o céu
e o outdoor anuncia a última
liquidação dos sentidos,
sílabas caídas, penduradas, frases
que não dizem nada,
ante o rugir das labaredas
e o cheiro de gasolina queimada
(ASSUNÇÃO, 2012, p. 76)
ÀS VEZES AS NOITES SÃO FRIAS
risadas chegam de longe, o vento
sobra de ontem, nada que a brisa
dissipe, a mancha vermelha de sangue,
um anjo com asas de areia, pousado
no beiral da janela, treme de frio, inútil, uma
lástima, no olho esquerdo uma lágrima,
chove sobre os gerânios, cavalos
tremulam as crinas, sombras vestidas
de névoa, sirenes dobram esquinas
luzes se apagam na sala, espelhos,
gilete, uma bic, a pilha de pratos
na pia, a garrafa de vinho vazia
a mancha vermelha de ontem, nada
que a brisa dissipe, o vento sobra
de sangue, risadas chegam de longe
(ASSUNÇÃO, 2012, p. 47)
COMO SE CHAMA?
a tarde aspira o aroma do incenso
a vida dura um tempo
mínima moldura onde flora e transfigura
o que se fez fundo, beijo, iluminura
e como se chama mesmo aquilo que se faz
em nós, nômades em paz na borda de um oásis,
a brisa breve valsa sem nenhum alarde
névoa espessa, uma vez desfeita, nunca mais
(ASSUNÇÃO, 2012, p. 68)
Ouvem-se na caixa acústica dos versos, a algaravia do erudito e do popular, da cultura de massa, o silêncio do zen, o rock, a voz de personagens de quadrinhos, sons dos ritos africanos, a voz do ventríloquo que é falado e fala e a voz do sujeito poético dos poemas, lírica e contundente, diante da experiência que lhe invade os sonhos, os sentidos, brisa breve valsa, a vida mesmo – entre ruínas, mas também com o leve aceno de memórias afetivas, tênues e sutis como madeleines proustianas, iluminuras.
O poema “Declaração de Bens” que atua como uma espécie de prefácio anuncia esse duplo caminho, entre o amargo e o leve, a algaravia (da vida esvaída e que ainda vale ser vivida) e o silêncio (do mar do espanto), assim:
talvez cinco ou seis destes poemas
prosperem na eternidade
talvez mais, talvez nenhum
já o esquecimento será eterno
exceto o instante, este istmo, este agora
que se grafa na pele na palma na pálpebra
e se esgarça no mar do espanto
(ASSUNÇÃO, 2012 [sp])
O livro está organizado em sete seções chamadas “diário”, seguidas de títulos específicos que se articulam ao conteúdo dos poemas em cada seção, e duas seções finais, deste modo: Diário do Ventríloquo – Primeira Noite (Poetry is dead (pequena fábula mundana)); Diário do Ventríloquo – Segunda Noite (Sarja Freta); Diário do Ventríloquo – Terceira Noite (Sangue no supercílio); Diário do Ventríloquo – Quarta Noite (Driving in the dark side); Diário do Ventríloquo – Quinta noite (Aquilo); Diário do Ventríloquo – Sexta Noite (Fábula bufa numa tarde chuvosa); Diário do Ventríloquo – Sétima Noite (Um quilo menos disso); Miséria Crítica; O Fim e o Início.
A estrutura do livro, meticulosa, revela logo ao leitor mais avisado que se trata de um projeto. As sete noites do diário contrapondo-se aos sete dias de criação, são um sinal de menos, corroborado pela “Miséria crítica”, mas afirmados pelo fim e o início: “sem isso, nem isso/esse poema/ : o fim e o início”, poema erótico, uma espécie de elogio à vulva, à vagina, à mulher, ao amor e ao gozo, em diálogo com o famoso quadro de Gustave Coubert (1866), “A origem do mundo”, faz pensar que tal erotismo precisa também ser compreendido em chave mais ampla, como pulsão de vida ou mesmo como pulsão criativa, pós-utópica, nas palavras de Haroldo de Campos, uma utopia concreta, que “se não pode mudar o mundo, busca mudanças na vida, por meio da poesia” (10): uma poética que se ancora no presente, que revisita o passado e é crítica de um futuro idealizado, mas que flagra o aceno da vida na última janela do trem:
A VIDA PASSA NA JANELA DE UM TREM
Para Boris Schnaiderman
quantos giros por aí, até me perder
de mim, e encontrar lá na frente, um outro,
eu mesmo, enfim, no rodopio,
deste mundo maluco, o passo
às vezes em falso, pisando o chão sujo
da américa, confuso caminho no tempo
e no espaço, poema
sem métrica fixa, estrela muda, quase
nula, graveto estalando na tulha, um grão
no pó da galáxia, ouço tiros, vejo música,
escrevo sinos, o sangue fluindo no pulso,
céus de ontem, azuis ou brancos, trens
que partem sem hora ou destino,
e na última janela a vida passa e acena,
chapéu de flores, sorriso nos lábios,
por detrás do vidro, a límpida face,
nos convidando pra próxima sessão de cinema
(ASSUNÇÃO, 2012, p. 71)
Os poemas, muitas vezes extremamente líricos, conferem singularidade e lugar de destaque para A Voz do Ventríloquo na cena da poesia brasileira atual, sobretudo porque, seguindo a seara de Haroldo e de Leminski, a insurgência dos beats e da contracultura, a poesia de Ademir Assunção tem no manejo ímpar da linguagem o grande alicerce. Está aí, a meu ver sua força, estética, ética e (pós)utópica.
Quando o poeta situa-se diante das ruínas, é capaz de perceber que o princípio-esperança das vanguardas e muitos dos sonhos da esquerda malograram; em seu lugar é preciso haver um outro modo de pensar o devir. No ensaio sobre a pós-utopia, Haroldo de Campos sustenta que: “Sem esse princípio-esperança, não como vaga abstração, mas como expectativa efetivamente alimentada por uma prática prospectiva (os sonhos diurnos), não pode haver vanguarda entendida como movimento […] Sem perspectiva utópica, o movimento de vanguarda perde o seu sentido” (Campos, 1997, p.266,268). Sugere que ao princípio-esperança de Bloch coloca-se, a partir de meados dos anos 1970, o princípio-realidade (11). A meu ver, os poemas de A voz do ventríloquo vão desde a constatação do caos, ácida e crítica, ao alumbramento diante da vida, mesmo que seus matizes sejam ínfimos. É como se fosse possível reencontrar a utopia, a urgência da vida – como destaca Fabrício Marques na orelha do livro, em meio aos entulhos, ao sangue, à exploração, à desilusão de uma solitária garrafa de vinho vazia sobre a pia entre a louça acumulada. Esse reencontro da utopia vem, em termos benjaminiano, pela herança cultural que o poeta incorpora e intensifica em seus versos.
Nesse sentido, a despeito da carga distópica e do ceticismo de muitos poemas, a organicidade da obra não leva à desilusão, tampouco é um elogio de escolhos, mas é pulsação de linguagem, por meio da poesia crítica e, simultaneamente, da crítica a certo tipo de poesia que tem a voz com diarreia, para falar com João Cabral; por meio do espanto, do alumbramento, do fim e do início deste corpo que se chama poema e é feito de versos, muitas vezes marcado pelo enjambement, a íntima discórdia da poesia, nos termos de Giorgio Agamben (12) dá o tom ao ventríloquo, este eu do poeta que é um outro.
O enjambement é uma figura singular para dar conta da imagem do ventríloquo e de sua voz, da discórdia, ou do desacerto entre ela e a voz do eu-poético, que se buscam uma a outra, no âmago do sujeito – no ventre – mas também nas ruas, nas pontas soltas, que já aguardam outras tantas logo ali na última janela do trem, no bang bang de sábado à noite, “no sol de ontem/ atrás das nuvens”. Se de um lado o enjambement é o despenhadeiro do verso, de outro também é o expediente pelo qual um verso em abismo agarra a mão que o verso seguinte lhe estende, por isso, a voz do ventríloquo que corre pela seara do verso, como arado (13), de um verso a outro, é denúncia e acalanto. É a voz de Ninguém e de Alguém (14) à espera.
O que muda, efetivamente, segundo a leitura que Haroldo de Campos faz para a contemporaneidade, é que o pós-utópico passa a pensar no agora em virtude de um necessário adensamento do tempo presente, impondo uma leitura crítica do passado, no sentido do Jetztzeit benjaminiano. Sob essa perspectiva, o futuro importa menos como possibilidade de realização, como importaria para Bloch, mas na medida em que virá apenas se o agora o tornar viável, o foco passa a estar no presente, embora não deixe de mirar o futuro. Parece-me que a reiteração dos enjambements no livro em questão figurativiza a densidade do agora, ao mesmo tempo que critica a dispersão a que nos leva a avalanche dos fatos, da violência, ao tempo que ao se acelerar, esvai-se, ao se esvair cria a ilusão de que a velocidade constrói enjambements, conecta a nós todos, mas na verdade, ao contrário da tensão poética entre o silêncio do branco do verso e o verso seguinte, a sociedade dromocrática funda dispersões, ergue muros de linguagem estragada entre as pessoas, pulveriza informações, manipula sobremaneira os homens, as mulheres e, para falar com Ademir Assunção, os peixes e seus líricos blues.
A poesia da agoridade, portanto, não é antifuturo, mas, como diz Haroldo de Campos, é “crítica do futuro e de seus paraísos sistemáticos” (CAMPOS, 1997, p.266), que se mostraram, por mais que fossem pensados a partir do presente, irrealizáveis. É nesse sentido que o conceito formulado por Haroldo de Campos se afasta do “princípio-esperança” de Bloch, que pensa a utopia em um momento em que o futuro era marcado pela aura de um devir ideal, ainda que fosse construído objetivamente no presente. A pós-utopia corresponderia, assim, à desauratização do futuro, não à sua negação.
Despida de aura, a voz do ventríloquo é lamparina acesa, sempre. E em algum lugar da tão real e idílica Praia Brava , topos par excellance dessa poesia, ou mesmo sob a névoa da cidade caótica e hostil, dos olhos de um anjo uma chama azul faz crer que a poesia é possível e mais: é feita de ação, de linguagem e de pulsação.
NOTAS
(1) Ademir Assunção (Araraquara/SP, 2 de junho de 1961) “poeta, escritor, jornalista e letrista de música brasileira. Autor de livros de poesia, ficção e jornalismo, venceu o Prêmio Jabuti 2013 com A voz do Ventríloquo (Melhor Livro de Poesia do ano). Poemas e contos de sua autoria foram traduzidos para o inglês, espanhol e alemão, e publicados em livros e revistas na Argentina, México, Peru e EUA”. Para aproximação à obra de Ademir Assunção, consulte-se o site do autor: https://www.zonabranca.com.br. Acesso em 3/7/2019.
(2) Folha de Londrina, Folha de São Paulo, Estado de São Paulo, Revista Veja, Revista Marie Claire, entre outros. Encontra-se em processo de edição, pela Editora da UNB, o título: “Deus Salve a Rainha e evite engarrafamentos: textos de jornalismo cultural”, trabalho que reúne quase 30 anos de atividades jornalísticas dedicadas à cultura, em uma diversidade de textos, desde matérias a resenhas e críticas de cinema. Além deste, cf. o mencionado Faróis no Caos, voltado para entrevistas, dentre as quais, destaco algumas realizadas com: Haroldo de Campos, Augusto de Campos, Caetano Veloso, Paulo Leminski, Roberto Piva, Itamar Assumpção, Alice Ruiz, Jorge Mautner, Luís Fernando Veríssimo, Grande Otelo, Néstor Perlongher.
(3) Utilizo aqui este sintagma em sentido benjaminiano.
(4) A discussão extrapola os limites deste texto, mas relaciona-se também à concepção derridiana de tradução, ambas conectadas por Haroldo de Campos no ensaio “O que é mais importante, a escrita ou o escrito: teoria da linguagem em Walter Benjamin”, publicado originalmente na Revista da Usp, n. 15, set-nov. 1992 e consultada por mim no volume Haroldo de Campos, transcriação, organizado por Marcelo Tápia e Thelma Médici Nóbrega, pela Editora Perspectiva, 2013, p. 141-154. Essa discussão é fértil para a conceituação da pós-utopia, inclusive pela coerência messiânica que existe no pensamento benjaminiano e que não passa despercebida a Haroldo, quando lê o Benjamin de “Die Aufgabe des Überstzers” [A tarefa do tradutor], de 1923, e aquele de“ Über den Begriff der Geschichte”[Sobre o conceito de História], de 1940.
(5) Diz Michel Collot:“Estar fora de si é ter perdido o controle de seus movimentos interiores e, por isso mesmo, ser projetado para o exterior. Esses dois sentidos da expressão parecem-me constitutivos da emoção lírica, que perturba o sujeito no mais íntimo de si mesmo e o leva ao encontro do mundo e do outro […]. É pelo corpo que o sujeito se comunica com a carne do mundo, que ele abrange pelo olhar e pela qual é envolvido. Ele lhe abre um horizonte que o engloba e o ultrapassa. Ao mesmo tempo vendo e visível, sujeito de sua visão e sujeito à visão de outrem. Corpo próprio e, contudo, impróprio, que participa de uma intercorporeidade complexa, fundamento da intersubjetividade que se manifesta na palavra. […]É fora de si que ele a pode encontrar. A emoção lírica, talvez, apenas prolongue ou reacione esse movimento que constantemente leva e expulsa o sujeito para fora de si, e por meio do qual unicamente ele pode ek-sistir e se ex-primir. É somente saindo de si que ele coincide consigo mesmo, não ao modo da identidade, mas ao da ipseidade, que não exclui, mas ao contrário, inclui a alteridade […]Não para se contemplar no narcisismo do eu, mas para se realizar a si mesmo como um outro.[…] Mas esse componente “subjetivo” de nossa relação com o mundo é tão “real” quanto seu componente “objetivo”: “A transformação operada pelo sujeito lírico sobre o objeto de seu enunciado transforma a realidade objetiva em uma realidade subjetiva vivida, o que faz com que ela subsista enquanto realidade” (2013, p.223-231)
(6) Uso o termo “transitividade” na mesma acepção dada a ele por João Alexandre Barbosa, em seu “A imitação da forma: sobre a poesia de João Cabral de Melo Neto. Para João Alexandre, a poesia cabralina sustenta-se na dialética entre composição poética, fechada em si, intransitiva, metalinguística, e transitiva, aberta à comunicação. Penso que a poesia de Ademir Assunção, ainda que pese a consciência formal do poeta e a metalinguagem inevitável, está principalmente voltada para a comunicação, alias, não só a poesia, mas toda a sua trajetória criativa e jornalística (como não poderia deixar de ser) voltam-se para a comunicação.
(7) Retomo aqui a visão do túmulo a mãe por Stephen Dedalus (James Joyce, Ulysses), acompanhando a relação estabelecida por Didi-Huberman entre a visão e a cisão do ver.
(8) Faço referência aqui às seguintes criações do autor: “Trilhos do Metrô”, letra musicada por Zeca Baleiro, que pode ser ouvida em https://www.youtube.com/watch?v=BtEX3oZ0Qgk, acesso em 3/7/2019; ao livro Pig Brother (Editora Patuá, 2015), cuja personagem principal é Lili Maconha, e às Fábulas Contemporâneas (mimeo), que se referem a textos de fôlego longo, em que a fronteira entre poesia e prosa é tênue, têm teor politico, sobretudo concernentes à crítica ao contexto brasileiro desde 2016.
(9) Trata-se de um verso da canção “Ninguém vive por mim”, do compositor capixaba Sérgio Sampaio (1947-1994), gravada em um compacto pela Continental em 1977 e remasterizada no CD Tem que acontecer, pela Warner, em 2002, (o CD leva o nome do álbum que o artista lançou em 1976) e que inclui a canção.
(10) Trecho extraído de entrevista que o poeta concedeu a Diana Junkes, em julho 2019 [mimeo]
(11) Aqui Campos se refere ao princípio realidade freudiano, que se opõe ao princípio do prazer e concerne a dar conta das exigências do mundo real, onde há necessidade e escassez.
(12) “O enjambement exibe uma não-coincidência e uma desconexão entre o elemento métrica e o elemento sintático, entre o ritmo sonoro e o sentido, como se, contrariamente a um preconceito muito generalizado, que vê nela um lugar de encontro, de perfeita consonância, entre som e sentido, a poesia vivesse, pelo contrário, apenas de sua íntima discórdia” (AGAMBEN, 1999, p.32).
(13) Giorgio Agamben, no mencionado Ideia da Prosa, atenta para a versura, movimento do arado na terra.
(14) Protagonista da obra Ninguém na praia brava, de 2016. Os nomes Ninguém e Alguém fazem alusão direta à Odisseia de Homero.
Referências bibliográficas:
ASSUNÇÃO, Ademir. Zona Branca. Site do autor. https://www.zonabranca.com.br.
______. Ninguém na praia brava. São Paulo: Patuá, 2016
______. Pig Brother. São Paulo: Patuá, 2015
______. A voz do ventríloquo. São Paulo: Edith, 2012.
_____. Faróis no caos. São Paulo: Sesc, 2012
______. LSD Nô, São Paulo: Iluminuras, 1994.
ASSUNÇÃO, Ademir; BALEIRO, Zeca. “Trilhos do Metrô”.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=BtEX3oZ0Qgk, acesso em 3/7/2019.
ASSUNÇÃO, Ademir. Entrevista a Diana Junkes (mimeo). São Paulo, 3 de julho de 2019, [s.l.].
AGAMBEN, Giorgio. O que é contemporâneo. In: O que é contemporâneo e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009, p. 57-73.
AGAMBEN, Giorgio. What is the Contemporary. In: ______. What is apparatus and other essays. Stanford: Stanford University Press: 2009, p. 39-55.
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Ademir Assunção (Araraquara-SP, 1961) é poeta, contista, romancista, músico e jornalista. Em poesia publicou: LSD Nô (1994, 2ª edição em 2014), Zona Branca (2001, segunda edição em 2006), A musa chapada (2008, em parceria com Antonio Vicente Pietroforte), A voz do ventríloquo (2012, Prêmio Jabuti – primeiro lugar), Tempo instável na tarde dos anjos desolados (2011), O Caio e o Cuio (2013, infantil que comentamos nesta coluna), Pig Brother (2015), Até nenhum lugar (2015). Parapsicologia da decomposição (Juiz de Fora: Espectro Editorial, 2017) é sua mais recente publicação.
(Blog Augusta Poesia, João Pessoa/PB, março de 2019)
Parapsicologia da decomposição, de Ademir Assunção
Ademir Assunção (Araraquara-SP, 1961) é poeta, contista, romancista, músico e jornalista. Em poesia publicou: LSD Nô (1994, 2ª edição em 2014), Zona Branca (2001, segunda edição em 2006), A musa chapada (2008, em parceria com Antonio Vicente Pietroforte), A voz do ventríloquo (2012, Prêmio Jabuti – primeiro lugar), Tempo instável na tarde dos anjos desolados (2011), O Caio e o Cuio (2013, infantil que comentamos nesta coluna), Pig Brother (2015), Até nenhum lugar (2015). Parapsicologia da decomposição (Juiz de Fora: Espectro Editorial, 2017) é sua mais recente publicação.
A Espectro Editorial tem se caracterizado por publicar autores que primam pela excelência de qualidade. Parapsicologia da decomposição faz jus ao rigor da editora.
Com epígrafes de Chico Science (canção “A cidade”) e de João Cabral (poema “Psicologia da composição”) a plaquete de Ademir Assunção anuncia a que veio: tomar a poesia como corpo ativo da cidade, da vida humana, da linguagem. Por isso mesmo vale-se de vozes polifônicas com diferentes dicções e uma só direção: denúncia da violência /canto de amor à vida.
O poema “não tem trema, não tem métrica / não tem esquema”, porém “tem treta com a polícia / tiros na surdina das noites / sangue, urina, esperma”. E a voz do eu-lírico anuncia: “vamos de parte em parte”, “sim, por partes / que todos sabemos / a vida é breve, / e o que sobra é arte, / se tanto, / gesto pleno de espanto”.
Com espanto e sem pressa adentramos uma “terra devastada”, tsunami de fraturas (sociais e pessoais) expostas.
Fundem-se no poema a realidade e a sua expressão, a mineralidade cabralina e o caldeirão manguebeat. Afinal, “não há pureza na palavra / bala”. O enjambement craveja o substantivo “palavra” com a sugestão de várias significações. Para, enfim, perfurá-la com o tiro da violência.
Mas “a palavra pele / incita a música, a flauta vértebra”. E aí o poeta invoca a companhia outro poeta renitente: Maiakóvski: “De corpo a corpo verta a alegria. / Esta noite ficará na História. / Hoje executarei meus versos / na flauta de minhas próprias vértebras”.
Em Parapsicologia da decomposição, Ademir canta e decanta o corpo. Canta ao tomá-lo como mote. Como metáfora da poesia. Decanta-o ao separar-lhe o que é impureza. As misturas de asfalto e sujeira ao corpo que se esfacela, esfarela, derrama, decompõe: “pele viva sobre o asfalto pedra / (a exatidão da palavra / fóssil), / (o engenho da palavra / agronegócio)”.
O suplício do corpo de um indivíduo é o suplício coletivo de uma nação arruinada, com “bananas esquecidas na geladeira, / morangos mofados na fruteira”.
A poesia, que aqui se apresenta como poesia-denúncia, nem de longe é a poesia digestiva, fácil, didática e panfletária. É a poesia-valise: linguagem-bomba que explode ao contato de coração e mentes desassossegados. Antes: em ebulição.
Esta verve o poeta já revelara em A musa chapada e em A voz do ventríloquo. Agora, enfatiza proposta e a linguagem num poema-síntese, minimalista e, como sempre, fértil em intertextualidades com outros artistas – da palavra, da canção, das artes plásticas.
O poema de Ademir percorre o chão de asfalto e salta no ar, onde “aviões colidem no céu / de brigadeiro”. Um bom exercício musical é ler o poema em voz alta enfatizando os enjambements, quer seja, os versos que vão buscar sentido (rítmico, sintático, semântico) na linha seguinte do poema.
Uma explosão de emoções crispa-se no corpo do leitor e do ouvinte. Ambos se contraem. A poesia tem destas maravilhas nos versos dos grandes poetas: arrancam com a mão a emoção de nosso corpo todo. Jogam-na no ar, em explosões de agonia, prazer e delírio.
Beleza que o significado, pleno de significâncias, associado à forma do poema, proporciona.
A vida também explode “na tela do computador”, onde “se trava uma guerra / contra a morte dos líquidos / no corpo ainda vivo”. Corpo ao sol, lixo descartado. Mas ainda vivo. Na tela do computador há uma esperança: palavras dançam e uma “ninfa febril” sobe aos céus, carregando Hagoromo, seu manto de plumas.
Aqui, o oriente encontra-se com o ocidente. A vida com a morte. A tragédia com a busca de sua superação. E o leitor convulsiona-se: o processo de composição do poema não é o da acumulação, da organização linear. Antes: é a desconstrução, metáfora da decomposição do corpo atingido pela bala. “A camisa vazia / vestia um vivo / antes do zumbido da bala”. E ao final desta parte: “Não só a camisa / mas a calça também vazia”.
Na penúltima parte do poema, voo, asa e bala descrevem o percurso do tempo e da morte. A vida é alçada enquanto (como) pergunta / dúvida / questionamento: “a morte / do vivo / sem a bala?”.
Na parte final, pulso e pulsação – marcações de ritmo – revestem-se de novos redimensionamentos e convidam o leitor a reinventar a trajetória da bala, da vida, poesia, da História.
Uma parte do paideuma deste poema: Cabral, acima de tudo. Chico Science, o fundo lítero-musical. T. S. Eliot, a dureza da terra devastada: memória e poesia. (Em tempo: nova e rica tradução de Gilmar Leal dos Santos: A terra árida). Drummond na revivificação do fóssil, míssil, istmo, espasmo e áporo. Haroldo de Campos, Caio Fernando Abreu, Artur Bispo do Rosário: rosácea de afinidades sincrônicas.
“Saio do meu poema / como quem lava as mãos”: Cabral. “Entro no meu poema / como quem suja as mãos”: Ademir.
À releitura de Psicologia da composição. À leitura de Parapsicologia da decomposição.
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Amador Ribeiro Neto é crítico literário, professor da Universidade Federal da Paraíba e poeta, autor de Barrocidade, entre outros livros.
"Poeta, ficcionista e letrista, Ademir Assunção é um dos poucos autores do nosso mainstream que passeiam prazerosamente por territórios esnobados pela crítica especializada, entre eles a ficção erótica e a científica."
(Blog Ficção Científica Brasileira, 27 de janeiro de 2017)
https://ficcaocientificabrasileira.wordpress.com/2017/01/27/ninguem-na-praia-brava/
Poeta, ficcionista e letrista, Ademir Assunção é um dos poucos autores do nosso mainstream que passeiam prazerosamente por territórios esnobados pela crítica especializada, entre eles a ficção erótica e a científica. Notei esse detalhe duas décadas atrás, ao ler sua estreia na prosa, o volume de contos A máquina peluda, lançado pela Ateliê Editorial.
As treze porra-louquices da coletânea oferecem fortes doses de libertinagem carnal e ficcional. Não são poucas as paródias e as colagens orbitando o sistema binário linguagem-metalinguagem. Referências da alta e da baixa cultura alimentam um redemoinho pós-moderno. Meus contos prediletos são justamente os de ficção científica: o sacana No futuro a gente se encontra e o nefasto Quinze minutos, posteriormente incluído por Braulio Tavares na antologia Páginas do futuro, da editora Casa da Palavra.
A ficção erótica e a científica também estão presentes no segundo romance de Ademir, Ninguém na Praia Brava, escrito em forma de diário de viagem. Nada ortodoxo, é claro. O sistema binário linguagem-metalinguagem é novamente o centro gravitacional, agora dessa narrativa movida principalmente pela potência do tropicalismo e de outras contraculturas.
O protagonista do romance, e alter ego do autor, chama-se Ninguém. Igual a muitos outros antes dele, Ninguém pede demissão do emprego árido em São Paulo, reúne livros e CDs, bebidas e um laptop e vai morar numa casa no litoral norte, em busca de liberdade e iluminação. Cansado da crônica crise financeira, ele planeja escrever um romance de sucesso que renderá sete milhões de dólares quando for filmado por Sean Penn ou Coppola, quem topar primeiro.
Se fosse mais um exemplo de autoficção protagonizada por um escritor branco, hetero, de classe média, dissertando sobre o próprio umbigo, não seria um romance de Ademir Assunção. Escritores célebres − Dante, Joyce, Gertrude Stein e Haroldo de Campos − não visitariam o herói. Não haveria personagens femininas chamadas Nada e Nunca. Jeová e Lúcifer não jogariam xadrez no pontão da Praia da Fortaleza. Talvez mais importante que tudo isso: Kurt Vonnegut e Billy Pilgrim não teriam um papel fundamental na trama.
Abduzida do cânone ianque, a dupla Kurt & Billy, muito amiga do povo alienígena de Tralfamador, contamina todo o romance com uma bem-vinda radioatividade sci-fi. Portais se abrem no tempo, mitologias ganham corpo, sonhos eróticos e delírios pagãos expandem a consciência… Sempre com humor. A sátira e a leveza marcam essa prosa avessa ao realismo-naturalismo. O texto flui com facilidade. A leitura cabe, com folga, numa tarde e numa noite. Com direito à acidez do melhor ácido. Numa das melhores cenas ocorre uma reconfiguração alucinógena da realidade, ou seja, um diálogo com O congresso futurista, romance de Stanislaw Lem, filme de Ari Folman.
Do mesmo modo que Fausto Fawcett e Ronaldo Bressane − pra ficarmos apenas na geração 90 −, Ademir também aposta na ficção não mimética, que trata da realidade sem imitar objetivamente a realidade. Não escreve prosa prosaica, não faz sociologia ou historiografia de segunda mão. Aventura-se nas dobras do passado-presente-futuro. É por esse motivo que A máquina peluda, Adorável criatura Frankenstein (seu primeiro romance, lançado pela Ateliê Editorial em 2003) e Ninguém na Praia Brava mereciam mais e melhores leitores.
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Luiz Bras é ficcionista e ensaísta, autor de Distrito federal, entre outros livros.
“Se os poemas de Ademir Assunção compõem uma versão própria dentro dessa tradição que encontra diretamente na vivência das ruas o alimento autêntico da poesia, isso ocorre de maneira singular, tendo em vista a natureza contraditória dessa mesma tradição.”
(Revista do Fórum de Literatura Brasileira Contemporânea # 14, Faculdade de Letras da UERJ, março 2016)
http://www.forumdeliteratura.com.br/resenhas/resenhas-14-edicao/250-poesia-em-transe
Existe certa tradição na poesia, que remonta a Baudelaire, segundo a qual, no tumulto das ruas, e não em outro lugar, a literatura constrói o sentido de sua vocação. Pode-se dizer, inclusive, que tal impulso acontece apenas para que não se perca o nexo, muitas vezes esquecido, entre o que se escreve e o que se vive, isto é, o que há de autêntico entre a arte e a vida. O momento em que o poeta encontra sua linguagem no turbilhão das ruas evidencia dois fatos: o primeiro, que funda a literatura moderna, é a crise do lugar do poeta e de sua arte; o segundo, talvez bastante profundo, a crise da própria palavra, sua capacidade de conferir sentido às coisas. O que procura, então, imerso na vida cotidiana das grandes cidades, o poeta?
No Brasil, João do Rio, aquele que buscou revelar a alma encantadora das ruas, certa vez disse que se tem “todos os horrores e todas as delícias do mundo sentindo uma rua”. O poeta moderno, ao se ver no meio de uma metrópole mundial, entende profundamente os abalos que isso acarreta em sua linguagem. Desde o século XIX, a vida urbana das cidades suja a arte e a literatura de sua precária condição. Assim, ao publicar seus poemas em Pig brother (2015), Ademir Assunção retorna a esse lugar para principalmente nos lembrar dele. O que essa poesia teria a nos dizer? Talvez três coisas: uma lição sobre a arte, outra sobre nossa vida atual e uma última que nos lembraria de que maneira arte e vida pertencem a um só movimento.
Se os poemas de Ademir Assunção compõem uma versão própria dentro dessa tradição que encontra diretamente na vivência das ruas o alimento autêntico da poesia, isso ocorre de maneira singular, tendo em vista a natureza contraditória dessa mesma tradição. Ao que parece, ela se constitui ao negar qualquer tradição possível, tanto em seu nível formal quanto, principalmente, em seu conteúdo. Trata-se, portanto, de uma tradição de escrita que aceita apenas a intensidade de uma experiência vivida na ferida exposta do mundo. A partir de um mergulho na realidade é que se pode pensar o poema, nunca a partir de modelos canônicos determinados pela cultura oficial.
Isso nos leva à primeira lição, que diz respeito àquilo que entendemos por literatura. No livro em questão, a vida tal como é percebida em sua vivência direta determina o arsenal do poeta. A poesia se faz na rua, nos instantes em que vivemos e que, na normalidade cotidiana, parece nos fugir. O poeta é vivente e observador, vítima e sujeito dos crimes e aturdimentos que, assim como nos jornais, preenchem nossa vida comum. Assim, o material que compõe a poesia não difere do impacto que presenciamos todos os dias. Ademir Assunção parece forjar uma poesia um pouco distante dos ideais estéticos (sem abandonar o poder de construção da linguagem), para melhor penetrar na cotidianidade caótica que é viver numa grande cidade brasileira. Uma poesia pensada como estética cede lugar a uma escrita delirante, sujeita aos caprichos e movimentos radicais da experiência que podemos colher ao vagarmos perdidos nas ruas do mundo. O poeta, como manda a boa tradição, é um ser errante, de versos igualmente tortuosos, um andarilho cujo destino final (a própria existência) já se encontra ausente.
De que realidade tratam, então, os poemas de Pig brother? Talvez de uma muito próxima dos horrores de que falou João do Rio. Um mundo cujo curso acabou por gerar para os homens uma fragmentação infinita, pautada por sentimentos confusos de desespero, violência e aturdimento. A realidade se tornou expressão de uma vida irreal, em que o espetáculo organizado pelo modo de vida baseado nas formas econômicas do capitalismo industrial rendeu uma completa dissolução daquilo que entendemos por humano. Nosso senso do que é real se perde numa caótica rede de relações dispersas, ordenadas apenas pela dor de uma vida fantasmagórica nos ermos não localizáveis do mapa geral das cidades. A cartografia do desespero é a realidade em forma de golpes de sensações que, num mecanismo infinito, marcam nossa experiência fora do lugar e fora de nós mesmos. Dessa forma, a rua, como cenário, ultrapassa uma situação externa ao homem. O que temos, na verdade, é o delírio das massas humanas como objeto palpável ao olhar atento. Na rua não estão homens que passam, mas seus próprios desejos em convulsão.
Ademir Assunção trata, de maneira particular, não apenas do espetáculo que se tornou realidade, conduzido pelo mundo do consumo e da comunicação de massa, mas do espetáculo por trás do espetáculo, isto é, aquilo que gostaríamos de ignorar e que, no entanto, existe depois que desligamos os computadores e televisores, depois que o holofote se apaga e restam apenas as imagens vestidas de uma maquiagem borrada. Os bastidores do submundo, que são, surpreendentemente, a imagem de nosso próprio mundo.
Em poucas palavras, trata-se de um mundo aterrorizante e impregnado de violência. Saído, talvez, diretamente dos noticiários sensacionalistas, que têm por função definir nossa versão dos fatos, e dos filmes norte-americanos de terror, ação e sexo. A surpresa é isso tudo, de repente, ter se tornado nossa visão cotidiana das coisas.
No poema “A espessura do olhar”, é possível identificar a qualidade que marca o mundo que o poeta procura registrar. O que se percebe de maneira traumática nas ruas da cidade é uma série desordenada de súplicas e gritos de dor, que, “entre ruínas de vozes, falas dispersas / algaravia nas vielas, / palavras não chegam a lugar algum”. O que se verifica, portanto, é todo o absurdo que a experiência diária se tornou, por debaixo dos escombros da normalidade. A poesia, nesse caso, aparece como uma
orgia de signos, alquimia verbal,
transes migratórios
e paisagens lisérgicas.
Os sentidos se dissolvem
ante a multiplicidade das imagens
refletidas nas paredes espelhadas.
Os olhos se fecham. Lábios se abrem
para o Beijo da Morte.
Durante a leitura do livro, é marcante a maneira como as imagens são alimentadas pela intensidade e, ao mesmo tempo, pelo efeito letárgico de uma abstração. Imagens fortes, impactantes, eventualmente se agrupam em emblemas abstratos que reforçam uma sensibilidade fantasmagórica presente na vida descrita. Os poemas, impregnados do início ao fim por imagens como “Lua Cadela”, “Cabine dos Espelhos”, “Dança das Facas”, “Noite Negrume”, “Noite Neblina”, “Noite Drogada”, “Sol Negro”, “Sala das Bonecas Sodomitas”, “Deus Mercado”, imprimem a energia de um imaginário quase expressionista. Os personagens, tipos errantes que entram e saem da cena do espetáculo bizarro a que assistimos, também reforçam a ideia de que o impacto sombrio e delirante dos poemas tem essa ancestralidade revisitada. Sujeitos como “Lili Maconha”, “Mister Morfina”, “Nigromante”, “Mendigo Kamaiurá”, “Trapaceiro Divino”, “Black Ice” e “Coronel Tempestade Negra” se misturam entre os anônimos e subcelebridades da vida comum e da própria paisagem infernal que se revela a nossos olhos. Os personagens são pessoas sem face, fantasmas de si mesmas, saídas de uma fantástica e pervertida realidade – feita de sonho e caos. Embora se pareçam com seres humanos, têm suas imagens perdidas na dispersão frenética de todas as coisas e se tornam breves aberrações ou marionetes entorpecidas.
Segundo afirmou Gerd Bornheim em seu livro O sentido e a máscara, um dos fundamentos do expressionismo é o “sentido impessoal da subjetividade”. Assim, sempre que se diz algo, abarca-se um universo além do individual; “o confessado não é de ninguém, o autobiográfico não tem rosto” (2007, 65). Nada mais interessante que ecos desse movimento retornem na poesia feita no século XXI, quando já não se pode falar de subjetividade ingenuamente e a forma do sujeito se sentiu definitivamente exposta diante das coisas. O
mundo concentra, em sua exterioridade, a subjetividade fraturada e ambígua da qual parecemos ouvir gestos quando lemos os versos de Ademir Assunção. Seus personagens são intercambiáveis, não possuem uma face particular. Giram todos no caos dos acontecimentos e de infinitas sensações a que estão sujeitos no universo de hedonismo e violência sem limites. “Fala-se uma linguagem incompreensível nas ruas”, alguém diz. E completa: “apenas sexo e crime fazem vibrar as cidades do Ocidente”.
O livro se divide em círculos infernais, assim como a Comédia de Dante. Todos os poemas sugerem a descrição desse lugar inóspito que não é senão nossa própria realidade cotidiana. Os homens andam
como mortos pelo inferno. A poesia, nesse cenário, se sente mergulhada no delírio de um mundo no qual a única divindade a que se pode recorrer é o “Deus Mercado”, no meio de sua delirante compulsão sexual/econômica de orgias de lucros. O paraíso que podemos avistar é, na verdade, o nome de um shopping center, onde faremos nossa fé e pagaremos nosso dízimo para garantir uma promessa jamais proferida. Afinal, “não há epifanias / na paisagem de escombros”.
Trata-se de uma paisagem crua, de uma realidade radicalmente entregue à sua própria matéria em decomposição. Entre homens e coisas, tudo parece entorpecido. “Tudo é farelo. Tudo é névoa”. A desordem do mundo é governada pelo sem sentido da existência e o acaso age como um deus cego e embriagado. Numa passagem que nos faz pensar nas vibrações de Mallarmé, é possível perceber como a própria poesia assume as marcas da realidade e sucumbe ao transe verbal dessa experiência precária:
Não há ofensas pessoais nem gestos passionais
nos dados lançados ao acaso
no fundo de um naufrágio.
Apenas uma paisagem em frenético movimento
e árvores imóveis ante a falta de vento.
O excesso violento de imagens, o barroquismo de construções que não se furtam a alcançar o território do kitsch e a saturação de elementos corriqueiros acabam por levar os poemas a uma zona de indistinção com a própria realidade. Do primeiro ao último verso, desenvolve-se a mesma dicção, como se tivéssemos diante dos olhos uma epopeia sobre o inferno contemporâneo. A poesia em transe assume as emoções humanas até o ponto em que já não conseguimos sentir mais nada – como, de resto, ocorre com todos de Pig brother.
Ademir Assunção se mistura temerariamente à matéria, de modo a alcançar o princípio segundo o qual é na vida que a poesia se funda. Se falamos de uma realidade delirante, a poesia penetra, a despeito de todos os riscos, no transe geral. Pig brother sacrifica a utopia de uma poesia pura para colocar em circulação uma experiência valiosa para a poesia que não se quer ingênua.
No mundo do capitalismo tardio, da publicidade e da guerra diária da grande mídia, a linguagem sofre abalos irreversíveis. “Há letreiros nas fachadas dos edifícios, / mas eles não dizem nada”. O poeta privilegia a linguagem cotidiana para enfrentar a realidade irreal que se nos apresenta: “sílabas e fonemas são apenas fantasmas, / sem significado algum”. Assim, expõe cruamente sua versão do século ainda nascente, mas já morto, através de “imagens desordenadas, histeria e delírio, / fúria de signos selvagens”. Tudo o que parece restar, e com o que temos que trabalhar na linguagem, é “caos & entretenimento”. O teatro de horrores de Pig brother é uma imagem possível dos perigos que a palavra precisa correr para alcançar a si mesma, autenticamente. A melhor síntese desse processo talvez venha da boca de uma das marionetes de Ademir Assunção:
“Eis uma verdadeira poética do delírio”
– pensa Black Ice,
acariciando o gatilho com o dedo indicador.
*****
Pedro Alegre é Mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
“A poesia de Ademir Assunção tem sua voz projetada no diapasão de um mundo em ruínas, as que não têm caráter histórico nem turístico; as que não frequentam cartões-postais. A realidade é perpassada por um viés imagético de caráter surreal...”
As performances da voz no espaço da poesia brasileira contemporânea
Profa. Dra. Susanna Busato[1]
Resumo: Este artigo tem como proposta evidenciar na poesia de Ademir Assunção, em seu livro ganhador do Prêmio Jabuti de 2013, A Voz do Ventríloquo, os conceitos de “performance” e de “voz” como elementos que emergem dos sujeitos do discurso e dos sujeitos da cultura.
Palavras-chave: Ademir Assunção, voz, performance, poesia brasileira contemporânea.
“Há uma serpente enrodilhada nas ramagens
do poema”.
Ademir Assunção – A Voz do Ventríloquo
“O que há de mais fecundo para o
Pensamento que o imprevisto?”
(Paul Valéry – A Serpente e o Pensar)
“Mas, de fato, quem fala em um poema?
Mallarmé queria que fosse a linguagem, ela mesma.”
(Paul Valéry – A Serpente e o Pensar)
Perceber o espaço das molduras da poesia brasileira contemporânea é procurar distinguir no horizonte de suas vozes uma voz que tenha como roteiro uma ação performativa. Com isso quero dizer que tenho perseguido dentre tantas as que constroem espaços possíveis de elocução, ou seja, modos de expressar e construir um dizer as coisas, as que de alguma forma se posicionam para construir uma ação, uma performance única, que nasce da percepção do mundo e da linguagem. Difícil o roteiro, mais complicado ainda percorrê-lo. Elejo aqui o resultado de meu percurso até o momento, sujeito a releituras sempre necessárias. A pauta que rege, portanto, a voz que adentra meu pensamento crítico-analítico neste momento se tece a partir da que emana de A Voz do Ventríloquo (2012), obra premiada do poeta Ademir Assunção, com o Prêmio Jabuti de Poesia 2013. É nela que percebo a ousadia de ironicamente dizer, na abertura do livro, que “poetry is dead” (a poesia está morta), afirmativa que tem orientado parte da crítica da poesia brasileira contemporânea e também da crítica de arte neste novo milênio. Crítica que se pauta no sentido daquilo que hoje se produz como fruto da facilidade, da emulação e da cópia (sem fazer disso um procedimento crítico, pois normalmente informa o mesmo, a obviedade); como fruto da falta do que dizer, ou do uso deliberado de um acento abstrato e hermético de uma dicção, às vezes intimista ou descritivista de uma paisagem concreta ou imaginada (referência também à memória como lembrança, simplesmente), ou às vezes travestida em crônica de um cotidiano que morre em si mesmo, porque firmada sobre imagens já desgastadas e comuns que já perderam sua força redimensionadora do olhar.
A assertiva do livro de Ademir Assunção é alvo da “pequena fábula mundana”, uma pequena narrativa que abre a página da primeira noite do Diário do Ventríloquo, cujas sete páginas (escritas uma por noite) irão reunir o lote de sete conjuntos de poemas do livro, que é acrescido de mais dois ao final, sob o título de “Miséria Crítica” e “O Fim e o Início”. A fábula narra o flagrante da descoberta freudiana da diferença entre a dona Poesia e seu Prosa. E tal qual um Gênesis mítico que narra a dissolução da unidade e o drama humano da expulsão do Paraíso, o destino de ambos vai motivar o gesto bárbaro da arma apontada nas mãos de um deus diante da cena.
Com a legítima curiosidade de toda criança, Poesia puxou a calcinha e viu que era diferente de Prosa. Ficou encantada com a a diferença. Mas, com o tempo, o que era encantamento virou vaidade. Prosa, sentindo-se entendiado, caiu no mundo com uma traficante colombiana. Poesia, envaidescida, passou a se preocupar demasiadamente consigo mesma e se esqueceu do humano. Então, o humano virou as costas e foi ao teatro. E Deus, que olhava toda a cena, apertou o gatilho. (Assunção, 2012, p. 11)
A fábula introduz o leitor na trama de uma poesia que assume uma postura marginal no sentido de admitir o fato de sua própria morte. Em vez de fingir, aceita o argumento, ele próprio um simulacro, e o enfrenta com outro, que o dissolve. Traçará nos seus espojos a crise e assumirá a performance atávica de mergulhar no interior da cultura e da linguagem e de lá extrair as referências literárias, poéticas, históricas, midiáticas, e multiplicá-las por alusões, metáforas, citações, num alucinatório labirinto de signos, cujo objetivo é encarar de frente o tal “olho azul do mistério”, esse “it” que move o poeta para a linguagem e para a poesia. O livro é pois essa busca, esse mergulho, essa viagem para e pela poesia; uma crítica de si mesmo e da linguagem.
Insere-se A Voz do Ventríloquo, portanto, como uma performance da poesia no espaço contemporâneo da cultura, emergindo como sintoma e diagnóstico de uma época. Seu foco é a escritura de si e do mundo, voz que se multiplica em outras vozes, mirada sob a lente prismática do diário do Ventríloquo. Dois apêndices de poemas finalizam o livro, como mencionei agora há pouco: “Miséria Crítica” e “O Fim e o Início”. Cada um apresenta um poema: o primeiro, “Balada para Chatotorix”, desfere ironicamente sua mensagem, como se lê na referência do título ao poeta farsante e insuportável do mundo de Asterix, o Gaulês, e descreve o banquete bufo dos poetas críticos que devoram o “grande poema!”, preparado com o melhor da “comida boa, congelada, transgênica, / da mais alta visada, sequinha, / crocante, gema semântica”, e contra a qual o poeta impõe seu desejo de “filé e vinho, / uvas, saladas, damasco, farofa, mulheres / e um salmão bem temperado com cominho” (Assunção, 2012, p. 97). Tal diferença flagra o ambiente formal e conservador, regrado por uma poesia seguidora de padrões, ao qual se impõe como revolta o desejo do poeta, marginal a esse ambiente. O demônio do poeta esfomeado tem outros desígnios e desejos e termina a farsa do Jantar das Artes com um “estrondo – um ruidoso / ronco do estômago”, expondo nos versos pícaros o drama final do livro, cuja poesia, na sua procura por reinaugurar-se, vai resgatar, no poema seguinte, um início novo , a partir do quadro “A origem do mundo”, de Gustave Courbet, de 1866, cuja reprodução em cores figura na página. Os versos do poema de mesmo nome, “A origem do mundo (um esboço)”, alimentam-se dessa aberta ousadia final da imagem do pintor francês que choca, por um viés de realidade outra, o “isso” das coisas, seu “it” que lhe dá existência. O poema de Assunção usa o pronome demonstrativo com valor catafórico para trançar o viés que nos separa de duas realidades, ou melhor ainda, de duas vozes que reverberam outras mais: a da pintura de Courbet, que realisticamente exibe em contraplongé o púbis feminino desnudo, deslocando-o para uma outra esfera de significação, pois singulariza-o como signo da origem do mundo, como o mistério, o “it” indecifrável do universo; e a voz de uma realidade outra, recortada e vertiginosamente enumerada nos signos que a poesia recolhe como as pontas de um oroboro:
sem isso, nada disso
nem eu, nem você, nem ptolomeu
nem a música das noites em perpétuo movimento
nem os arrepios de pele, nem o estrondo do raio
nem o som do vento
nem a rebelião dos beats, nem a caverna de platão
a caravana, a bonanza, o uivo do cão
a voz aveludada de chet baker
a orelha cortada de van gogh
os versos mais loucos de leminski
[…]
os lábios entreabertos tocando de leve os mamilos
os braços arrancados da vênus de milo
[…]
sem isso, nem isso / esse poema / : o fim e o início
(Assunção, 2012, p. 103).
A poesia estaria assim asseverada como experiência de um fim e de um princípio para as coisas, a partir dos choques, dos gestos violentos desferidos na linguagem imagética do livro, mímese do movimento de um oroboro: a auto-devoração como crítica: “há uma serpente enrodilhada nas ramagens / do poema” afirmam os versos de “O pântano” (Assunção, 2012, p. 57) que na sequência aponta para a consciência das “ciladas, armadilhas, areias movediças/ no pântano […] do poema”, sendo que, a partir daí, “um monstro de folhagens está pronto para emergir “ao simples toque / da sineta de Pã”. Seria esse um desafio para a poesia do agora? O que deseja a poesia que fala pela voz do Ventríloquo? Um dos roteiros que percebo nessa voz é o da metapoesia, que deliberadamente se refere ao ser do poeta como um “orfeu” no mundo dos infernos, do qual sai com a experiência na carne, renovado, assegurando uma identidade de luta e enfrentamento: “e quando volto do inferno, quase em farrapos / sou invencível, sou fogo sobre a relva // eu sou o matrimônio da luz e da treva // […] // eu sou poeta e sigo em frente / em linhas tortas // eu não lido com palavras mortas”. (Assunção, 2012, p.48-9)
Na “Declaração de Bens”, poema-prefácio na abertura do livro, percebe-se a assinatura retórica do poeta maldito, que encena, pois, a performance de seu tempo histórico, em nota dramática:
talvez cinco ou seis destes poemas
prosperem na eternidade
talvez mais, talvez nenhum
já o esquecimento será eterno
exceto o instante, este istmo, este agora
que se grafa na pele, na palma, na pálpebra
e se esgarça no mar do espanto
Eis a cena: o “mar de espanto”. Eis o tempo: o “instante, este istmo, este agora”. Eis o corpo: a pele, a palma, a pálpebra em que se grafa na vigilância de tudo agora. Eis a utopia: a dúvida e a certeza da poesia como arma, tal qual a cena leminskiana de um mundo em ruínas para onde o poeta se lança para grafar o impossível:
sirenes, bares em chamas,
carros se chocando,
a noite me chama,
a coisa escrita em sangue
nas paredes das danceterias
e dos hospitais,
os poemas incompletos
e o vermelho sempre verde dos sinais
(Leminski, 2004, p. 17)
Essa “coisa escrita em sangue” reverbera na poesia de Ademir Assunção na atitude deliberada de um sujeito que emerge da cena bárbara com o objetivo de grafá-la, como encenam os versos de “O olho azul do mistério”, no gesto violento:
palavras escritas na água, na carne
dos que sofrem, escrevo com sangue, escrevo
com porra nas paredes das salas
iluminadas com a luz monótona dos aparelhos
de televisão
(Assunção, 2012, p. 14)
A poesia de Ademir Assunção tem sua voz projetada no diapasão de um mundo em ruínas, as que não têm caráter histórico nem turístico; as que não frequentam cartões-postais. A realidade é perpassada por um viés imagético de caráter surreal, que expõe o absurdo e o exagero como uma estratégia de construção plástica que procura mimetizar as sensações dessa realidade urbana pelo olhar do sujeito que não somente observa a cena de longe, mas a sente de perto, como tragédia, como ameaça, como um corpo que deixa seus traços no tempo e no ar. Há urgência no registro. Há urgência em viver, enquanto houver tempo. Assim também demiurgicamente advertem os versos do poema “Viralatas de Córdoba” (Assunção; Watanabe; Góes; Dohogne, 2013), que integram a primeira faixa do CD Viralatas de Córdoba, de Ademir Assunção e da Banda Fracasso da Raça[2] e que diz o seguinte:
Eles saem solitários pelas ruas
trotando, farejando, observando
São os primeiros a perceber
que uma fina substância misteriosa
circula pelos becos, pelas vielas
pelas veias da cidade
Ninguém ainda sabe seu nome
mas alguns já sentiram
seu hálito quente por perto
Talvez seja melhor abrir as janelas
Talvez não haja mais tempo
Vem-me à lembrança aqui o pintor expressionista alemão Ludwig Meidner (1884 – 1966) cujos traços sombrios e tensos com que cobria suas paisagens urbanas, pintadas num momento anterior ao conflito mundial da Primeira Grande Guerra, apresentavam um dado de violência histérica que simbolizava o colapso da cultura européia de sua época. (Miesel, 2003, p.110) Menciono o nome desse pintor em particular pois dedicou-se posteriormente à escritura de textos literários em prosa expressionista e ao ensino de arte. E um de seus textos sobre realização artística que me interessa aqui, na referência que faço à poesia de A Voz do Ventríloquo, é o chamado “An Introduction to Painting Big Cities”, de 1914 (“Uma introdução à pintura de grandes cidades”), uma espécie de guia-manifesto sobre as técnicas e instrumentos necessários para a experiência com a pintura tendo a cidade como motivo. Ao mencionar as técnicas de pintores como Pissarro e Monet na realização de pinturas de ruas de grandes cidades, Meidner afirma que ainda eles não conseguiam captar das ruas urbanas sua grotesca imagem, uma vez que sua técnica voltava-se sobretudo para as pinturas de paisagem, cujo lirismo impressionista procurava captar a imagem de árvores e arbustos mais por uma perspectiva tradicional, por meio da exploração de uma tonalidade cromática em procura dos efeitos de luz e das dissoluções dos contornos das figuras e também das cores complementares.[3] Afirma o pintor alemão que
A street isn’t made out of tonal values but is a bombardment of whizzing rows of windows, of screeching lights between vehicles of all kinds and a thousand jumping spheres, scraps of human beings, advertizing signs, and shapeless colors.[4]
[…]
It is emphatically not a question of filling an area with decorative and ornamental designs à la Kandinsky or Matisse. It is a question of life in all its fullness: space, light and dark, heaviness and lightness, and the movement of things – in short, of a deeper insight into reality.[5] (Meidner apud Miesel, 2003, p.111)
Meidner busca, no procedimento pictórico expressionista a que se lança, ao pintar as grandes cidades como urgência de sua época, o traço reto, direto, pontiagudo, e uma luz branca, prateada, violeta ou azul, pouco importa, o fato é que tanto essa luz, que deve suspender os objetos, quanto os traços, que cortam a paisagem concebida da cidade, numa geometria outra do espaço, ambos devem dar à cidade que aí nasce uma existência fantástica e ambígua, porque de igual maneira é assim percebida e sentida. Sabe-se que o pintor tem como repertório que soube introjetar trabalhos de pintores como Bosch, Blake, Delacroix e Van Gogh, dentre outros. O resultado é dramático, emerge a pintura como afirmação de um combate, de uma voz inquieta que sente, vocifera e ameaça pela presença exasperante do gesto que confirma a cidade, ou melhor, um olhar para a cidade, que ao mesmo tempo que a comemora, revela o desejo de conhecê-la. E o traço violento, de guerra, é ambíguo: representaria a guerra ou um desejo de encontrar o mistério do mundo por um mergulho nos instrumentos e técnicas da pintura do seu agora? E, portanto, a guerra seria apenas um leitmotif para a exploração das potencialidades da linguagem? Afirma Meidner no mesmo texto:
Let’s paint what is close to us, our city world! The wild streets, the elegance of iron suspension bridges, gas tanks which hang in white-cloud mountains, the roaring colors of buses and express locomotives, the rushing telephone wires (aren’t they like music?), the harlequinade of advertising pillars, and then night… big city night…”.[6] (Meidner apud Miesel, 2003, p.114-5)
Meidner, Ludwig. Die brennende Stadt (Burning City), 1913
óleo sobre tela, 66.5 x 78.5 cm
St. Louis Art Museum, St. Louis (Mo.)
Este pequeno parêntesis que faço ao mencionar o trabalho crítico e estético do pintor Ludwig Meidner serve como referência para pensar essa voz que anima a poesia de A Voz do Ventríloquo e boa parte da poesia brasileira contemporânea, que tem no gesto formal da linguagem a urgência do gesto que redimensiona o dado de realidade de sua época a partir do eco grotesco dos traços urbanos. Talvez nada de novo nessa temática da cidade que pega fogo, de uma cidade apocalíptica, de um espaço de sonho mais próximo da fantasmagoria de um pesadelo, onde o humano se encontra com o inumano do mundo. Mas talvez a urgência e insistência desse traço se insiram no plano dos versos[7] como um corte que mimetiza nossa condição inquieta diante do mundo. Como exemplo desse gesto a que a poesia brasileira contemporânea se lança, teríamos, por exemplo, os versos do primeiro poema de “Rarefato – outra trilogia do tédio”, do poeta Frederico Barbosa, que abrem o livro Rarefato, de 1990:
Nenhuma voz humana aqui se pronuncia
chove um fantasma anárquico, demolidor
amplo nada no horizonte deste deserto
anuncia-se como ausência, carne em unha
odor silencioso no vento escarpa
corte de um espectro pousando na água
tudo que escoa em silêncio em tempo ecoa
(Barbosa, 1990, p. 3)
Ou ainda, os versos de “Dupla Realidade”, do poeta Donizete Galvão, em O Homem Incabado, de 2010, dos quais transcrevo alguns:
apartado de ti
esse outro recebe
a lufada de esgoto
vinda do rio
com suas águas de chumbo
no trem, cerra os olhos
para que a visão crua
não o fira
mais do que já foi ferido
vaga por calçadas
e busca nos muros motivos
para essa errância
que não encontra repouso
[…]
(Galvão, 2010, p. 46)
Ao trilhar o caminho das vozes que emanam da voz do Ventríloquo posso performatizar pela leitura um percurso: o do mergulho na realidade para dela extrair os matizes de luz do seu espectro de sombras, o que implica perceber os objetos da cultura na sua urbana presença. Seriam eles mesmos vozes a reverberar pela voz do Ventríloquo, esse sujeito que se desdobra para criar uma forma ritualística de protagonizar a crise de sua época. Como um demiurgo, é uma voz que se assoma diante do mundo apocalipticamente percebido e criticamente representado, numa procura não apenas temática das formas, mas numa procura formal em termos de seus instrumentos de construção artística.
A voz, para Paul Zumthor (2014, p. 82), “é uma coisa”. Sua materialidade revela o corpo que a reverbera: um corpo-linguagem que articula os signos da cultura que a habitam. “A voz repousa no silêncio do corpo”, afirma Zumthor (2014, p. 82) e mais: ela emana dele e depois volta. “Nesse lugar em que a voz se dobra nela mesma, identifica-se com o sopro, de onde tantos outros simbolismos, recolhidos pelas religiões: o sopro criador, animus, rouah; a voz como poder de verdade.” (Zumthor, 2014, p. 82)
Uma de suas teses formuladas no livro Performance, recepção, leitura, de que me sirvo aqui, diz que
a voz é uma subversão ou uma ruptura da clausura do corpo. Mas ela atravessa o limite do corpo sem rompê-lo; ela significa o lugar de um sujeito que não se reduz à localização pessoal. Nesse sentido, a voz desaloja o homem de seu corpo. Enquanto falo, minha voz me faz habitar a minha linguagem. Ao mesmo tempo me revela um limite e me libera dele. (Zumthor, 2014, p. 81)
Uma outra, também importante para nosso raciocínio aqui, é a seguinte:
Escutar um outro é ouvir, no silêncio de si mesmo, sua voz que vem de outra parte. Essa voz, dirigindo-se a mim, exige de mim uma atenção que se torna meu lugar, pelo tempo dessa escuta. Essas palavras não definiriam igualmente bem o fato poético? (Zumthor, 2014, p. 81)
Percorrendo esse prisma de leitura, percebo que a poesia de A Voz do Ventríloquo irá procurar construir uma sintaxe própria para seu verso para poder dar a ele uma espontaneidade de expressão e um ritmo que plasme a oralidade pensada como a voz soprada do Ventríloquo, que nasce de dentro dele (e da linguagem) e se deseja naturalmente reverberada nas paredes do poema. Por isso deve-se pensar a lógica que rege a construção dos versos de sua poesia a partir de uma ótica do fragmento, da justaposição e da enumeração disparatada, compreendidos como dispositivos construtores do ritmo interno dos poemas que se torna, pois, o diapasão do modo de sentir desse sujeito que se desaloja de si mesmo ao construir uma voz que vai habitar o espaço das imagens que, virtualmente ou simbolicamente, nascem da realidade. Poderia chamar de “inferno” o espaço virtual provocado pelas imagens que se assomam pelo plano enunciativo e expressivo dos versos. Alerta Paul Zumthor (2014) que o
pressentido não é necessariamente uma imagem: ele é imaginável, ele tem a possibilidade de produzir uma imagem. De qualquer maneira o virtual frequenta o real. Nossa percepção do real é frequentada pelo conhecimento virtual, resultante da acumulação memorial do corpo. (p. 79)
Assim, pois, completa o autor, “o virtual aflora em todo discurso. No discurso recebido como poético, invade tudo. Está aí, no nível do leitor, uma das marcas do ‘poético’” . (p. 79-80) A ideia de jogo pode ser aventada aqui também diante da profusão das vozes que emergem desse espaço construído no poema, animado pelas imagens, e do discurso vertiginoso que principia a viagem crítica e apocalíptica do discurso poético do Ventríloquo.[8] O inferno como imagem, percebida e vocalizada no discurso do Ventríloquo e nas vozes que emanam dele: eis o que emana de um espaço urbano que abdica da mera referencialidade no poema para se projetar como um “não-lugar”, ou melhor, como um espaço não-habitável, movente e dinâmico, que irá encontrar sua plástica num cenário fantasmagórico e infernal, este sim habitado pelas vozes que emanam do Ventríloquo.
Em termos plásticos-formais, o discurso do fragmento rege, portanto, a sintaxe do livro e rompe com a lógica da contiguidade para impor um dado de rarefação no encadeamento discursivo. A rarefação do sentido constrói uma ordem segunda, a da lógica por similaridade. Assim é que a “voz” do Ventríloquo se inscreve nas páginas de seu diário e ecoa nos poemas, reverberando as sensações, a cultura, a crítica, enfim, outras vozes de que se compõe o mosaico de objetos e personagens que habitam o mundo e que têm origem no processo de reflexão instaurado como enunciação nas páginas do diário desse personagem.
Na voz do Ventríloquo há um processo instaurador de uma descoberta: “pra saber quem eu sou / preciso descer até o inferno”. (Assunção, 2012, p. 48) A memória de seu corpo, como agente do tempo e do espaço de linguagem, pelo olhar sente seu tempo e inaugura um lugar, ou melhor, um “não-lugar”, esse continente-conteúdo movente das referências que vão construindo o espaço da escrita. Tal qual um “orfeu”, desce aos infernos das imagens de seu tempo para descobrir-se na pele dessas outras vozes.
Há ainda nessa voz a descrição objetiva de cenas que alegoricamente acenam para os fantasmas que habitam as ruas e as noites geladas das andanças e experiências do sujeito, este se identifica a uma espécie de flanêur, um habitante da linguagem, cujo olhar colherá sempre um momento de lirismo em meio ao caos, como os excertos seguintes podem mostrar: “e essa linda lua / malandra, lambendo a água / no asfalto”; ou: “o anjo balança suas asas / na face ferida da tarde”; ou ainda: “há manchas de sangue e raiva / na penumbra do poema”; ou ainda mais esta: “a miragem / de um navio fantasma / tremula / no poema”.
A voz do Ventríloquo na poesia de Ademir Assunção emerge a partir de dentro da própria linguagem. Seu destino bom ou ruim desconhece a si mesmo e é pela enunciação de um desejo que constrói no corpo do sujeito do poema um dizer as coisas por um roteiro cujo mapa já está escrito no destino maldito deste “Orfeu nos quintos dos infernos”, título do poema a seguir:
pra saber quem eu sou
preciso descer até o inferno
lá encontro o Homem do Nariz de Ferro
o mais tenebroso dos internos
jogo pôquer com o rei das profundezas
e com o escroque especialista em safadezas
vejo o velhaco encurralando a vil marmota
e o desespero do banqueiro em bancarrota
lá eu vejo a queda do império de ilusão
quem banca o esperto logo sai sem um tostão
e quando volto do inferno, quase em farrapos
sou invencível, sou fogo sobre a relva
eu sou o matrimônio da luz e da treva
eu sou o barco e o barqueiro
o alvo, a flecha e o arqueiro
eu sou a mandíbula do tubarão
e o grito de dor do surfista
a mentira na manchete do jornal
e a bomba do atentado terrorista
eu sou a faca que atravessa
o peito do político traidor
e as ruínas queimadas do templo
do vigarista mercador
eu sou poeta e sigo em frente
em linhas tortas
eu não lido com palavras mortas
(Assunção, 2012, p. 48).
O sujeito de A Voz do Ventríloquo parece já permear a obra de Ademir Assunção desde muito antes, e o poema seguinte é uma amostra da auto-identidade desse sujeito meio-demônio, meio-homem, um maldito por natureza, que admite sua existência como um cão que ladra e disfere sua mordaz mandíbula contra o mundo. A linguagem de sua pele toca a linguagem do mundo concebido como o “inferno”, imagem que será presente ao longo de sua obra.
O Coisa Ruim
me querem manso cordeiro
imaculado
sangrado no festim dos canibais
me querem escravo ordeiro serviçal
salário apertado no bolso
cego mudo e boçal
me querem rato acuado
rabo entre as pernas
medroso um verme pegajoso
mas eu sou osso duro de roer
caroço faca no pescoço
maremoto tufão furacão
mas eu sou cão
ladro mordo arreganho os dentes
incito a revolta dos deuses
toco fogo na cidade
qual nero
devasto o lero lero
entro em campo desempato
eu sou o que sangra
um poeta nato
(Assunção, 2001, p.22)
A poesia é voz de uma experiência. Mas, de uma experiência estética, que, eu diria, se performatiza em choques. O gesto é violento. Seus poros e seus vasos reverberam sua voz, uma voz que vem de dentro. Ressoa nela sua cultura, sua história, sua urgência, em complexas confluências vocálicas e consonantais (sua língua). Em imagens, citações e referências, sua voz ritmiza-se como sangue a pulsar nas sílabas e na sintaxe de seu canto. Como uma serpente que se enovela e, sempre alerta, avança na linguagem a língua apontada para o corte necessário, este aqui-e-agora de um tempo e espaço que se aninham na periférica trama, na marginal façanha: a de descobrir, de conhecer, para além das molduras, a realidade. A realidade: espaço que lhe serve de fundo e do qual se separa, para entrever no familiar que obstaculiza a percepção o elemento insólito, o estranho, o olho azul do mistério das coisas. Seria esse o movimento da serpente que habita a voz do Ventríloquo, metáfora da poesia? Seria essa uma imagem para a busca do conhecimento? Recorro a Paul Valéry (apud Campos, 1984), pela serpente do discurso de seus Cahiers, para pensar a imagem que confere ao movimento de descoberta da poesia uma outra, a da serpente que come a própria cauda. Seu fim é o seu princípio, o retorno. A poesia: um oroboro. Em 1944, escreve:
Mas é só depois de um longo tempo de mastigação que ela reconhece no que ela devora o gosto de serpente. Ela para, então… Mas ao cabo de um outro tempo, não tendo nada mais para comer, ela volve a si mesma… Chega então a ter a sua cabeça em sua goela. É o que se chama “uma teoria do conhecimento”. (Campos, 1984, p. 113)
Tarefa insólita a da poesia que deseja compreender o mundo, porque o “azul do mistério”, esse espaço intangível que o recobre evola-se sob camadas de realidade, estas sempre mais híbridas e complexas que as imagens televisivas do mundo urbano querem supor. A mídia mosaical de nossos dias reprime a realidade e a compartimentaliza em fragmentos de vozes (manchetes, textos e imagens). E a manipula. Sua ventriloquacidade está em seu poder de repetição e de exaustão dos significados.
Ventríloquo será aquele que, não desejando mostrar que fala, assumindo boca e rosto – ou a per-sona, a máscara através da qual soa a voz -, não faz outra coisa que falar, mas, ao falar com a barriga, mal fala, embora fale suficientemente para atingir seu fim, o logro do receptor quanto à origem da voz. (Tiburi, 2015, s/p.)
Mas a poesia tem sede e em nossos dias evola sua serpente como uma forquilha sobre o solo da linguagem. Procura também uma voz que do ventre dessa linguagem possa reinventar-se diante da memória de nosso tempo. Diante disso, um jogo se estabelece: a voz que vem do ventre da linguagem só se concretiza pelo corpo do ventríloquo. Este performatiza em voz, corpo e palavra as muitas vozes que escuta, de sua memória e experiência poética e de vida. Na impossibilidade de criar num mundo de cópias e emulações como o nosso, em que a noção de original é vaga e a de cópia, tradução e adaptação ganham espaço para dar conta dos vários textos que se desdobram no seu trajeto de representar o homem e seus questionamentos mais arquetípicos, a poesia encontra um modo de se insurgir como ação e como procura. Lograr o receptor quanto à origem da voz passa a fazer parte do jogo, e deixa de ser negativo para se configurar como um jogo salutar, porque questiona juntamente com o procedimento o modo de olhar e a profusão dos pontos de origem dessa voz, que vão mosaicar o mundo complexo do Ventríloquo: o mundo complexo da poesia que se desdobra nesse espaço.
Referências Bibliográficas
ASSUNÇÃO, Ademir (2012). A Voz do Ventríloquo. São Paulo: Edith.
___. Zona Branca (2001). São Paulo: Travessa dos Editores.
CAMPOS, Augusto de (1984). Paul Valéry: a serpente e o pensar. São Paulo: Brasiliense.
CAILLOIS, Roger (1986). Los juegos y los hombres: la máscara y el vértigo. Trad. Jorge Ferreiro. México: Fondo de Cultura Económica.
LARA, Larissa Michele; PIMENTEL, Juliano Gomes de Assis (2006). Resenha do livro os jogos e os homens: a máscara e a vertigem, de Roger Caillois. Revista Brasileira de Ciência e Esporte. Campinas, v. 27, n. 2, p. 179-185, jan.
LEMINSKI, Paulo (2002). La vie en close. 5ª. ed. São Paulo: Brasiliense.
MEIDNER, Ludwig (2004). An introduction to painting big cities. In: MIESEL, Victor H. Voices of German Expressionism. London: Tate Publishing. p. 111 – 115.
MIESEL, Victor H (2004). Voices of German Expressionism. London: Tate Publishing.
TIBURI, Márcia (2015). Ventriloquacidade. Revista Cult. Disponível em http://revistacult.uol.com.br/home/2015/11/ventriloquacidade/. Data de acesso: em 15/12/2015.
ZUMTHOR, Paul (2014). Performance, recepção, leitura. Trad. Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo: Cosac Naify.
The voice performances in the space of Brazilian contemporary poetry.
Susanna Busato
Abstract: This article aims to point out in Ademir Assunção’s winner book of 2013 Prize Jabuti – A Voz do Ventríloquo – the concepts of “performance” and “voice” as elements that emerge from the relations between the subject of discourse and the subjects of culture.
Key-words: Ademir Assunção, voice, performance, Brazilian contemporary poetry.
[1] Susanna Busato, Professora Assistente-doutor do Departamento de Estudos Linguísticos e Literários – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP, câmpus de São José do Rio Preto/ SP. susanna.busato@gmail.com
[2] A poesia oralizada com o acompanhamento da Banda Fracasso da Raça, em ritmos que vêm do rock, do jazz e do blues, é uma das atividades do poeta Ademir Assunção, enriquecendo sua performance criativa e crítica.
[3] “We cannot solve our problems by using Impressionist techniques. […] Traditional perspective inhibits our spontaneity and is meaningless for us. ‘Tonality’, ‘colored light’, ‘colored shadows’, ‘the dissolving of contours’, ‘complementary colours’, and all the rest of it are now academic ideas.” (Meidner apud Miesel, 2003, p.111)
[4] “Uma rua não é feita de valores tonais mas de um bombardeamento de esfuziantes fileiras de janelas, de gritantes luzes entre carros de todos os tipos e de mil esferas saltitantes, de fragmentos de seres humanos, cartazes de publicidade, e de cores disformes”. (tradução nossa)
[5] “É enfaticamente não uma questão de preencher uma área com desenhos decorativos e ornamentais à la Kandisnki ou Matisse. É uma questão de vida em toda sua completitude: espaço, luz e sombra, densidade e leveza, e o movimento das coisas – em síntese, é uma profunda percepção dentro da realidade”. (tradução nossa)
[6] “Pintemos o que está perto de nós, nosso mundo urbano! As tortuosas ruas, a elegância das pontes férreas suspensas, dos tanques de gás que se aglomeram em montanhas de nuvens brancas, as cores tremulantes de ônibus e locomotivas, os fios exasperantes de telefones (não são como música?), a arlequinados pilares de publicidade, e a noite… a grande noite da cidade…” (tradução nossa)
[7] Em termos estruturais, no plano do verso, o uso da fragmentação, da não-pontuação, da letra minúscula, dos dísticos e das estrofes longas, da liberdade em rimar ou não, dos enjambements fazedores de sentidos, enfim, nada disso é novidade para a poesia do agora, que se situa na liberdade formal das estruturas para se insurgir. Não percebo na poesia de Ademir Assunção a inauguração de uma forma nova no plano do verso; talvez não esteja aí o compromisso de sua poesia, ainda que ela eleja uma forma. Essa questão, sobre a qual não irei me deter neste momento, é importante para perceber que o plano formal do verso nasce a partir da voz e lhe dá concretitude.
[8] Faço aqui uma referência breve ao conceito de “mimicry” e “ilinx”, que Roger Caillois (apud Lara; Pimentel, 2006), na sua obra Los juegos y los hombres: la máscara y el vértigo, explica no contexto da noção de jogo. Roger Caillois categoriza como formas institucionalizadas, ligadas ao sistema, o “mimicry”, na sua referência ao “uniforme, os cerimoniais, os ofícios de representação”; e o “ilinx”, por sua vez ligado às “profissões que exigem domínio da vertigem” (apud Lara; Pimentel, 2006, p.180). Afirma-se também que a “ligação de mimicry e ilinx, em suas formas mais claras, aparece como metamorfose das condições de vida, constituindo-se num dos recursos principais da mescla de horror e fascinação. Nessas duas coligações, apenas as categorias mimicry e agon são consideradas verdadeiramente criadoras”. (Lara; Pimentel, 2006. p. 182) Poder-se-ia pensar, portanto, que o discurso lúdico das vozes que habitam A Voz do Ventríloquo estaria no âmbito da vertigem formal do discurso, da sintaxe vertiginosa.
“Não espere o leitor uma poesia de entretenimento, ‘limpinha’, ‘fofa’ e de fácil digestão, que anda em voga na NPB (nova poesia brasileira). O que Assunção nos oferece é uma poesia-porrada, que abraça o mundo em seu absurdo e violência...”
A Voz do Ventríloquo (editora Edith) traz a poesia inquieta de Ademir Assunção, que estreou há exatos vinte anos, com LSD Nô (Iluminuras, 1994). Depois de nove livros publicados e dois CDs de poesia, o jornalista, escritor e letrista ganhou, com A Voz do Ventríloquo, o Prêmio Jabuti de Poesia de 2013.
Não espere o leitor uma poesia de entretenimento, “limpinha”, “fofa” e de fácil digestão, que anda em voga na NPB (nova poesia brasileira). O que Assunção nos oferece é uma poesia-porrada, que abraça o mundo em seu absurdo e violência, mas que também é capaz de captá-lo com humor ferino (“árvores açoitavam cantoras de axé / com raquetes de frescobol”). O volume é atravessado por uma crítica indignada à mercadorização da vida, dos sentimentos, da religião. Como em “O Fim das Utopias”, tecido numa linha extensa que remete à Walt Whitman e aos letreiros digitais da bolsa de valores: “daqueles peitos perfeitos de silicone dow jones daquele rostinho lindo esticado com botox wall trade daquele rabo colossal esculpido com anabolizantes nasdaq só restou uma massa disforme de lixo altamente tóxico”. Ou em “O Reino Universal da Picaretagem”, onde “velhacos vendem graças / pra desgraça alheia // almas bem fodidas / igrejas sempre cheias // lorotas milionárias / escroques indecentes” […]
O ventríloquo é uma espécie de mágico que consegue, como explica a etimologia, “falar com o ventre”. Ou seja, alguém que consegue projetar a voz sem mexer os lábios, passando a impressão de que é uma outra pessoa que está falando. O poema curto “El Dia” parece resumir este processo: “o deserto nos fere / a face, a cidade nos / desmembra, a paisagem / se desloca, humanos / se destroçam, dói / uma dor de não sei/ onde, uma voz que não / chega a tanto, mínima / mímica de um gesto mudo, / falas perdidas num mundo / maluco”. Assunção revitaliza a ideia do poeta como xamã da tribo, que fala através de sua voz. “O Triunfo do General Mandíbula”, um dos poemas que abrem o livro, resume este processo.
Há neste uma maior unidade em relação aos livros anteriores, com sete seções ou grupos de poemas que são intercaladas por um “Diário do Ventríloquo”, em prosa. Um recurso bastante usado no livro é a parataxe, em que imagem é empilhada sobre imagem, com uma enumeração de suas qualidades, como se apenas mostrassem, como um instantâneo, um fragmento da realidade sempre em movimento. O tom mais discursivo de alguns poemas (como querendo nos convencer do urgente estado das coisas) é rompido pela presença de outros de extrema concisão e ritmo sincopado, como “Polaroide”, informado pela poesia oriental: “rimas / tão gastas // gatos / tão pluma // asas / no céu / da casa // noite / de lua/ nenhuma”. Não posso deixar de apontar, em todo o livro, mas notadamente em poemas como “Jack Kerouac na Praia Brava” e “Outros Dias”, um tom melancólico, em clima de “fim de festa”. Destaco um desses, “Flash”, que mostra o poder de Assunção em fazer música com a linguagem, ou seja, poesia: “ilhas, ilíadas, olhares / vozes no murmúrio macio // das madrugadas, passos / na areia do tempo, pessoas // que se cansam de cruzar / os desertos, ou desistem / de acender seus incensos // quando as palavras não dizem / mais nada // e tudo o que resta / é uma ode ao silêncio”. Em vez de se processarem por metáforas, o pensamento poético aqui procede por paragramas, com as imagens compostas por uma contaminação de sons e sentidos num encadeamento ao modo do jazz, até o tom niilista e surpreendente do final. A poesia, afinal, também é uma luta contra o silêncio, contra a incomunicabilidade.
Em A Voz do Ventríloquo, mais que em livros anteriores, em 57 poemas que estabelecem um diálogo maduro com poetas de sua predileção (Augusto e Haroldo de Campos, Leminski, Piva, Ginsberg) o autor parece assumir com mais veemência, na carne de seus poemas, o credo de que a poesia ainda pode ser um espaço de guerrilha, de crítica ao conformismo. De que ela pode, em tempos de superficialidade e banalização da linguagem, voltar a ser relevante, oferecer uma crítica da realidade.
“O poeta se filia à poesia marginal de todas as eras (com referências explícitas ou implícitas a Blake, Baudelaire, Kerouac, Ginsberg, Torquato Neto e Leminski), mas compreende que deve fazer algo com seu próprio tempo, pois este lhe foi legado, e não outro.”
(Jornal Rascunho # 164, Curitiba, dezembro 2013)
http://rascunho.gazetadopovo.com.br/chacina-never-stops/
“O pior dos temporais aduba o jardim.” Com essa citação de “Ninguém vive por mim”, de Sérgio Sampaio, Ademir Assunção abre A voz do ventríloquo. Tais palavras sugerem um desastre natural, uma catástrofe, para o sofrimento extremo de onde surgirá o jardim. Para compreendermos esse jardim, devemos nos perguntar o que é este temporal e o que é este solo sobre o qual a torrente se derrama.
Um poema declara que Chacina never stops (A chacina nunca pára):
tróia destruída, restam-nos
as ruínas de bagdá, chuva de mísseis
capacetes made in united states
of america, mãos decepadas e olhares
que ainda miram lugar nenhum.
Tróia é uma das mais antigas cidades arrasadas da história da poesia. Situá-la como origem mítica é atribuir a todo o processo de destruição determinada continuidade. A história da humanidade é identificada como a história da guerra. Assunção estabelece uma história sem fim, onde se modificam apenas os meios de destruição. A parte isso, história é destruição. Mas essa mudança não é menos significativa. O poeta se filia à poesia marginal de todas as eras (com referências explícitas ou implícitas a Blake, Baudelaire, Kerouac, Ginsberg, Torquato Neto e Leminski), mas compreende que deve fazer algo com seu próprio tempo, pois este lhe foi legado, e não outro. Em uma conversa em versos com Kerouac (Jack Kerouac na praia brava), o beat lhe pergunta “se ainda havia hippies/ nas ruas, feministas queimando sutiãs/ em praça pública e negros/ enforcados nos galhos de grossos carvalhos/ no novo méxico”. Ao que o poeta Assunção lhe responde: “oh não, jack, isso/ faz tanto tempo. agora eles mandam os jovens/ negros pobres para a guerra no iraque”.
A história da guerra sempre esteve entrelaçada com a das artes. E mesmo os poetas podem ser mais perigosos que soldados. Basta lembrar do futurismo de Marinetti, que consagrou a Primeira Guerra Mundial como o mais belo poema futurista; “a guerra é bela”, repetiam alguns poetas fascistas. Mas o entrelaçamento entre arte e guerra pode ser um pouco mais complexo. Certamente o poeta Hölderlin teria detestado ver seus poemas incentivando o nacionalismo xenófobo que inflamava os soldados. E não é a mesma a relação de Homero — quando dizia, na Ilíada, que “a guerra então parece um amavio mais doce/ do que voltar à pátria em côncavos navios” (trad. Haroldo de Campos, 2002) — e a do manifesto futurista de Marinetti com a guerra fascista: “Não há nada para nós admirarmos hoje além das espantosas sinfonias dos estilhaços e as insanas esculturas que nossa inspirada artilharia molda entre as massas do inimigo”.
Seja como for, na Grande Guerra do século 20, os soldados alemães levavam poetas nas mochilas para inspirá-los no momento da carnificina. Hoje, o rock’n’roll embala as ruínas do oriente. Ainda em Chacina never stops:
crucifixos
radiativos lançados sobre cabul
por um helicóptero ianque, pearl jam,
iron maiden e nirvana a todo volume
no headphone do soldado imberbe
(…)
antes que a luz do sol pudesse
iluminar o caminho de volta, o retorno
a uma ítaca estampada nas páginas
de um gibi amarelado, ou de um jornal
que embrulha o peixe na feira
E em O pântano, a Segunda Guerra Mundial se enrodilha nas ramagens do poema (e assim a estrutura secreta que serve como véu de toda A voz do ventríloquo se deixa, sutilmente, ver):
Há uma serpente enrodilhada nas ramagens
do poema:
cauda verde-turquesa, escamas
mitológicas, cabeça
de névoa.
Há um cemitério de aviões de caça da Segunda Guerra:
fuselagens corroídas
por vermes replicantes, ranhuras
de ferrugens,
pontas preparadas para rasgar a carne
dos incautos.
Poética avessa
O livro de Assunção é extremamente violento. O poeta que foi à guerra diz ter retornado perigoso. “Escrevo, e por isso deixo aqui/ palavras escritas na água, na carne/ dos que sofrem, escrevo com sangue”, “quebrei o nariz de dois cretinos (bem maiores que eu)”, “eu sou a mandíbula do tubarão” e “tenho gritado raios elétricos, chuvas/ que não passam, maremotos, tremores e ruínas// grito: e meu grito ilumina”. O que escrever após a chacina? O primeiro poema em prosa da obra adverte: “Poetry is dead” (A poesia está morta). A sentença é antiga. Ou a poesia agoniza há muito tempo, desde que sua morte foi anunciada, ou é um morto-vivo que não sabe mais por que caminha, que força oculta e perigosa ainda a move. Mas é tarefa daquele que pensa o seu tempo redefinir as velhas perguntas e oferecer novas respostas. Chacina never stops, poetry is dead. Frente a isso, apenas um lugar resta ao poeta: a poesia marginal. Aquela que se identifica com os oprimidos, com os pé rapados, com a ralé, com todo tipo que a sociedade ocidental rejeita ou submete.
Mas, apesar da filiação a determinada tradição da poesia, Assunção permanece desconfiado de tudo e de todos. O que marca decisivamente sua diferença com relação à geração beat, com quem poderia ser injustamente identificado e à cuja estética inadvertidamente reduzido, é a ausência dageração. Não há os porres alucinados com bandos de vagabundos como em On the road ou Uivo. O poeta não é mais o de companheiros de sofrimento, mas um único lobo solitário. É o que tenta advertir em Homem só.
Essa solidão, no entanto, tem outra amplitude. A literatura parece um lugar igualmente suspeito para Assunção. Dessa concepção surgem duas práticas poéticas: por um lado, a canção penetra intimamente a forma dos poemas, que se tornam estranhos, com uma rítmica vagamente reconhecível (o lugar ambíguo entre a poesia e a música é anunciado no poema Orfeu no quinto dos infernos, assim como a relação com a penúria de seu estado espiritual); as palavras nem sempre são ordenadas segundo suas concretudes, mas segundo ordenamentos típicos da construção cancional: abundam as aliterações, e as estruturas rítmicas fixas se camuflam sob a aparência dos longos versos, ou dos falsos enjambements.
Por outro lado, a própria história da literatura não é levada a sério. É como se ela não o merecesse. A mitologia grega aparece levianamente em seus poemas, que não querem respeitar esta tradição e deixar seu conteúdo intacto. Seu Ulisses na tormenta não sabe conduzir seu navio, Orfeu no quinto dos infernos não lida mais com Eurídice (palavras mortas). O poema que fecha o livro, A origem do mundo, faz tábula rasa de toda a história da poesia. Nada importa, “sem isso, nem isso/ esse poema/ : o fim e o início”.
Esta situação de eterno-retorno da chacina, a generalização da guerra dentro e fora de todos, é o que gera a voz paranóica deste livro de Assunção, que não pode confiar não só em ninguém, como em nenhuma época de redenção. O fim das utopias é representado não apenas pelo desaparecimento da terra prometida da poesia política, como também pela impossibilidade de epifanias de experiências verdadeiramente felizes, ou duradouramente prazerosas e agradáveis. Por isso a imagem mais forte da felicidade em A voz do ventríloquo é a da série “Vida em tecnicolor”, um sonho pálido de uma vida em lugar algum, em tempo algum, de substância alguma. Foi em outra vida a promessa de felicidade, que agora aparece somente como uma antiga tecnologia de coloração. O terceiro poema da série aponta para a fragilidade dessa felicidade:
agora digo nada, a vida
que se vive agora, o relógio
marca as horas, clepsidra
que evapora, silêncio
nas bordas do tempo, escrita
perdida no espaço
Em Assunção, o modo de ser da vida se confunde com o modo de ser da guerra, relação íntima exposta por Paulo Arantes, em seu artigo Guerra sem névoa:
Se ainda fosse preciso expor mais uma vez o sistema de afinidades eletivas que comanda a evolução conjunta da máquina de guerra americana e a afluência do consumo de massa que a legitima, e vice-versa, pois na base da prosperidade material, o público podia divisar igualmente o combustível do terror nuclear, bastaria um estudo de caso a respeito dessa espantosa continuidade entre as duas mobilizações: a das bombas e seus vetores e a da sociedade motorizada. Nunca é demais lembrar a propósito que a fábrica taylorista é contemporânea da guerra civil americana e que os soldados americanos reencontraram a linha de montagem fordista nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial. (…) [A transformação da guerra] viria com a revolução nos assuntos militares durante os anos McNamara à frente do Departamento de Defesa, exponenciada pelo management científico da Guerra do Vietnã, sem falar na proliferação dos think tanks recheados por uma nova espécie de intelectuais, responsáveis por um também novo discurso da guerra, cuja sintaxe se resumia a uma combinação de teoria dos jogos e suas supostas decisões racionais, mais análise de sistemas, tudo sob a rubrica geral dos assim chamados estudos operacionais. Embalavam todos a miragem fatal de uma guerra sem fricção.
Ademir Assunção parece estar ciente dessa fina sintonia. Guerra e vida se misturam em seus poemas. A guerra sem fricção de nossos tempos removeu a névoa que a separava de nossos hábitos mais diários, como abastecer o automóvel. Se Carl von Clausewitz sentenciou a máxima de que a guerra seria a continuação da política por outros meios, nos poemas de Assunção, a vida e a guerra são um só meio pelo qual a humanidade constrói sua história. Em O triunfo do general Mandíbula, escreve:
o caos ecoa nas ruínas,
escuras esquinas do inferno, pompéia,
são paulo, istambul, atenas, a moda
do outono é a decadência do inverno,
dizem que os profetas só predizem
desatinos, pássaros tenebrosos nublam
presságios, o cacto rubro desconhece
a flor do destino, é no silêncio
que os banqueiros multiplicam seus
ágios, quebram-se dentes, racham
mandíbulas, ossos estalam nas tumbas,
o vento varre os edifícios da cidade,
baleias destroçam submarinos, bruxos
eslavos rasuram signos mágicos, otários
neochics imitam macacos, cadelas
burguesas tomam no rabo, hackers
detonam a musa da TV a cabo, nada faz
sentido nessa névoa de bosta, lama
espessa subindo ao pescoço
Não sabemos se o autor está falando da guerra, de um momento anterior ou posterior a ela, ou se de nossas vidas. Mas talvez estes momentos não existam em Assunção. A vida é luta sangrenta, carnificina. E quem se distrai acorda com o supercílio rasgado. O poema “Videogame” capta essa fusão de vida-guerra-arte. O videogame poderia ser definido como a arte total, mas também como a vida total e, por vezes, a guerra total. O poema mimetiza a voz de uma criança: “quem vai sentir falta/ dessas baratas? (…)/ e que se fodam/ todos los hermanos, cambada/ de terroristas islâmicos,/ papai me disse que eles comem/ gente”. O interessante aqui não é a suposta denúncia de uma criança alienada, mas a fina percepção da ausência de limites entre as supostas “esferas autônomas” da vida.
Sem história ou respostas
A voz do ventríloquo não é um livro de poemas. Não é um livro de concreção das palavras. Elas se esvaziam de sentido e de peso rapidamente. Tornou-se impossível compor poemas após as grandes guerras. Na cova dos leões adverte: “e no nono dia fez-se o verbo, e o verbo/ virou verborragia, palavras inúteis,/ sílabas apenas sílabas, letras,/ desenhos, grafias”. É visão de mundo barroca da morte das coisas (ou da morte de Deus): a perda do sentido que uma palavra possuía, de um peso específico, o que a libera de seus significados últimos para estar aberta aos significados múltiplos, todos vazios. Por isso tantas palavras, e não apenas a precisa, não apenas a última. Todas as palavras estão abertas a muitas outras. Este não é, assim, um livro de precisão: o ventríloquo fala como se não dissesse, como se fosse outro, ou como se a voz viesse de outro lugar. Esta já não lhe pertence, embora lhe pertença totalmente: o ventríloquo diz a própria voz. Por isso ela está leve, sem peso, não se agarra às coisas. E o que destruiu toda a garganta e a boca de Assunção foi este início de século 21, que se cria sem história, e que inventou formas de destruição inimagináveis, agora denominadas “guerra limpa”.
No século 20, Carl Jung havia apontado para os elementos de antecipação que a arte possui. Para ele, a arte capta intuitivamente as orientações futuras da consciência geral. Assim, teria dito que o Expressionismo antecipara o niilismo dos médicos, o que teria dado origem posteriormente ao interesse gradativo pelo psíquico, em detrimento do corpo biológico (a poesia do alemão Gottfried Benn seria pioneira neste caso). Esta intuição nada tem de mediúnica, no sentido sobrenatural: ela diz respeito a processos que se elaboram antes, na inconsciência, e que só tardiamente se manifestam de maneira mais explícita. Em que medida essa teoria de Jung se mostra fértil para a compreensão da arte é ainda uma questão em aberto. Mas o fato é que o livro de Assunção parece ter previsto algumas coisas. Quem poderia dizer, mesmo nos anos de 2011 e 2012, que “a agência do bradesco arde/ em chamas” e que “punks desfilam nas ruas/ de copacabana”? Muitos versos deste livro ganharam uma nova iluminação com os rumos do país neste ano. Algo já se elaborava, e isso demonstra que há ainda alguns elementos em A voz do ventríloquo que nos dizem respeito.
Para Ademir Assunção, a chacina não tem fim. O que a perpetua? As profecias ensinam; mas o que fazer com o nosso tempo, que não é mais dado a respostas? Um dos poemas que abre o livro, anuncia, hermético, seu tom profético, com menções secretas ao nosso tempo sem história e sem respostas:
relógios
praticam saltos ornamentais em piscinas
vazias, neve ao redor dos cabelos, chove
na terra inteira, dedos de açúcar tocam
a escama dos peixes, o corpo todo presente
a presença de um deus, e você finalmente encara
o úmido olho azul do mistério
“Na poética de Ademir Assunção, a palavra é respiração, sopro, vento. Anima convertida em som, em ritmo, numa música que se extrai de si mesma, mas que, aristotelicamente, não se separa do corpo, não ascende e nem é sublimada.”
(Bordas, Revista do Centro de Estudos da Oralidade, n.1, p. 94-97, 2014)
A VOZ DO VENTRÍLOQUO, LIVRO DE ADEMIR ASSUNÇÃO, TRAÇA A VIA-CRUCIS DA POESIA, SUA MORTE E REDENÇÃO
A ventriloquia, arte de projetar a voz e, assim, dar vida a um boneco, tem sua origem em práticas divinatórias comuns entre os povos antigos da Grécia, Egito e mesmo entre os hebreus. Um dos primeiros ventríloquos de que se tem notícia foi Eurycles de Atenas, cuja performance lhe rendeu fama ao ponto de seus discípulos serem denominados eurycleides. Ventríloquo seria aquele que fala pelo ventre, sacerdote em comunhão com a abundância e a degradação da carne, engastrimanteis, profeta da barriga, que, ao se comunicar desse modo, topograficamente, comunica-se também com o mundo dos mortos. A voz do ventríloquo surge do subterrâneo. É a voz do morto.
Não é por acaso que o mais recente livro de Ademir Assunção se chama A voz do ventríloquo (Edith Edições, 2012). Quem encontra o poeta no livro Zona branca, de 2001, perceberá em seu repertório e imaginário um mergulho com e na divindade; aquela que atravessa o tempo e a história e dança, simultaneamente, num filme de Wim Wenders e no rapto de Baco. Quem teve a oportunidade de assisti-lo em suas performances, como Rebelião na zona fantasma, saberá do papel crucial da voz na composição de seus poemas: a ação da voz que projetada ao outro já não lhe pertence, como frisa Paul Zumthor em Introdução à poesia oral (2012); o ruído da música em redor que agrega e fragmentaliza; o corpo, gesto e contenção, circularidade; o poeta como um titeriteiro de si mesmo.
Redigido em sete partes, denominadas Diário do ventríloquo, e dois adendos, Miséria crítica e O fim e o início, o livro proclama a morte da poesia, uma garota perdida, envaidecida a respeito de si mesma, enganada por cafetões e outros animais de uma fauna urbana violenta e abjeta. Talvez não se devesse dizer a morte da poesia, mas a dissolução do simulacro. A cena literária apresentada é nauseante e não há outro recurso se não pisar no acelerador, arremeter o carro, o avião, a si mesmo contra o muro. Só a quebra do simulacro pode restituir à poesia não a dignidade, mas o poder. Só a falência e a destruição do banquete bufo no qual se encontram os poetas e os produtos de sua escrita serão capazes de reinaugurar na poesia a sua capacidade de criar e recriar o mundo. Mas esta é, grosso modo, a fábula. E o livro é mais do que ela, ele a transcende.
Há mesmo, perpassando a obra, esse encontro com o daimon, o poeta como cavalo de Exus das mais variadas denominações, de Ulisses a Jack Kerouac, de Leminski a Iansã. Xamã de espíritos poderosos, como a serpente, o Grande Gavião Terena, Billie Holiday, o poeta saúda a força salutar da palavra, celebra sua condição orgânica. Na poética de Ademir Assunção, a palavra é respiração, sopro, vento. Anima convertida em som, em ritmo, numa música que se extrai de si mesma, mas que, aristotelicamente, não se separa do corpo, não ascende e nem é sublimada. Poesia para ser cantada, gritada, dançada no meio da tempestade ou entre as cadeiras que voam em meio à briga do bar. No poema V de vingança, por exemplo, esse caráter inquieto e semovente é dado pela irregularidade métrica, pelas aliterações, pelas rimas internas em “i” e em “u”, tudo concorrendo no sentido de se criar movimento, turbilhão: v – meu nome é vento, / passo sem ser visto / aliso crinas, enlaço dálias, resisto, despisto / mas quando me enfureço / derrubo muros, esmurro rimas, usinas, destruo / São Paulo em chamas, caóticas esquinas / o edifício da Fiesp em ruínas […].
Catilinária contra vários inimigos, entre eles o capitalismo flácido, prestes a desabar sobre suas próprias contradições, a verborragia, a festa pobre dos que queimam na própria vaidade, A voz do ventríloquo não deixa de ser, principalmente, uma profissão de fé. Parafraseando Osman Lins, que em seu Avalovara afirma que um unicórnio circula entre suas páginas, não é exagero afirmar que circula entre os poemas de Ademir Assunção um Orfeu antigo, talvez agora bêbado de whisky e sujo de dormir nas calçadas; um cara durão versado nas trapaças do jogo, mas que desce aos infernos sem medo e com a maestria de sempre em dialogar com o velho Hades.
É possível encontrar esse Orfeu explicitamente no poema Orfeu nos quintos dos infernos ou, sujeito oculto, em Sol negro & cabeças cortadas. Mas certamente em Diário do ventríloquo (sexta noite) / Fábula bufa numa tarde chuvosa é que essa personalidade dupla, ao mesmo tempo fulgurante e sombria, posto que participa dos dois lados da vida (o além e o aquém), dá as caras. À parte o inconveniente da longa citação, vale à pena observar como o poeta maneja o mito, atualizando-o com picardia:
Ela fazia ar de inteligente quando comentava seus poetas preferidos (e até lembrava versos em voz alta), abusava dos diminutivos (tipo: gatinhos, nuvenzinhas e sofazinhos), chamava os amigos de “fofo”, e mesmo os desconhecidos de “querido”, e supunha esconder algo extremamente sutil por trás de comentários engenhosamente construídos à base de elipses – pelo menos, era o que pensava –, postados com regularidade em seu blog. Tivesse realmente uma herança aristocrática circulando nas veias, na primeira oportunidade se revelaria uma víbora. Mas o Diabo não distribui democraticamente a danação do talento. Na primeira oportunidade, o que se revelou foi um total despreparo para encontrar a saída de emergência. Quando Ele enxugou a boca com a manga da camisa, jogou a garrafa de Johnny Walker em cima da cama (quase errou) e disse “tire a roupa”, Ela se encolheu no canto do quarto, as mãos trêmulas amassando a barra do vestidinho e quase gritou, desprotegida “Eu quero a minha Barbie”. (ASSUNÇÃO, 2012, p.73)
Há de fato, ainda, uma Eurídice pouco elogiosa nas entrelinhas de A voz do ventríloquo. Em várias passagens, o feminino, no livro, é risível em sua superficialidade esticada em botox, em sua vontade inconsequente de fama, em sua ingenuidade sem redenção. É o feminino que se nega a si mesmo. Trata-se, antes, da musa degradada, mais do que uma possível leitura de misoginia. Trata-se da poesia morta, vilipendiada, aquela falada já no início deste texto, e do próprio livro. É contra a depravação da musa que o p(r)o(f)eta se insurge. No poema Orfeu nos quintos dos infernos a voz poética é enfática, não lhe serve, a Eurídice simulada, a farsa: eu sou poeta e sigo em frente / em linhas tortas / eu não lido com palavras mortas.
Dois adendos encerram a viagem pop-ginsbergiana de Ademir Assunção. O primeiro intitula-se Miséria crítica e é composto pelo poema Balada de Chatotorix, referência ao personagem das histórias de quadrinhos de Asterix, criada por Uderzo e Goscinny. Chatotorix é o bardo irritante, de talento duvidoso, que, ao final dos episódios, é amordaçado, amarrado e, não raramente, espancado enquanto a aldeia gaulesa festeja. Irônico, o poema ridiculariza o “jantar das artes” e o cambaleante cenário da crítica literária. O poeta tem fome e não se deixa enganar. Para reforçar que o livro é todo ele uma tomada de posição, uma articulação viva e, sobretudo, política pela poesia.
O adendo final chamado O fim e o início é composto pelo poema A origem do mundo (um esboço) e ilustrado por uma reprodução do quadro homônimo de Gustave Courbet, de 1866. No centro do quadro, uma vulva coberta de pelos é metáfora do desejo concreto. O sexo feminino, normalmente encoberto e censurado, é apresentado sem interdições, sem o conhecido jogo de esconder/revelar. Exposta a cru, sem mediações, sem os véus da moral e dos bons costumes, A origem do mundo, a vulva, fala de uma verdade ousada: a verdade da carne, o poder gerador que reside no corpo, no baixo ventre. Trata-se, mais uma vez, de um poder de vida e morte. E é desse poder que a voz poética se banha; é nele que acredita e a quem defende, é o seu ouroboros, seu princípio (e seus princípios) e seu fim (suas finalidades). Ao escolher utilizar o quadro de Courbet, o falocentrismo desconstruído, no dizer de Derrida (Sur Parole, 1999) para compor o poema, o poeta reitera sua posição: uma poesia sem concessões, ciente de si mesma, do seu poder gerador. Insubmissa é a palavra que sai do ventre, é a voz do ventríloquo, do morto que retoma o seu lugar.
Referências
ASSUNÇÃO, Ademir. A voz do ventríloquo. São Paulo: Edith, 2012
DERRIDA, Jacques. Sur parole: instantané philosophiques. Aube: La Tour d’Aigues, 1999.
ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. Trad. Jerusa Pires Ferreira, Maria Inês de Almeida, Maria Lúcia Diniz Pochat. Belo Horizonte: UFMG, 2012.
Micheliny Verunschk Pinto Machado é poeta, mestre em Literatura e Crítica Literária, doutoranda em Comunicação e Semiótica pela PUC de São Paulo, pesquisadora do grupo Barroco e Mestiçagem, liderado pelo professor Amálio Pinheiro, e do Centro de Estudos da Oralidade, liderado pela professora Jerusa Pires Ferreira.
“... a montagem ou justaposição de cenas é uma técnica narrativa do cinema, que está presente em quase toda a obra de Ademir Assunção, em especial nos livros Cinemitologias e Zona branca, mas também aqui, na Voz do ventríloquo...”
(Revista Cult # 187, São Paulo, fevereiro de 2014)
http://revistacult.uol.com.br/home/2014/02/general-mandibula-ataca-gotham-city-a-poesia/
A voz do ventríloquo (São Paulo: Edith, 2012, que recebeu o Prêmio Jabuti no ano passado) é o quarto volume de poemas de Ademir Assunção, que também publicou LSD Nô (1994), Zona branca (2000) e A musa chapada (2008, em parceria com Antônio Vicente Seraphim Pietroforte e o artista visual Carlos Carah), além dos volumes de prosa experimental A máquina peluda (1997), Cinemitologias (1998), Adorável criatura Frankenstein (2003) e dos CDs de música e poesia Rebelião na zona fantasma (2005) e Viralatas de Córdoba (2013). Os títulos de seus livros já deixam explícito o diálogo do autor com o universo das histórias em quadrinhos, do cinema, da música pop, da contracultura, das mitologias pré-colombianas e do Oriente – diálogo já bem comentado na fortuna crítica do autor.
Estas referências são comuns a outros poetas de sua geração, como Maurício Arruda Mendonça, Marcos Losnak e Rodrigo Garcia Lopes, que compartilham ainda o interesse pela poesia e concepção de vida dos poetas beats norte-americanos, como Gregory Corso, Lawrence Ferlinghetti e Allen Ginsberg. A poesia de Ademir Assunção, no entanto, não se esgota em tais referências: sua temática é mais ampla, incluindo o retrato alegórico da cidade, com ênfase nos que estão situados à margem, como as prostitutas, traficantes, menores abandonados e moradores de rua, a reinvenção de mitos indígenas, gregos e bíblicos (“Ulisses na tormenta”,“Na cova dos leões”), a sensação de deslocamento e incomunicabilidade num mundo cada vez mais dominado pelo mercado e pela mídia, a loucura belicista, a busca do amor como a utopia possível, para citar alguns temas recorrentes.
Sua técnica literária pouco tem a ver com a prosódia beat: basta compararmos um poema de Allen Ginsberg, como o “Uivo”, com seu jorro discursivo que se aproxima da prosa, com “O pântano”, um dos mais belos poemas de A voz do ventríloquo: “Há uma serpente enrodilhada nas ramagens/ do poema:/ cauda verde-turquesa, escamas/ mitológicas, cabeça/ de névoa”. Este poema se aproxima da estética neobarroca, não apenas pela riqueza imagética e metafórica, mas sobretudo pela colagem de referências de diferentes repertórios culturais, como “um cemitério de aviões de caça da Segunda Guerra” e “uma rainha que trepa/ com o próprio filho” (Jocasta?), “prostitutas chinesas” e “um monstro de folhagens/ e couro cru de crocodilo”. Claro: a montagem ou justaposição de cenas é uma técnica narrativa do cinema, que está presente em quase toda a obra de Ademir Assunção, em especial nos livros Cinemitologias e Zona branca, mas também aqui, na Voz do ventríloquo, assim como o diálogo criativo com o jazz (“Billie Holiday na porta dos fundos”), a pintura (“O grito”) e a televisão (“A vida em tecnicolor”). Não se trata de mera exibição de citações cultas, fetichismo que muito afetou a poesia da década de 1990, mas de releituras que o poeta faz das coisas que fazem sentido para a sua sensibilidade e compreensão de si mesmo e do mundo, de seus medos, vivências e obsessões.
Podemos dizer que a poesia de Ademir Assunção tem um alto grau de sinceridade, mas que não é confessional, como boa parte da literatura beat – os poemas amorosos de Allen Ginsberg e os romances de Jack Kerouac, por exemplo, onde são nítidos os traços autobiográficos. A sinceridade na escrita, é bom ressaltar, não significa o registro imediato de sensações, o lirismo espontâneo, herdeiro da escrita automática dos surrealistas (a frase zen-budista “primeira ideia, melhor ideia” era uma das favoritas de Ginsberg). Ademir Assunção visa justamente o contrário, desautomatizar a escrita e o pensamento, para tornar mais afiadas as palavras da tribo: “eu sou poeta e sigo em frente/ em linhas tortas / eu não lido com palavras mortas”, diz ele no poema “Orfeu nos quintos dos infernos”.
A imaginação poética – melhor dizendo, a máquina de fabricar mitologias – de Ademir Assunção caminha de mãos dadas com a informalidade de Paulo Leminski, Roberto Piva e Torquato Neto, três de seus ícones culturais – por isso mesmo já chamei essa poesia, em outro artigo, valendo-me de um oxímoro, de “formalismo informal”, característica que acompanha o autor desde o seu primeiro título publicado, LSD Nô (1994), em que é mais evidente a influência da Poesia Concreta, na escolha da tipologia de letras, espacialização das palavras e linhas e outros recursos que realçam a visualidade. Notáveis são os haicais que Ademir Assunção – estudioso e praticante do zen-budismo – inclui no final desse livro, entre eles “a chuva/ molha/ uma lágrima” e “cachorro sem dono/ chuva fria/ de outono”.
A paródia é um dos recursos mais usados pelo poeta, seja a glosa satírica do discurso quinhentista, em Máquina peluda, seja a reapropriação crítica da linguagem e técnica narrativa das histórias em quadrinhos, em Zona branca e A voz do ventríloquo, onde aparecem personagens como o General Mandíbula, o Anjo do Ácido Elétrico e Mister P., inventados pelo autor, ao lado de Orfeu, Ulisses, Heráclito, Iemanjá, o Coringa e King Kong. A própria Poesia, e o seu irmão Prosa, comparecem nas páginas do “Diário do ventríloquo”, inserções de prosa narrativa com fundo preto e as letras em cor branca que aparecem em várias seções do livro, como se fosse uma narrativa paralela, um canto dialogado. A organização dos poemas e textos em prosa obedece a um princípio não-linear, mimetizando, no próprio corpo semântico, o caos e a fragmentação do mundo a nossa volta. O fio condutor do livro talvez esteja no próprio título do volume: é a voz invisível do ventríloquo, esse eu lírico que percorre as ruas de Gotham City “enquanto o Coringa injeta no braço esquálido/ a última gota da ampola”.
Convém destacar o trabalho de Ademir Assunção com a oralidade, presente sobretudo em seus CDs, Rebelião na zona fantasma e Viralatas de Córdoba, em que os poemas não são cantados, nem recitados com intenção retórica, mas declamados com fina sensibilidade; o poeta explora a dimensão melódica e emotiva de cada palavra, com silêncios, ênfases e variações de timbre, dialogando com as intervenções sonoras da banda Fracasso da Raça, numa unidade estética entre palavra e música.
“A poesia de Ademir Assunção, portanto, é um libelo de insatisfação contra o mundo contemporâneo: beira o jorro da fala, é calculada e incisiva em sua expressão e sobretudo petulante contra o status quo.”
(Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 27 de outubro de 2001)
Em boa parte da poesia brasileira que se publica atualmente chama a atenção a predileção pelo uso de formas clássicas – em muitos isso chega ao exagero da imitação não apenas formal mas expressional de linguagens de outras épocas, a tal ponto que fica no leitor a dúvida quanto à idade do poeta que se lê, uma vez que os traços do contemporâneo são obscurecidos ou inexistem. Outro dos sintomas de muita dessa poesia é a preferência por um lirismo em geral ingênuo, ao qual qual se poderia aplicar a palavra alienado, pelo tanto que nele transparece a ausência de interrogação do próprio tempo. Essa marca é como que sinônimo de ausência de rebeldia, trocada pelo gosto por um beletrismo que promete a ilusão de acesso fácil à academia. Tal poesia constrói-se à sombra da diminuição da potência destruidora e renovadora do ideário moderno, recende a monotonia e, padecendo de criticidade, daquele impulso corrosivo do moderno, não aparenta energia suficiente para superá-lo, renovando o pensamento. Sua continuidade e o enfraquecimento do impulso modernista nos trazem à cena contemporânea, na qual o conflito praticamente inexiste e todas as formas e ideologias convivem em nome do pluralismo e da diversidade que a regem. Essa poesia, no entanto, não seria de todo desinteressante se aprendesse com seu oposto, assimilando sobretudo a criticidade ou, em suma, a rebeldia que desanestesia o pensamento e o renova.
Se, no entanto, não é possível encontrar a insatisfação objetiva com o presente nessa poesia, não nos faltam exemplos de poetas que contra ele investem usando de imaginação e o que de melhor acumulamos de experiência de linguagem e de reflexão neste século que passou. É o casos de Zona Branca, segundo livro de poemas de Ademir Assunção, que já começa pelo título contaminando-se do imaginário de um presídio de segurança máxima, inspirado na ópera-rock Joe’s Garage, de Frank Zappa, para onde são enviados os rebeldes, dissidentes e arruaceiros.
Não se trata de um mero Carandiru, mas de uma outra dimensão do espaçotempo, onde os presidiários são submetidos à incomunicabilidade total, embora possam ver em detalhes tudo o que está acontecendo no chamado mundo real, estruturado por um sistema de poderes disseminados e não identificáveis facilmente. Nele, a cooptação de artistas é moeda corrente para transformá-los em celebridades e burgueses decadentes; a manipulação de fatos e idéias, por sua vez, mantém no ostracismo os criadores brilhantes e promove clones descartáveis para alimentar as hordas miseráveis que se humilham, matam e morrem nos semáforos e becos mal-iluminados.
Trata-se, portanto, de um livro eminentemente urbano, que se alimenta de filmes, música, artes plásticas e literatura e do caldo que sai dos meios de comunicação de massa, cuja epígrafe inicial é de William Burroughs e dá o tom da sua escrita: “Linguagem é um vírus”.
A poesia de Ademir Assunção, portanto, é um libelo de insatisfação contra o mundo contemporâneo: beira o jorro da fala, é calculada e incisiva em sua expressão e sobretudo petulante contra o status quo. Há um poema, por exemplo, “Anti-Ode aos publicitários (De um guerrilheiro morto em combate)”, que diz “eu quero que vocês morram” – referindo-se aos publicitários que usaram a figura de Che Guevara como propaganda do Limpol em comerciais. Não se trata, no entanto, de uma raiva xiita a se manifestar, pois nela há um senso de humor refinado, um antídoto a esse que poderia ser mais um clichê e, assim, a morte desejada aos vampiros publicitários pode ser ultimada com “uma estaca/ cravada no prepúcio”…
A contestação à sociedade de consumo se derrama para o meio da poesia, esse meio cândido, em “Descida aos inferninhos” que ironiza: “eureka – grita o poeta/ achei meu estilo, traço rude de fino tino,/ quer dizer, daqui detrás dos montes/ vai ser ferro na perereca/ cuspe seco, pedra cabralina”; define uma postura: “cansado da palavra polida/ hímem rompido da beleza clássica/ o poeta talha o verso com pedra lascada/ primata astuto, ladrão convicto/ despedaça pétalas, arrebenta rimas/ imola virgens, deflora rosas/ segue viagem com um guia cego/ desce aos infernos, aos inferninhos”, onde encontra o que abomina: as musas e os poetas “sugando esperma em troca de dinheiro/ vulgares em suas rimas ricas/ musas de luxo na corte das artes/ carne à la carte, poesia em postas/ máscara bem moldada ao talhe da face”.
Zona Branca, assim, é um livro percorrido pela insatisfação, impregnado de literariedade sem ser beletrista e sem lugar para o clássico, a não ser pela via referencial de signos como sereias e seus silvos, navios e obeliscos que podem habitar os poemas como retalhos e imagens, como se estivessem num sonho de alguém que vive plenamente sua época, ironizando-a em suas banalidades, inclusive literárias, tal como se comprova no poema de sugestivo título, “Terapia de vidas futuras”. O clássico, então, comprova-se que pode ser assimilado como signo sem ser repetido como linguagem extemporânea.
Quanto ao lirismo, está lá, em consonância com a época, sem ingenuidade e contaminado pela crueza deste mundo. O poema “5 dias para morrer”, dedicado a Hector Babenco, expõe o olhar sensível de quem ainda encontra lirismo no mundo, em seus detalhes, na natureza, nos objetos que o cercam, mas definitivamente a inocência está perdida e se existe, manifesta-se como fratura: “morreremos loucos, Ana// os sapatos/ novos/ em cima da mala/ – mala notte/ o dia, a pior/ foto: olhos úmidos/ no vídeo/ flashbacks:/ a virilha imunda/ do marinheiro/ os eletrodos frios/ nas têmporas/ as pílulas coloridas/ peixes/ num aquário/ cujo vidro/ quase se quebra/ toda vez/ que o tocamos// sim, Ana/ morreremos loucos/ mas/ esta noite/ dormiremos/ juntos”.
Esse lirismo e sua prática são definidos por uma epígrafe de Nietzsche e se adequa perfeitamente a essa poética que tem se construído desde o livro anterior, LSD nô (Iluminuras, 1994): “De tudo o que se escreve, aprecio somente o que é escrito com o próprio sangue”.
“Antes de fazer reparos ao modo como o entusiasmo, no sentido grego da palavra, parece suprimir boa parte do senso crítico de Ademir Assunção, convém deixar claro que ninguém, aqui, está defendendo procedimentos como o filtro da emoção pela razão...”
(Revista Cult, São Paulo, outubro de 2001)
Assim como em seus três livros anteriores, neste recente Zona Branca, do qual um dos atributos é a qualidade gráfica, Ademir Assunção exibe uma postura bem definida. O próprio título, inspirado em uma ópera-rock de Frank Zappa, serve-lhe de metáfora: trata-se de uma zona de confinamento e exclusão, informa a orelha do livro, a partir da qual se enxerga a cooptação do artista, a manipulação de fatos e idéias, acrescida pelas hordas de miseráveis, todos eles sob o império da publicidade e da ignorância. Enfim, o mundo em que vivemos, cujas regras do jogo Ademir Assunção não aceita, declarando-se à margem.
Sabe-se que inconformismo e visão crítica da sociedade, por mais corretos e fundamentados que sejam, não resultam obrigatoriamente em boa poesia. Demonstra-o a torrencial produção de panfletos denunciando a injustiça e a opressão que já quiseram passar por literatura e muito do que foi escrito encarnando a revolta individual, mais recentemente herdeira ou continuadora da contracultura.
Contudo, Ademir Assunção, mesmo dedicando algumas das páginas de Zona Branca, as menos inspiradas e mais reiterativas, aos pesadelos modernos, vai além. Na maior parte do seu novo livro, fala do outro lado da realidade, da esfera do propriamente poético ou do lugar onde poesia e vida se fundem, tornando possível o reencontro consigo mesmo e com a alteridade, onde a união amorosa se realiza como êxtase e transfiguração. Por isso, desde suas primeiras páginas há uma exaltação dos raros prazeres associados a uma erótica delicadeza, expressos através de uma linguagem de líquidos, grafada sobre um papiro de delícias. Assim celebra o transe pagão e dionisíaco, durante o qual ocorre a exacerbação dos sentidos, incluindo uma intensificação cromática que transparece em poemas como “Girassóis em chamas” ou “Tulipas vermelhas”, com seu veludo/ lisérgico/ entre margaridas virgens.
Trechos como esses compõem uma escrita descontínua; nela, atualizando o simultaneísmo do Apollinaire de Zone, imagens e frases vêm distribuídas espacialmente sobre a página. É a forma na qual cabem registros de experiências que têm a não-linearidade dos sonhos; ou então, daqueles sonhos que sobrevêm com a intensidade de algo efetivamente vivido, confundindo os dois planos, o “real” exterior e a efusão ou o paroxismo da subjetividade. Tais momentos podem ser abissais; daí a indagação: e quem vai pagar/ o tickett// dessa viagem/ sem volta? A expansão da percepção e seu caráter fragmentário, alucinatório, permitem analogias com o cinema, com seus cortes e mudanças de cenas. Daí o poeta declarar que parece cinema mas é só a vida, além de, entre outras referências e alusões, intitular um poema especialmente conciso e preciso de “Zoom”, e em outro. “Cine Kurosawa”, insistir que o olho filtra/ o olho vê.
Antes de fazer reparos ao modo como o entusiasmo, no sentido grego da palavra, parece suprimir boa parte do senso crítico de Ademir Assunção, convém deixar claro que ninguém, aqui, está defendendo procedimentos como o filtro da emoção pela razão, a subordinação do inconsciente à consciência, ou qualquer outro controle da inspiração e do fluxo criativo. Tanto é que vários autores, alguns deles invocados nas epígrafes deste livro, criam de modo visceral, em estados de automatismo psíquico, êxtase ou alucinação, porém mantendo em seus escritos a mesma tensão, sustentando um nível que pode ser associado à permanente exigência de rigor.
É nesse contexto que se tornam inevitáveis as observações sobre o que Zona Branca tem de desigual, oscilando tanto, ao deixar passar rebarbas, redundâncias e platitudes. Por exemplo, em um verso como este: musas sádicas me acariciam/ com unhas de gilete, é evidente que algo está sobrando, ou talvez faltando. Também é desnecessário nos informar de que o rio que passa na minha cidade/ está poluído — sabemos disso, faz tempo.
Tais reparos são feitos tomando como parâmetro a qualidade, não só dos melhores momentos, mas de boa parte do que Ademir Assunção escreve. Cabe, por isso, esperar que se mantenha mais próximo de um poema tão vertiginoso como “Olhos negros no espelho”, um mergulho na subjetividade e no vazio que parece ter sido escrito de um só fluxo. Ou do lirismo concentrado e condensado de “A farsa do amor”, entre outros trechos que justificam plenamente a publicação e a leitura de Zona Branca.
“Arrojado o poeta de Zona Branca na construção poética ao se colocar diante de situações estranhas, desafiadoras ao entendimento. Na poética de textura complexa e conteúdo de caldo grosso de símbolos...”
ZONA BRANCA: O ONÍRICO E O VISIONÁRIO NA POESIA DE ADEMIR ASSUNÇÃO
O onírico e o visionário na poesia de Ademir Assunção inscrevem-se na pele do leitor. Pele, a tela por onde muitas vidas passam, como num filme. Ou melhor, passam como em muitos filmes. Sucessão de imagens/módulos, como no poema Raio X, da sessão Jazz Kamaiurá: “sensibilidade à flor da pétala/escuto o estalido de estrelas distantes”. A pele marca a pele com o tempo vivido. A pele registra as marcas do viver, sonhar, criar. Sã aventura no mundo dos símbolos. Um livro escrito assim, caldo grosso de imagens terçadas no caldeirão da memória, vida, intelecção ativa, dá prazer em receber. A razão ou des-razão que convoca a poesia contemporânea nos faz olhar para trás e ver todo um passado de complexidade criativa. Muitas as linhas do fazer, posicionar-se no processo poético. Muitos os caminhos tortuosos de enganos e afasia. A geração, a nossa geração, dá pra se dizer, a geração pós-pós-moderna, ou como eu digo, pós-ultra-moderna, que conduz o cordão invisível do dizer em poesia, não pode arrefecer nunca, ante as forças aniquiladoras que rondam a criação livre do hoje. Sempre será possível o acréscimo mínimo no código e por isso a missão deve continuar. A missão para o poeta — não explicam os cânones, não explicam os dicionários, não explicam os manuais de gramática, não explicam as enciclopédias — São coisas do vento e da chuva, da noite e dos tempos. Não explicam os magos, filólogos, antropólogos, filósofos e catedráticos afins.
Um símbolo que perpassa muitos dos poemas do livro Zona Branca: a pele. A pele, sempre exposta. A pele de Ademir Assunção, o poeta que sente pela pele, transpira, expele poesia. Bem lembrado: a pele sensível da poesia contemporânea há de marcar/demarcar seu território com o bisturi dos signos da pós-ultra-modernidade. Não é à toa que o segundo poema do livro, na primeira sessão, Cosmorama, firma-se com o nome de Escrito na pele, inscrito em vertigem: “a pele/o melhor papel/para uma escrita de vertigens/poros/piras acesas/ao roçar das línguas“. Pele, a primeira fronteira do ser (corpo/matéria/extensão cartesiana) no contato com a realidade. A realidade do poeta que adere aos ritos antropomísticos do dizer. Os símbolos bailam no espaço irreservado da matéria poética. A pele absorve os pós, sofre as fricções, altera-se com os hematomas do existir arbitrário. A pele age, reage ao vivo e ao morto. Ao lembrado, ao deslembrado. À memória, ao pensar. A vida do poeta que se faz de viagens deliberadas aos mitos, sonhos e pesadelos. O poeta penetra espaços profanos em sua descida aos inferninhos, para haurir ali, da matéria suja, as emanações do eu, atirado ao mundo, para que o mundo o molde no repique do gesto louco, criador. Muitas as faces aparecidas do artífice/poeta, o que é, quer ser, conquista, apto à apreensão das “técnicas, sem dúvida/mas sem as dádivas e com eternas dívidas”.
Sete são as sessões do livro que mostram o mapa da mina: Cosmorama, Um deus está a caminho, Jazz Kamaiurá, Luas, éguas & golfinhos, O anjo louco da história, Descida aos inferninhos, O lótus nasce na lama.
A poesia como extrato de experiências cósmicas do poeta, é mesmo a Espiã das noites inumeráveis como muito bem sentencia Ademir Assunção no primeiro poema do livro. Espião das noites inumeráveis o poeta andeja, revoluciona suas noites vazias na grande urbe. Convoca às espiritações naturais dos signos para compor sua poética, de forte apelo onírico, não em detrimento da razão crítica do poema urbano, com seus símbolos feéricos e renováveis, mas como vazão, fruição do instinto natural, rumo ao que está além dos sentidos primários. Visionário, o poeta transpassa os limites da razão e ingressa nas veredas do sem destino. Zona Branca deixa de ser a prisão em que prima facie demonstra o conceitual do livro expresso no título, para tornar-se u-topos, não-lugar, lugar de ninguém, onde a linguagem de uso e práxis do poeta persegue imagens perdidas/imprevenidas abatendo-as a tiro. Tiro ou lótus, tulipas, atiradas na interioridade, vez que de mundo exterior raras são as cenas que os poemas apresentam, denotam.
Em Cine Kurosawa uma das mais belas imagens do livro. Imagem de um gato, que bem poderia ser a metáfora do poeta na noite azeviche; o poeta é um gato sim na noite fúrnica a destroçar os objetos, matéria de sua poesia, veja: tosses/na madrugada/um gato preto destroça a carcaça de um peixe na lata de lixo/uivos/sirenes/as luzes vermelhas da ambulância:/vagalumes em colapso“.
Há muitas realidades no dentro das linguagens empregadas pelo autor, as quais não são visíveis a olho nu. Realidades de mundo interior, projeções do eu, empatia nas cenas criadas como desafio ao poético em ser. Ademir rege o seu imaginário com a batuta da técnica, aliados os gestos aos canais abertos com o desconhecido. Canais por onde ocorre a subjetivação do dizer, e que propriamente caracterizam a qualidade do poético, avesso aos arroubos de objetividade. No caso de Ademir Assunção, era de se correr um risco muito grande, como de fato correu, em vista de sua profissão, jornalista, afeito a fatos, registros, dados objetivos, condicionantes próprias do ofício.
Restritiva a presente resenha crítica se atentasse apenas aos aspectos visionários e oníricos do livro Zona Branca. Outras verdades/facetas fazem o poemário. Poesia urbana, no enfoque. Poesia ao modo provençal, quando quer e quis o poeta. Poesia de boas vindas, como Tribo, onde o pai-poeta recebe a filha: “bem vinda, branquinha/a esse mundo nau/casulo-mãe/salpicado de estrelas mudas“. Há indícios de solos infirmes. Areias movediças, sob os pés do leitor. A dissipação de temas, áreas limítrofes, entre pólos distintos. Contrapontos em disfarce. Abrangências materiais. Eu e coletivo. Luzes e sombras. Pântanos e territórios pedregosos. Sessões de antropofagia implícita saltam aos olhos do leitor, em ritos sutis, de muitas referências transubstanciadas. É de se reconhecer que o autor está entre os mais exímios poetas contemporâneos, hábil na manipulação do código linguístico, aberto ao entendimento do todo, colocado sempre em posição de aceitar o transfinito, o inusitado, o que se esconde por trás dos conceitos e que a poesia é apta, capaz de trazer à tona.
As referências do passado tornam-se propulsoras para os poetas do presente, em questões que envolvem técnica, arrojo verbal, delírio criativo, abertura de canais em conexão direta com a futuridade. O ciberespaço ocupado pela poesia de Ademir é complexo como um estelário, híbrido de focos luzentes, sombras, raios, vazios espaciais, conjugações corpóreas. Sente-se que o poeta caminha tranquilo no labor das linguagens, como quem está prestes a nos apresentar módulos novos de comunicação poética, em que a significação das palavras expande-se, na nathureza e qualidade do poético.
Arrojado o poeta de Zona Branca na construção poética ao se colocar diante de situações estranhas, desafiadoras ao entendimento. Na poética de textura complexa e conteúdo de caldo grosso de símbolos, reverberante nas intenções cifradas de Ademir Assunção, não há desperdicícios vocais/imagéticos. As visões (imagens) encaixam-se com rara naturalidade, impondo forma e estrutura aos poemas, de modo a criar uma quase-homogeneidade técnica. Técnica e dívida eterna abraçadas, na mesma arte de dizer a vida.
O resultado dessa poética prenhe do simbólico, mezobarroco e interioridade, percebe-se, não nasceu hoje, mas vem de todo um trabalho anterior de busca e pesquisa do autor. Não li Cinemitologias, livro anterior de poesia do autor, apenas conheci-o em resenhas, livro que de acordo com o próprio título, estabelece uma poética em movimento cinematográfico, algo que se pode conferir também nesse Zona Branca, o movimento dos signos em saudável translação/revolução no universo poético.
Ademir é obsessivo naquela coisa de penetrar no profundo dos objetos escolhidos, pensados. De um mito indígena a uma construção arquetípica grega, tudo atrai o olhar penetrante do poeta que quer ver, conhecer, acontecer. Coisa de poeta, vidalômano, onde nada que é humano desinteressa. “Deus salve a deusa buceta/e inche com sangue o caralho dos meninos/deus salve o deus cu/e encha de sangue o caralho dos meninos“. Entre o naturalismo da carne exposta, na imagem do sexo feminino, e o falo masculino intumescido, a ousada Oração a Dionisus. O poeta é mais que homem, quando adentra a seara das convicções. O poeta ordena aos atos “para que a vida viva neste mundo“.
Como já registrei anteriormente, é de difícil apreensão uma poética que chega assim túmida, translúcida sob a pele, onde aparecem os vasos comunicantes, os signos dispersos, os símbolos entroplexos. Não se vê a brevidade excessiva do poema contemporâneo, mais em voga. Sim, aparece, clara como o dia, a contenção estrutural dos poemas. Recebe-se o poeta e seu ofício, o poeta hábil, dando conta de sua realidade própria (interior e exterior) ao projetá-las nos signos. O poeta de Signos em convulsão, disposto a interferir nesse mundo caótico: “ilusionista, domador de leões, amante do bom vinho“.
Quase impossível ao exegeta mais compenetrado, a total apreensão de uma poética contemporânea livre, ousada na matéria de fundo, neobarroca sim, na configuração sígnica, como é o caso desse Zona Branca. Não há leitura capaz de ler os folículos de memória no entre-linhas, versos, sentenças, quando a poesia atual nasce de uma acumulação de atos de tempos imemoriais, passando por todas as linhas do fazer (histórico), como já exteriorizado acima, influências, cargas de hereditariedade, costumes, crenças, condicionamentos. Além do que, a vida pós-ultra-moderna impõe seus próprios códigos, numa avalanche de modos distintos, complexos, introflexos, reflexos, que a vida passada de poucas décadas atrás jamais imaginou existiria algum dia. O acervo simbólico de hoje supera mesmo a imaginação dos maiores autores de ficção científica, dada a dinâmica renovadora dos conteúdos. Tal complexidade de linguagens e relações humanas, sociais, históricas, repercute diretamente no verbo belo, nas estéticas artísticas, e não seria a linguagem poética a ficar de fora desse arrebatamento, vamos dizer assim, de inovações relacionais de linguagens e de vivere, que podem fazer uma frase boba do dia virar história e da história uma transleitura errônea de negação de si própria.
Vamos ao que interessa, a poesia de Ademir Assunção, um poeta de Sampa, com olhar nos tempos. O tempo presente, o tempo ausente e o tempo futuro. O olhar que reinventa cavalas, parábolas, fadas (magrinhas) de maneira diferente, que é a sua maneira, de poeta convicto a caminho do sem caminho, quando não compõe livros às pressas, mas forja a escritura, no pensar reciclado, de dia após dia, até que a obra se construa, livro. Há uma alquímia no verbo composto e recomposto sempre com a mão cheia, das preocupaçõs técnicas, estruturais, de não passar o discursivo, mas só a tridiminesionalidade do verso autônomo, independente na construção linguística.
Passo pela obra aberta a minha frente como um anjolastro, turvo no hígido caldo das palavras. E nem é pra se colocar mesmo, os ossos, órgãos e visceras a limpo. Ainda mais quando se trata/ensaia sobre a poesia do outro, cesto trançado de falas, atos, pensamentos, crescido na vertigem do viver. Cada leitor que se habilite a verter para si o mais precioso néctar do dito transternecido. O dito que faz do homem poeta e da obra poética, obra. Me esconjuro, quando falho na decodificação. Me atormento, espiriteio e sucumbo quando as vistas ofuscam, diante da palavra bela em ser. Um poema. O poema do livro, acinte dos sentidos, Zensider, já diz tudo: “aprenda a costurar/as suas próprias roupas/quando as flores/forem poucas“. No último poema do livro o autor depõe a vida na página, com liberdade de criação, de forma a que as palavras em baixo e alto relevo permitem leituras diversas, no presente exemplo: “vida vida vida/às vezes feia/lida deslida/às vezes dias de vanguarda“. Ou no mesmo poema: “não se acabe/ainda essa/coisa linda/virada do avesso“. Ao mais ver, e ao mais sentir, recorram os futuros leitores da obra. Encerro aqui, meu contra-gesto, aos escritos na pele do poeta Ademir Assunção: “pele contra pele:/nosso melhor agasalho“.
“Deve-se frisar que Ademir Assunção faz da sua poesia um rico processo de experimentação quase afrodisíaco: "incêndio no corpo inteiro/ vinho na polpa dos seios/ lábios inchados/ gemidos de ninpha enrabada/ silêncio de tigre à espreita/ poesia! poesia!""
“Uma obra de arte é boa quando nasce da necessidade”
Rilke
Sai ACM, entra o filho que nunca gostou de política. Sai o petulante Arruda, ameaçando sujar o PT. Ou seja, o lixo se perpetua mesmo cassado moralmente. FHC ficou anos e anos coçando o saco e agora nos deixa sem energia, sem luz e sem poder ver. Esse foi o eterno sonho da ditadura: a escuridão em todos os sentidos. Ratos e urubus se oferecem para defender ou justificar as medidas punitivas do Poder: aumento dos impostos, da conta de luz, condomínio, IPTU… Um Poder de monstros velhos, gordos, feios, sujos e hipócritas. Ou seja, o Ser Político sempre foi destituído de dúvidas, sonhos e pensamentos. Como é só uma imagem televisiva, pode ser desligada a qualquer momento e não fará a menor falta. Quem hoje se lembra dos patéticos “Anões do Orçamento”? Digamos que o político atua na fossilização do saber, do desejo e da própria vida. É apenas uma espécie de pedra polida da incompetência. Reina na superficialidade de um mundo assexuado e árido. Oscilando sempre entre o capital e a mentira das campanhas e discursos. É o que chamamos de: um merda.
Fico na “Zona Branca” com os artistas, poetas, pensadores, palhaços, mágicos… Pelo menos sentimos almas mais sensíveis. Rostos marcados pela vida e não pela “masturbação sociológica” de um monstro demente e cínico. E na assimilação sincera dos que criam o grande sonho da liberdade: “Quente, como uma placenta/ o oceano envolve minha nudez,/ lambe, com sua língua de ondas/ a pele sangüínea do meu pau”. Ou seja, o que está em jogo é desfazer os discursos cheios de ódio que nada dizem. É a chance que temos de acreditar menos nos políticos e mais, bem mais, na vida. E a vida não é um discurso vazio, e sim um embrenhar-se no real desejo do outro. E é o que faz com maestria o poeta Ademir Assunção no seu furioso e admirável Zona Branca, recém-lançado pela editora Altana.
Bem mais que um simples livro de poesia, são encontros, momentos, encantamentos, trocas e uma profunda paixão pela palavra-pensada. A palavra como possibilidade, como consciência, como troca e como vida. Ademir vaga de um “Jogo de Xadrez” a um “Cine Kurosawa” se oferecendo para: “comam meu coração ainda quente/ antes da chuva”. O poeta não é uma máquina criando textos e imagens idiotas para agências de publicidade (que ele até critica num poema fortíssimo), mas uma autopercepção dos limites do próprio corpo, do seu desconforto no saber oficial e da sua vontade de ser feliz devassando a poesia das relações amorosas: “seja mais suja/ meu doce amor”. O que interessa não é a “aspereza da fala” que nada diz e sim o seu rico movimento emocional.
Quando Duchamp diz “não há solução porque não há problema”, nos possibilita sujar com figuras como Eduardo Jorge, FHC, Pedro Parente, Jader Barbalho, ACM, Maluf, Garotinho, Conde…, que uma vez inúteis como seres humanos, foram se alimentar da dor do outro, usando a política como plataforma para que a vida da população só seja alimentada pela ignorância, pela arrogância, pelo medo, pela culpa, pela traição… O ego desses urubus não tem limites. Começam pelo ódio de si mesmos (basta ver como são pálidos, verdes, babões, feios e mentirosos) para então criarem um mundo sem poesia, sem fé, sem humor ou amor. A percepção histórica do político acaba na TV.
O político renuncia por violação do painel do Congresso numa votação secreta (e quem garante que outras vezes não violaram e até mudaram a votação no painel?) e como um porco acuado e traidor sai ameaçando: “grande coisa ter visto uma porcaria de uma lista de votação. Dá vontade de mostrar a lista para todo mundo. Não vou fazer isso porque tenho vergonha na cara, mas tem muita gente que iria ficar envergonhada. Tanta hipocrisia, tanta mentira, principalmente no PT”. — Globo, 26/05/2001. O poeta responde dizendo: “líquido que sai do meu corpo/ e entra no corpo do mar”. Bem mais significativo do que as explicações de um traidor barato. Ora, se é verdade que somos responsáveis pelo que pensamos, a poesia profana de Ademir Assunção nos alivia do sofrimento de vivermos num país rico só que conduzido por históricos traidores, corruptos e ladrões. Esse seu vigoroso Zona Branca nos convida a romper com a rigidez dos que não conseguem gozar. Decretemos então o fim dos discursos que nada dizem! Fim de todas as ordens religiosas! Fim da propriedade privada e do lucro! Fim do capital! E “sob o efeito do trumpete de Miles Davis: silêncio assim/ há muito/ não havia”.
Quando o poeta diz: “me viro, me safo, me invento…” não busca unidade ou reciprocidade alguma. Ademir é o único dono do seu espaço emocional. E entre sensações e silêncios: “gota a gota/ comendo as folhas da vida/ uma a uma”, realiza um terno percurso de desqualificação do conformismo reinante. Suas conexões com a música, com o cinema e com a vida, materializam o seu desejo de gozar: “sim, Ana/ morreremos loucos/ mas/ esta noite/ dormiremos/ juntos”. Tão simples e tão difícil aos seres humanos. Ao mal-estar da civilização da TV, a necessidade do bem-estar para poder gozar. E aí não tem imagens idiotas, discursos, ego, burocracia, lixo, e sim, só o estar nu para o prazer. O poeta nos faz ver que o gozo é o avesso de todo e qualquer conceito oficial. Toda regra é brutalidade contra o ato amoroso sublime.
Zona Branca é uma espécie de febre que faz ferver o sangue da imaginação não reprimida. É escrito no infinito estado do saber com humildade, sofrimento e experiência. E no que vai rasgando o tecido da alma, é percebido como luz espelhando a doce embriaguez da existência amorosa. E com isso reforça o ser sensível que é sempre oposto a velharia política do país. Deve-se frisar que Ademir Assunção faz da sua poesia um rico processo de experimentação quase afrodisíaco: “incêndio no corpo inteiro/ vinho na polpa dos seios/ lábios inchados/ gemidos de ninpha enrabada/ silêncio de tigre à espreita/ poesia! poesia!” Ou seja, se existe uma salvação possível, naturalmente ela passa pelo saber, pela vida, pela felicidade, pela luz e não por “apagões” impostos por um governo incompetente e sem nenhuma credibilidade humana. Digamos que a melhor imagem que se pode fazer hoje da política do PSDB-PFL-PMDB… é a crise de energia chegar onde chegou. E no que ela vai gerar “apagões”, no escuro pouca coisa se pode pensar ou criar. O PSDB-Apagão nega a poesia feroz e feliz de Zona Branca.
Explicando melhor: a experiência íntima e complexa de um poeta-maior toca na raiz da vida. É real, mas como as Gymnopédies de Satie, toca também no sonho. Sonhos que valorizam o humano, a transparência, o desejo e a vida. É uma poesia que traduz pulsões vivas. Digamos que o poeta Ademir Assunção inflama um corpo a ser descoberto, tocado, amado: pelo “olho que filtra” e pelo “olho que vê”, no “Cine Kurosawa”. E, a partir daí, por que não enrabar ninphas desejadas? Por que não os “urros de um xamã em transe”? Por que não uma “poesia devassa”? Por que não uma “Oração a Dionisus”? Sou obrigado a reverenciar poetas como Marcelo Montenegro, Ana Terra, Sindoval Aguiar, Paulo Antonio, Eduardo Waack, Angela de Campos, Jaime Leitão, Moacy Cirne… que, juntos a Ademir Assunção, fazem da vida, do cinema, da política, do sonho, uma poesia de substância. Mais que isso, de possibilidades e experiências íntimas. Enquanto a sociedade representa uma triste volta à barbárie, os poetas inflamam paixões, devoram linguagens, violentam sonhos, numa busca do paraíso perdido da vida. Zona Branca é uma paisagem reveladora da arte de amar. E não é disso que anda precisando a humanidade?
“Zona Branca não é o roteiro de uma história em quadrinhos futurista, baseado na vida de Clara Crocodilo ou do gigante negão, Itamar Assumpção. É o presídio de segurança máxima para onde são enviados os rebeldes, dissidentes e desajustados mais perigosos.”
(Rascunho, Curitiba, outubro de 2001)
Gosto de reler o texto de Paulo Leminski em que ele diz, reiteradas vezes, que a idéia de “evolução e desenvolvimento”, extraída da área tecnológica, econômica e industrial, não faz nenhum sentido quando aplicada à arte. O texto (que pode ser encontrado no livro Uma carta uma brasa através, da editora Iluminuras) se chama Cenas de vanguarda explícita e, cheio de bom senso, argumenta que “a arte não avança, indo ‘para a frente’, como as pernas quando caminham. Avança para todos os lados, como a pele num dia de muito frio ou muito calor.” Se um avião voa mais alto, mais rápido e transporta mais passageiros do que um dirigível, o melhor é dar adeus ao dirigível. Mas no terreno da arte não há evolução desse tipo. Tanto isso é verdade que Leminski não se cansa de exemplificar: “Um quadro de Matisse não é portador de mais informação do que uma tela de Rembrandt. O teatro de Brecht não é superior ao de Sófocles. Um filme de Godard não abole a existência de ‘Cidadão Kane’. Uma canção de Caetano ou uma ópera de Arrigo Barnabé não são, necessariamente, melhores do que uma canção de Ismael Silva ou de Dolores Duran. Ou de Arnaut Daniel.”
Uma das qualidades dos novos poemas de Ademir Assunção, reunidos no recém-lançado Zona Branca, é justamente reforçar a tese de Leminski. Pois à maneira da pele num dia de muito frio ou de muito calor, os poemas de Ademir não avançam para a frente, como se palmilhassem uma trilha linear, mas para todos os lados, como uma explosão ou um campo de força capaz de contaminar presente, passado e futuro.
Zona Branca não é o roteiro de uma história em quadrinhos futurista, baseado na vida de Clara Crocodilo ou do gigante negão, Itamar Assumpção. É o presídio de segurança máxima para onde são enviados os rebeldes, dissidentes e desajustados mais perigosos. Não se trata de uma penitenciária convencional, com paredes, grades, muralhas e portões. Trata-se, antes, de uma prisão metafísica, situada em outra dimensão. Uma vez lá, o detento não perde o contato com o nosso mundo. Separado de nós por uma fina película, sua pena é justamente essa: poder nos ver e conviver conosco, sem, no entanto, conseguir participar de nossa rotina nem se comunicar com quem quer que seja. Por mais que muitas religiões defendam a existência de locais semelhantes, para os quais seria conduzido o espírito dos grandes pecadores, a Zona Branca ainda não existe de fato. É apenas mais uma das criações do poeta e jornalista Ademir Assunção, que, a partir de uma dica do compositor Frank Zappa — “The White Zone is for loading and unloading only. If you gotta load or unload, go to the White Zone. You’ll love it… It’s a way of life… (Joe’s Garage, ópera-rock de 1979) —, condensa numa única imagem duas ideologias místicas distintas: a dos românticos e simbolistas do século XIX e a da cultura de massas da segunda metade do século XX.
Mas, cuidado! Ademir fornece dados sobre Zona Branca — presídio — nas orelhas da capa de Zona Branca — livro — como quem passa informações incompletas e distorcidas, só para burlar o sistema de defesa do leitor. Não acredite no tom de novela de ficção científica, nem na promessa de sexo, aventura e violência contida nas suas palavras finais, pseudo-kitschs, à maneira de Arrigo Barnabé: “Por isso Zona Branca é muito mais sofisticada do que uma colônia penitenciária convencional. E incomporavelmente mais segura. As chances de fuga são mínimas. Mas sem que o sistema de segurança encontrasse uma explicação plausível, um jovem dissidente conseguiu escapar. E resolveu escrever um livro de poesia.” Zona Branca — livro — é muito mais do que as peripécias de um fugitivo do ciberespaço. É pura poesia.
Dividida em sete sessões (Cosmorama, Um deus está a caminho, Jazz kamaiurá, Luas, éguas & golfinhos, O anjo louco da história, Descida aos inferninhos e O lótus nasce na lama), Zona Branca é a condensação das qualidades apresentadas nos livros anteriores de Ademir Assunção, sem os excessos. Continuam presentes o cuidado formalista com a linguagem aplicado ao coloquialismo beat, a volatilidade da poesia chinesa misturada com o lixo da cultura de massas, de LSD Nô (Iluminuras, 1.994), o humor, a paródia, as referências aos quadrinhos, ao cinema, à tevê e ao rock’n’roll como forma de relativizar o que certa elite convencionou chamar de “alta cultura”, de A máquina peluda (Ateliê Editorial, 1997), a crítica social e a imersão nas sociedades primitivas, na lógica onírica e cinematográfica, de Cinemitologias (Ciência do Acidente, 1.998).
Uma vez que toda obra criativa não passa de um campo de força capaz de questionar e interferir criticamente nas obras vizinhas, o que novos poemas como Escrito na pele, Matéria fina e delicada: o amor e Tribo reiteram é justamente o que críticos como Décio Pignatari, hoje, e Mikhail Bakhtin, ontem, vêm propondo há muito tempo: não recusar a miscigenação entre o erudito e o popular, identificar o luxo que há no lixo e desmascarar o lixo que há no luxo. Porém, tal procedimento não deve jamais privilegiar a mediocridade e a diluição: o resultado tem de ser sempre o mais sofisticado possível. Não se trata de dialética, em que dois termos se fundem para gerar um terceiro. Trata-se de bater no liquidificador ingredientes muitas vezes excludentes e coar o caldo, separando da matéria grosseira tudo o que for puro como a areia das ampulhetas. Quase sempre o que fica é uma pasta mestiça, em que o antigo e o novo estão de tal maneira amalgamados que não é mais possível separar um sem danificar o outro. Uma pasta híbrida — como campos de força que se imbricaram. Aliás, encarar um livro de poemas como um campo de força é muito útil quando o que se quer é justamente mensurar a eficácia deste objeto tão volátil: o livro de poemas. Por esse viés, o objetivo da crítica seria determinar, mais do que tudo, a dimensão, a potência e o alcance dos milhares de campos de força que são postos nas livrarias ano após ano. Composta de cientistas, a crítica literária teria como objetivo a Física Poética. Zona Branca, por consequência, nos induziria a pensar o livro de poemas mais como energia do que como matéria sólida.
Outro fato a ser anotado: neste novo livro quase não há o esmerado trabalho tipográfico aprendido com os concretistas e pós-concretistas, muito presente em LSD Nô. Em vez do jogo de tipos e corpos de letra, Ademir optou por explorar a fundo o intervalo entre os versos, procedimento que permite, caso sejam justapostas imagens distintas, tirar desse choque de contrários centelhas mais valiosas do que as produzidas por formas mais convencionais de versificação. Um bom exemplo disso está em A queda em preto e branco:
o sol guache derretido no carvão do asfalto
onde o moleque retina em pânico
recebe o pipoco da lei
: anjo caído
na porta do reino de deus
O primeiro verso sinaliza uma direção que é subitamente alterada pelo segundo. A força poética da figura do sol e a do guache derretido no carvão do asfalto nasce do fato de estarem, ambas, impressas lado a lado, sem vocábulos que as una. Essa é a lógica da montagem cinematográfica e da composição dos ideogramas chineses — procedimento caríssimo a Ademir e a toda a escola estética da qual ele se alimenta. Mas, apesar deste procedimento fazer parte da rotina criativa de Ademir, como atestam seus outros livros, em Zona Branca ele está a serviço de uma atmosfera mais trágica, menos jocosa. O carpe diem dos epicuristas e o “Ah, vem, vivamos mais que a Vida” de Omar Khayyam tiveram de dividir o assento com certa visão melancólica do mundo. Penso nos poemas de Zona Branca como competentes traduções poéticas da seguinte afirmação de Shopenhauer: “Todo querer se origina da necessidade, portanto da carência, do sofrimento. A satisfação lhe põe termo; mas para cada desejo satisfeito, dez permanecem irrealizados. Além disso, o desejo é duradouro, as exigências se prolongam ao infinito; a satisfação é curta e de medida escassa. O contentamento finito, inclusive, é somente aparente: o desejo satisfeito, imediatamente dá lugar a um outro; aquele já é ilusão conhecida, este ainda não.” Os novos poemas de Ademir Assunção são fotogramas do instante fugaz, de pura alegria e tristeza, em que um desejo acaba de ser satisfeito e já começa a ceder o lugar a outro, tão intenso e urgente quando aquele. Zona Branca, presídio, é o interstício entre estes dois planos existenciais.
“A fabulação está presente em pequenas narrativas, que mesclam a agilidade do videoclipe e da história em quadrinhos à densidade e força expressiva de sua própria mitologia: ‘dizem / na aldeia: / uma mulher pariu / uma cabeça de bezerro’”.
(Jornal da Tarde, São Paulo, 21 de junho de 2001)
Zona Branca é um presídio para onde são enviados os poetas, arruaceiros e dissidentes de uma época sombria. Apesar da segurança rigorosa, no entanto, um jovem autor conseguiu escapar, e publicou um livro de poemas. Com essa metáfora da situação excêntrica, marginal do poeta no universo globalizado, Ademir Assunção abre o seu novo poemário, Zona Branca, cujo título é inspirado no disco Joe’s Garage, de Frank Zappa. Usando como máscara dramática a epígrafe de William Burroughs (“Linguagem é um vírus”), Ademir afirma a sua visão da poesia como contraparte irônica e crítica do discurso narcotizado, canônico, dos grandes veículos de comunicação.
Os poemas iniciais de Zona Branca são inspirados em sonhos e filmes, com referências simbólicas de um imaginário povoado por obsessões eróticas e divindades indígenas e africanas. O autor utiliza, de maneira pessoal e criativa, recursos do cinema para a construção dos versos, como as técnicas de planos e closes. Assim, por exemplo, em O Sacrifício, uma das peças mais belas do volume: “doce aroma de tâmaras / apodrecidas / : borboletas de vidro / asas-navalha / no ar pesado / da câmara mortuária”. Aqui, a elipse funciona como um corte de câmera, e a aglutinação de substantivos, como montagem. A visualidade é reforçada, também, pela espacialização das palavras na página.
Apesar do forte apelo visual, por vezes até com certo brutalismo nas imagens (“unicórnio / de chifre amputado”, “musas sádicas me acariciam / com unhas de gilete”, “strippers que após a roupa / arrancam a própria pele”), a poesia de Ademir, desde o seu livro de estréia, LSD Nô, caracteriza-se por uma configuração sonora que mistura elementos da canção popular e da fala coloquial urbana, sem cair nas armadilhas da dicção publicitária. É uma ópera-rock de ruas e avenidas, de neons e fios de alta tensão, de flashes imprevistos, precisos e cortantes como a lâmina da navalha.
A fabulação está presente em pequenas narrativas, que mesclam a agilidade do videoclipe e da história em quadrinhos à densidade e força expressiva de sua própria mitologia: “dizem / na aldeia: / uma mulher pariu / uma cabeça de bezerro”. Outras vezes, Ademir demostra ser capaz de criar cromos verbais de intensa delicadeza e suavidade, com clara ressonância da lírica oriental, como na peça Assombro em Branco e Preto: “a lua / sombra pregada na parede do muro / onde o pássaro / pálido susto / olha / o salto do gato / : pétala / destroçada / no jardim”, que nos faz pensar em mestres da poesia nipônica do século XVII, como Bashô.
Zona Branca é um cadinho de cinco anos de trabalho do poeta, e há surpresas nos esperando a cada poema, da sutileza da “única lágrima / guardada / na caixinha de jóias” ao tom épico, mítico e sensual de peças como Cavala. Por certo, há também, nesta coletânea, versos de circunstância, como a Anti-Ode aos Publicitários, mas que não alteram o impacto do livro como um todo. Zona Branca é um livro bem realizado, de alta voltagem, que coloca Ademir Assunção entre os poetas mais interessantes da nova geração.
“... é notável a literariedade do romance, ao buscar vínculos com textos de outros escritores que transformaram em jogo divertido a literatura, tal como Oswald de Andrade com a peça teatral A morta, Paulo Leminski com o romance Agora é que são elas...”
ATORES, ESCRITORES E POLÍTICOS SÃO IRONIZADOS NO MUNDO VIRTUAL DO NOVO ROMANCE DE ADEMIR ASSUNÇÃO
Clarice Lispector, numa entrevista a Eric Nepomuceno em 1976, disse que nunca se preocupava com a estrutura da obra, pois “a única estrutura que admito é a estrutura óssea”. Aquele era o tempo do estruturalismo, que não a cativava, preferindo dissecar o humano à obra. Passado esse tempo, o estruturalismo não faz o menor sentido hoje neste mundo que está sendo engolido pela virtualidade e por fantasmagorias em que a própria estrutura óssea do humano se esfarinha de forma trágica.
É neste tempo, consonante a ele, que se situa o novo livro de Ademir Assunção, Adorável criatura Frankenstein, que, alheio à estrutura, transforma em fragmentação a escrita, o que não seria, por si, nenhuma novidade, se não fosse o fato de que o autor faz do seu livro uma espécie de objeto integrado, ou contínuo, do mundo virtual. Com ele, fantasia justamente essa degradação do humano, com personagens cuja marca é a perda do próprio nome, sendo apenas reconhecidos por pronomes como “Eu”, “Você”, “Ela”, “Nós” etc, que se confundem de forma divertida com a própria narração e os pronomes necessários ao narrador para se referir aos personagens, remetendo a um tempo em que a metalinguagem na obra literária era marca característica.
Com o que se poderia chamar de vida real perdendo as naturais delimitações, abolida a hierarquia, personagens literários passam a conviver com pessoas reais, elas mesmas personagens engolidas pela máquina de entretenimento que as virtualiza e expõem às vísceras, tornando-as falsamente íntimas de todo mundo – daí a sensação de idiotia causada nos fãs, que, quando podem, abordam seus ídolos como se fossem pessoas de convívio íntimo, enquanto que eles, por sua vez, devem olhá-los como vermes vorazes. Ou seja, tal como ocorreu num badalado leilão de gado realizado dias atrás, em que se misturou uma enorme quantidade de integrantes do nosso “star system” caipira, de atores de tevê, políticos, empresários a touros colocados na condição de “stars”, com a habitual platéia de fãs atoleimados que, ao pedirem autógrafos a Regina Duarte, foram solenemente ignorados em sua tentativa, motivando nota em coluna social badalada de um grande jornal.
Em Adorável Criatura Frankenstein o personagem principal, “Eu”, vivendo em espasmos que vão da realidade ao delírio colorido pela virtualidade, convive nos mesmos espaços em aeroportos e festas em São Paulo e no Rio, com os vivíssimos Antonio Carlos Magalhães, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Malu Mader, Jô Soares, assim como com mortos ilustres como Marilyn Monroe e, por que não, até o Pateta e o Pernalonga, remarcando um sarcasmo já habitual nos escritos de Ademir Assunção, cujo livro A Máquina Peluda, reunião de prosas publicada pela Ateliê Editorial em 1997, é o melhor exemplo disso. O inconformismo com a mediocridade desse “star system”, assim como com a própria sociedade transparece de forma resplandescente no tom descritivo crítico, também comum nos escritos do autor e exaltado no livro anterior, de poemas, Zona Branca, publicado pela editora Altana em 2001, que execrou os publicitários e esse mundo de virtualidade cínica por eles criado e alimentado.
A irreverência estabelecida, encontra-se Jô Soares lado a lado com Pernalonga ou Antonio Carlos Magalhães com o Pateta e a Clarabela, podendo-se percorrer no livro festas como uma dada por Washington Olivetto, muito parecida com a há pouco citada feira de gado, que é invadida por uma horda de marcianos que trucidam os convidados. No texto da orelha, escrito por Nelson de Oliveira, este escritor define o cenário do romance como um “circo grotesco”, numa descrição perfeita que somos tentados a ler como sendo a própria realidade que vivemos, habituados que estamos com as sensaborias dessas pessoas reais que habitam os jornais diariamente com suas idiossincrasias.
Além dessas características, é notável a literariedade do romance, ao buscar vínculos com textos de outros escritores que transformaram em jogo divertido a literatura, tal como Oswald de Andrade com a peça teatral A morta, Paulo Leminski com o romance Agora é que são elas, ou escritores correntes como o Fernando Monteiro de A múmia do rosto dourado do Rio de Janeiro e Manoel Carlos Karam, com Encrenca. O mesmo se dá, já em tom de galhofa, com o fato de Ademir Assunção conceber um programa de entrevistas de escritores, Letra Viva, que faz a visível fusão da idéia do programa Roda Viva com outro menos conhecido, dedicado às letras, sendo esse programa do romance mais um momento antológico de crítica à complacência habitual existente na televisão.
Pela característica da obra que vem publicando, Ademir Assunção, que é um dos editores da revista de literatura Coyote, integrou a antologia Geração 90 – Os Transgressores, organizada por Nelson de Oliveira para a Editora Boitempo.
Adorável criatura Frankenstein é o quarto título da coleção “LêProsa”, editada pela Ateliê, coordenada pelo também irrreverente escritor Marcelino Freire, coleção essa que está se constituindo numa referência importante pelos livros publicados, resgatando inédito como o a.s.a. – associação dos solitários anônimos, de Rosário Fusco, os contos reunidos de Diana Caçadora & Tango Fantasma, da até então relegada escritora Márcia Denser ou a prosa irônica de Marcelino Freire em BaléRalé.
“São raras as oportunidades em que a literatura vê surgir um romance que seja, a um só tempo, radicalmente novo e desafiador, capaz de colocar em xeque a própria concepção que fazemos de obra literária.”
(ou Essa Adorável Criatura Frankenstein)
No ensaio O Narrador Pós-Moderno, em Nas Malhas da Letra, Silviano Santiago afirma que nenhuma escrita é inocente. A literatura pós-moderna é o exemplo decisivo disso que podemos chamar de o fim da inocência. Consciente do esgotamento dos grandes modelos de representação, das narrativas-mestras – como as do racionalismo científico, do marxismo ou do positivismo de fins do século XIX -, do fim do sentido como verdade inquestionável e determinante, a literatura pós-moderna lança mão das formas discursivas da publicidade e da propaganda, que caracterizam a sociedade midiática contemporânea, para criar uma narrativa própria, singular e característica, em que essa mesma sociedade seja o centro vazio de uma crítica irônica e avassaladora, que deixa transparecer, pela denúncia contundente, os mecanismos de controle e de poder que regem a vida dos indivíduos dentro dessa realidade nova, firmada sobre as bases do espetáculo, do consumo e do entretenimento vulgar, os valores desaparecem dando lugar à proliferação incontrolável de imagens sem referência ou significado real.
Ademir Assunção, poeta, jornalista e escritor nascido em Araraquara e radicado em São Paulo, acaba de publicar seu mais recente livro, o romance Adorável Criatura Frankenstein, em que a força contestatória da pós-modernidade irrompe violentamente numa narrativa inconformista e debochada, em que as formas discursivas da sociedade midiática e da cultura pop são reveladas sob as formas corrosivas da paródia, do nonsense e do cinismo. São raras as oportunidades em que a literatura vê surgir um romance que seja, a um só tempo, radicalmente novo e desafiador, capaz de colocar em xeque a própria concepção que fazemos de obra literária. Antes de tudo, o livro de Ademir Assunção nos obriga a pensar até que ponto as antigas convenções da literatura realista – que acredita na representação total do mundo, da realidade exterior, do pensamento e da verdade -, ou os ideais modernistas de ruptura com a tradição estética, por meio da força contestatória das vanguardas, ainda são válidas. Em Adorável Criatura Frankenstein, tanto as convenções realistas quanto o ideal de ruptura e contestação modernistas desaparecem sob o peso de uma narrativa que quebra, drasticamente, todos os limites da representação. E que põe a literatura contra a literatura, num conflito direto, numa tensão permanente.
Como num delírio surrealista, Ademir Assunção transforma a ordem discursiva do romance numa espécie de espelho partido, estilhaçado, cujos fragmentos jamais podem ser perfeitamente restituídos, perdendo para sempre o reflexo do real, criando um jogo de imagens em constante dissipação. As personagens são Eu, Você, Ele, Ela, Eles, Nós e Vós, pronomes pessoais, sujeitos do processo enunciativo, entidades sem nome, ou seja, sem o traço distintivo e caracterizador da identidade. Num mundo sufocado pela propaganda, pelos ídolos vazios da hora, frutos dessa ideologia de consumo e de mercado, pela idéia claustrofóbica de sucesso a qualquer preço, as personagens de Ademir Assunção representam justamente o apagamento da individualidade, a impotência e o desespero de subjetividades condenadas a um total e exasperador anonimato.
A personagem principal, Eu, um escritor em ascensão, descobre, lentamente, sua própria e assustadora inexistência. Envolvido por uma trama fragmentária, construída a partir de uma série de enganos, falseamentos e incertezas, ele se envolve com a jornalista Ela, com o menor infrator Eles, com a maquiadora Você e sua irmã Vós, um travesti, e com o antropólogo Nós. Cada passagem, cada entrecho, cada capítulo é um motivo para uma crítica violenta, contundente e inconformista à sociedade contemporânea, do espetáculo gratuito, do consumo desnecessário, da ideologia do excesso, do desgaste, das aparências, simulacros e simulações. Assim, é perfeitamente possível que o personagem principal se chame Eu, seja escritor e esteja viajando para São Paulo como entrevistado do programa Letra Viva, cujo apresentador é, não se assustem, o Pernalonga. É perfeitamente possível que Eu vá a uma festa promovida pelo antropólogo Nós e lá encontre o senador Antonio Carlos Magalhães, a apresentadora Xuxa, a dançarina de axé music Carla Perez, Pateta, Clarabela, extraterrestres com armas desintegradoras, a atriz Malu Mader, celebridades, chiques e famosos, enfim, toda uma fauna de seres estranhos, alheios, caricaturais, pondo à prova os limites entre a imaginação, a fantasia e a realidade aparente.
Os gêneros se confundem: capítulos curtos, que lembram contos, flashes, pequenas iluminações; poesia; reportagem jornalística; entrevista; ensaio. Ademir Assunção faz a forma e a narrativa romanesca delirar, explodindo, de dentro, as fronteiras entre o sonho, que vai se transformando lentamente num pesadelo de grandes proporções, e a realidade incerta, duvidosa, indefinível. Há mendigos que dormem nas ruas, um grupo de jovens que ateia fogo em um índio pataxó, um menor assassino e um narrador manipulando as almas mais desavisadas. Não é por acaso que, no prólogo, encontramos a justificativa e a chave para penetrarmos nesse universo paralelo, nesse mundo complexo e alheio, que bem pode ser esse em que acordamos e no qual nos deslocamos todos os dias de nossas vidas, a meio caminho da ficção e do delírio: “ADVERTÊNCIA AO PÚBLICO E AOS ADVOGADOS: Esta é, rigorosamente, uma obra de ficção. Todos os personagens, inclusive os aparentemente reais, são totalmente irreais, não representando, portanto, realidade alguma, a não ser que a realidade já esteja superando a ficção”.
Com Adorável Criatura Frankenstein, Ademir Assunção ensaia uma crítica ácida e mordaz à anulação do indivíduo por essa sociedade massificada, em que tudo é imagem esvaziada de sentido, vácuo, sistema atormentado de erros, na qual a vida se transforma numa espécie de eterno jogo hedonista, em que a busca pela realização e pelo prazer se dão através do excesso absoluto, descontrolado e frustrante, já que a realização e o prazer se esgotam em si mesmos, sem deixar rastros e, paradoxalmente, sem nunca alcançar a satisfação desejada. A partir de suas personagens sem identidade, de sua trama fragmentária, do nonsense e do delírio que fazem com que a fantasia e a realidade tenham suas fronteiras completamente diluídas, a sociedade transparece em tudo o que ela tem de mais falso, de mais hipócrita, de mais cínico, aparente e simulado. A ironia, a mordacidade, o humor cínico, histriônico, esquizofrênico do romance transformam-se em mecanismos de contestação muito mais fortes do que a idéia de uma literatura que se persegue a si mesma, simplesmente, que instaura e deixa entrever a dúvida de que é apenas representação e nada mais. O jogo de Ademir vai mais longe, é mais arriscado e mais perigoso, daí a força e o encanto do livro: a própria realidade, assim como a concebemos, pode não passar, no início e ao cabo, de uma outra forma de representação, simplesmente. E se quisermos saber a verdade precisamos pagar o preço, que pode ser o fim de umas tantas e antigas inocências.
“Adorável Criatura Frankenstein esculacha os ritos de legitimação de ídolos, marqueteiros, intelectuais e modelos-atrizes apresentadoras do circo midiático brasileteiro. Uma passagem memorável é quando o protagonista, Eu...”
(O Estado de São Paulo, Caderno 2, São Paulo, 3 de janeiro de 2004)
Tem a literatura que importuna e tem a literatura que só alisa. Tem o escritor que anda sozinho e o escritor que se sustenta em compadrio, com livros carimbados pela crítica oficial e apoiados em prêmios corporativos. Tem a ficção que descarna a hipocrisia do tecido social e a ficção que satisfaz espíritos pequeno-burgueses (“Você viu como ele escreve bem?”; ora, que diabos quer dizer ‘escrever bem’ em literatura?; é coisa tipo concurso de miss?).
Ademir Assunção caminha sozinho e importuna. Daí porque quase passou batido no fim do ano o lançamento do seu novo livro, Adorável Criatura Frankenstein (Ateliê Editorial, 226 págs., R$ 27). Ficção irrequieta, sarcástica, erguida sobre signos conhecidos da contemporaneidade — lojas Arapuã, Xuxa, Pernalonga, hotel Della Volpe, Washington Olivetto, bistecas do Sujinho e motel Astúrias —, o livro tem como protagonistas personagens-pronomes: Eu, Nós, Tu, Ela, Vós, Você. E, claro, a terceira e insondável pessoa do singular, Ele (que virá a ser, ao mesmo tempo, o dono da bola e do campinho).
Nascido em Araraquara (SP), Ademir Assunção é poeta, jornalista e escritor. É um dos editores da revista Coyote. Publicou — sempre com invejável senso de independência — os livros LSD Nô (1994), A Máquina Peluda (1997), Cinemitologias (1998) e Zona Branca (2001).
Em sua prosa, Ademir escreve impactado por cenas do mundo em que vive, descreve as ruas que seus pés conhecem, e não um Tibete misterioso e “revelador” ou uma musa distante, impalpável. Não passa incólume por um mendigo que lê Machado de Assis e Mário de Andrade nem deixa que sua obra torne-se presa infame dos ditames de moda, apesar de já ter sido catalogado como “Geração 90”.
Adorável Criatura Frankenstein esculacha os ritos de legitimação de ídolos, marqueteiros, intelectuais e modelos-atrizes apresentadoras do circo midiático brasileteiro. Uma passagem memorável é quando o protagonista, Eu, é entrevistado no programa de televisão Letra Viva, cercado por editores de entretenimento de diversos periódicos. Que se elogiam mutuamente e ao entrevistado por qualquer pigarro ou tossida.
É possível, com algum devaneio analítico, ver no livro de Assunção um parentesco com a proposta estética de Panamérica, de José Agrippino de Paula (1967). A diferença é que Agrippino evitava chegar ao mundo interior de seus personagens, não queria nuances psicológicas. Panamérica, como escreveu Caetano Veloso, era um monolito de visões. Criatura Frankenstein dá tintas a seu anti-herói, é um livro subcutâneo, intravenoso, e não somente de ambições periféricas ou estéticas. Em vez de um monolito, talvez seja uma rocha implodida.
Eu é um personagem enternecido, indignado, de um desnorteamento que beira a insanidade. E o autor o estima, lhe dá autoridade. O crítico Nelson de Oliveira discorda dessa avaliação, na orelha do livro: crê que os pronomes de Assunção são “entidades puramente intelectuais, semióticas, sem consistência física”, criaturas de um “vasto hipertexto coletivo”. Leituras diferentes, mas não divergentes.
Os pronomes-gente de Assunção são de carne & osso & batimentos cardíacos. O livro tem momentos de alta dramaticidade e ritmo visual alucinante. Um exemplo: a “cena” em que o autor descreve como o lúmpen Eles (todos os que estão ali fora, do outro lado do Insulfilm do carro são “Eles”) rouba uma Playboy, mata o dono da banca de jornais com um estilete e se enfia num banheiro público para folhear a revista, com as mãos ensangüentadas.
Além do mais, o livro tem uma ironia que beira o humor negro, cheio de escracho. É risível a história do sujeito globalizado no seu Hyundai que, no meio de um assalto, resolve atender o outro celular no bolso e leva um balaço no coco. A Criatura Frankenstein é barra-pesada, suja, pornográfica, assustadoramente realista. Como o monstro de Mary Shelley ou os replicantes de Blade Runner, ela quer se defrontar com o Criador para saber quem autorizou tanto desatino. Talvez o encontre, quem sabe.
“Podemos suspeitar que o autor tenha desejado fazer uma escritura transfigurada, dissolvendo as fronteiras entre os gêneros e questionando as noções de enredo e personagem, realidade e imaginário.”
Tempo é a sucessão infinita de eventos; espaço, a distância entre dois pontos; movimento, o deslocar-se de um campo a outro do universo. Tais conceitos, bem como a distinção entre sujeito e objeto, formam a base daquilo que chamamos de realidade. Porém, na experiência mística, na loucura e na viagem alucinógena, outras visões se sobrepõem à percepção rotineira das coisas. Quando dormimos, esquecemos quem somos e o que é o mundo; no sono profundo, não há percepção de altura, largura, volume ou profundidade, e é provável que na morte tais noções desapareçam por completo. Sendo assim, não é absurdo supor a realidade como construção subjetiva, que depende da ação dos sentidos e da mente, sem ter uma substância ou individualidade própria e permanente.
Para filósofos como Nagarjuna, apenas o Vazio (Sunyata) é real; o mundo, composto pela manifestação temporária dos fenômenos, seria tão irreal quanto um sonho. Os mestres védicos têm um julgamento similar, considerando o universo como um jogo ou brincadeira, um drama encenado por um Deus solitário e com peculiar senso de humor. Tal filosofia, sem dúvida, coloca em xeque a própria noção de identidade, formulada a partir do nome, forma e ocupação do sujeito: posso acreditar que me chamo Daniel, que estou sentado em frente ao computador, escrevendo esta breve nota; de repente, tudo muda, e a cena passageira se desfaz, como círculos concêntricos na água. Terei sido alguém? Ou tudo não passou de um terrível mal-entendido?
Esta reflexão foi estimulada pela leitura de Adorável Criatura Frankenstein, de Ademir Assunção, que acaba de ser publicado pela editora Ateliê. Considerar este livro como um romance é uma temeridade, uma vez que o gênero, desde o Antigo Testamento até o Ulisses de Joyce pressupõe ações perpetuadas dentro das dimensões conhecidas de espaço e tempo. Em outras palavras, o romance pressupõe a realidade, ou certo conceito de “realidade”. Porém, o que acontece quando a noção de “real” é transtornada, numa subversão que desloca a sucessão linear e previsível dos eventos?
Temos aqui uma prosa poética fragmentária, descontínua, construída com pedaços de narrativas que se cruzam, mesclam e interagem, transformando-se como elementos de um caleidoscópio semântico. As várias camadas de leitura desse texto alucinado combinam referências da história política recente, personagens do cinema e das histórias em quadrinhos, tendo como pano de fundo a ópera-rock Clara Crocodilo, do músico paranaense Arrigo Barnabé.
Todo esse universo de citações (que abrange ainda relatos mitológicos, cenas da guerra civil em Ruanda, de uma rebelião na Febem e até discussões literárias) funciona como um pluriespaço, ou tabuleiro polidimensional, onde se deslocam personagens nomeados como pronomes: Eu, Você, Nós, Eles. A distinção entre “eu” e “outro”, porém, é perturbada numa série de encontros e desencontros, onde não apenas as ações, mas até os personagens, se transformam continuamente, inclusive em sua natureza sexual.
Como no cinema underground, certas cenas são reprisadas, mas não da mesma forma: surgem variantes, imprevistos que modificam os fatos, transformando “o óbvio no nunca visto”, para invocar Leminski. O naturalismo, ainda vigente em boa parte da atual ficção brasileira, vira pó: não sobra nada do ilustre cavalheiro Senhor Século XIX. Como nesta passagem, que recorda o delírio das telas de Max Ernst ou Salvador Dali: “Havia uma estranha escultura em um dos cantos do jardim. Um pouco escondida, é verdade. Uma mulher de pedra branca, com gavetas saindo de suas pernas, uma faca enfiada na testa, cabelos longos, repicados nas pontas, um certo ar selvagem, os braços terminando em galhos. Ao seu lado, um tigre.” A plasticidade deste fragmento, com seu lirismo de beleza estranha, contrasta com os trechos mais “chulos”, de explícito erotismo, e as passagens de humor pesado. O absurdo intencional, corrosivo, impera sobretudo nos episódios onde a mídia aparece como fundadora do “real” (substituindo o próprio Criador): as coisas ganham existência pelo simples fato de serem escritas, noticiadas. Logo, tudo é construção simbólica, irreal, ou maha maya.
Podemos suspeitar que o autor tenha desejado fazer uma escritura transfigurada, dissolvendo as fronteiras entre os gêneros e questionando as noções de enredo e personagem, realidade e imaginário. Ou ainda, que ele tenha planejado fazer um livro paródico e paranóico, metaleiro e metalingüístico, assimilando recursos da ópera, do videoclipe e do rock and roll, rompendo os limites entre o erudito e o popular. Ou quem sabe ele escreveu essa história toda sem pensar em nada, por pura gozação. Quando se trata de Ademir Assunção, autor de livros como Zona Branca, A Máquina Peluda, Cinemitologias e LSD Nô, tudo é possível, menos o lugar-comum. O final da narrativa, que não contarei, tem ecos metafísicos: retoma o Paraíso Perdido e William Blake, mas com estilo de faroeste mexicano. Enfim, temos aqui um delicioso anti-romance construído com pedaços de símbolos, culturas, referências mitológicas e culturais, como um autêntico Frankenstein pós-moderno, que entra em nossa sala de visitas para mostrar como é precária a noção de normalidade.
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Claudio Daniel, poeta e jornalista, é autor de A Sombra do Leopardo (poesia, Azougue, 2001), entre outros títulos.
“A linguagem de A Máquina Peluda mixa o low e o pop às mais radicais experiência literárias do século XX. É um texto sincrético e canibal, algo assim como uma ‘máquina antropofágica’, operada por um narrador movediço (ele/ela)...”
(Revista Cult, São Paulo, dezembro de 1997)
Depois de LSD Nô, seu primeiro livro de poemas, o poeta, letrista e escritor Ademir Assunção nos brinda com um volume de prosa rico em invenção, humor e dramaticidade. Estamos falando de A Máquina Peluda, cujo título exótico nos remete a uma verdadeira viagem ao centro de questões intrigantes. Trata-se simultaneamente de um sarro delicioso e de uma ácida crítica. Pode-se dizer que o autor exerce o salutar papel de imoralista, pois sua Máquina ataca sem misericórdia costumes e vícios da sociedade para criar uma nova mitologia compatível com esse estado de coisas. Neste aspecto, Ademir Assunção se aproxima da prosa e do pensamento do escritor norte-americano William Burroughs.
A linguagem de A Máquina Peluda mixa o low e o pop às mais radicais experiência literárias do século XX. É um texto sincrético e canibal, algo assim como uma “máquina antropofágica”, operada por um narrador movediço (ele/ela), que interage com informações velozes e desconexas numa grande metrópole do planeta, como São Paulo.
Sem preconceitos, Assunção incorpora e manipula diferentes procedimentos da vanguarda. Assume a literatura experimental de Catatau, de Paulo Leminski; Panamérica, de José Agrippino de Paula; Galáxias, de Haroldo de Campos, e a prosa de Samuel Beckett, unindo-as a outras manifestações narrativas não-ortodoxas, tais como os desenhos animados e seriados dos anos 70, a poesia da MPB e do rock. Tudo isso dá ao livro um tom ágil sem que as referências literárias comprometam a compreensão, o que é importante. Na realidade, A Máquina Peluda é um livro com toques preciosos sem ser preciosista.
Já em sua epígrafe, é Borges quem nos adverte sobre a relatividade entre sono e vigília. Neste sentido, o material e o imaterial, o vídeo e a vida, coexistem na tessitura dos enredos das narrativas paródicas, satíricas, plagiárias, “publicitárias” e cinematográficas de Assunção. Seres reais e irreais habitam as páginas de seu livro: Pero Vaz de Caminha, Gregório de Matos, Kafka, Gerald Thomas, Roberto Marinho, Antoninus — Rei da Bahia, Daniela Mercury, Pernalonga, Papa Paulus Coelhus, Zé Colméia, Unabomber, Von Mac Macedo, o replicante Nastima Sazaki, o delegado de polícia cultural, Dr. Nelson de Sá, entre muitos outros.
Mera gozação? Nada disso. Em A Máquina Peluda o riso é empregado como veículo catártico de demolição de personas sociais e de valores midiáticos. Ícones, estrelas e figurinhas carimbadas são obrigadas a descer de seus pedestais de cristal líquido para ficar em pé de igualdade com o leitor. Pode-se dizer que A Máquina Peluda dá uma banana para o “homem cordial” e tira a casca de algumas feridas da vida brasileira.
O livro se divide em três partes: “Cartas do Escriba ao Rei”, onde um chapado “escriba-Caminha” redescobre o país comentando a brasilidade sob a ótica da sexualidade e do carnavalesco, sem dispensar ataques ao colonialismo e ao catolicismo implantados ao sul do Equador.
Em “Roteiros em Órbita”, a segunda parte do livro, encontramos narrativas belíssimas como “Curta-metragem”, “3 x 4 do jovem quando artista” e “Monólogo de M. Blood”, nas quais Assunção aborda a condição de escritor com sensibilidade e retrabalha alguns procedimentos sofisticados como o “monólogo interior”, resgatando-o para os nossos dias.
Já na terceira seção, “Código 999”, vemos a sátira virulenta contra o efeito das tecnologias, dos “conceitos” do marketing e dos simulacros sobre nossas consciências. Estão lá textos perturbadores como “O homem-carro”, “Anestesia geral: uma fábula em dois atos”, “Natureza morta”, “Zanzando com Zazie no metrô”, “Lero a zero” e “15 minutos”. Narrativas bastante criativas e bem humoradas; mas por trás desse riso espontâneo paira uma sombra de cautela: hoje a ficção não tem um limite determinado, ela se embaralha com o campo minado do cotidiano das pessoas (lembramos os lamentáveis casos Daniela Peres ou Unabomber). Afinal, qual é o limite entre o sonho e a realidade? O que são todas essas informações que nos bombardeiam nesses dias em que nossa moeda é o “Real”, em que toda rebeldia e irreverência são descartadas em favor de um “plano de estabilização”, que inclui até mesmo a estabilização de nossas idéias? Nada mais instável do que as imagens transmitidas por um big monopólio televisivo: cenas do Distrito Federal com índios e mendigos queimados por filhos de Juízes de Direito ou gangs funks se exterminando em subúrbios miseráveis.
Em suma, A Máquina Peluda mostra que Ademir Assunção está interessado em debater nossos podres valores de fim de milênio, bem como as constantes ameaças de catástrofes virtuais, vírus incuráveis e guerras-game — coisas que não estão tão distantes assim da realidade quanto pensamos. A Máquina Peluda diz coisas importantes sobre nossos dias e ousa questionar ações de pessoas vivas e próximas. Algo que, com raras exceções, não temos lido na prosa brasileira recente. Nos textos de Ademir Assunção, a lágrima e o riso se fundem para nos fazer ver melhor aquilo que está bem diante de nossos olhos.
“... em Cinemitologias, o resgate do simbólico se dá por uma adesão incondicional ao mito no que este tem de mais singular e misterioso, de mais primitivo e ritualístico, de mais fantástico e ostensivo. Adesão antropofágica, oswaldianamente rebelde, de matiz surrealista...”
O POEMA EM PROSA E O RESGATE SIMBÓLICO: A TRADIÇÃO REINVENTADA[1]
O Poema em Prosa
No século XIX, o movimento romântico, onde quer que tenha ocorrido, foi o grande responsável por uma verdadeira revolução no pensamento estético e filosófico do homem. Na literatura, por exemplo, ele fez com que o romance se firmasse como o gênero por excelência da classe burguesa que consolidava um processo de ascensão iniciado com a formação das grandes cidades, ainda durante a Idade Média. Dessa forma, expressões como literatura burguesa e, sobretudo, romance burguês, ganham um sentido bastante peculiar: formas que servem, ao mesmo tempo, de entretenimento para uma classe financeiramente abastada, que se entediava com a própria fortuna, e um meio de se obter a cultura que faltava à burguesia e que era o único patrimônio que restara à nobreza arruinada do Antigo Regime.
Esteticamente, no entanto, foi na poesia que o movimento romântico logrou alcançar sua mais consistente revolução. Rejeitando os modelos e as tradições impostas pelos velhos manuais estéticos do classicismo, os poetas românticos libertaram, o quanto puderam, o verso. Assim, o signo poético romântico é o da ruptura, da quebra, da fratura, sempre em busca de uma liberdade ampla e irrestrita, uma liberdade tão radical que leva a poesia aos limites e fronteiras de um novo gênero: o poema em prosa. A França é o lugar em que este novo gênero mais se desenvolveu, embora sua origem, me pareça, está mesmo nos fragmentos literários publicados pelos primeiros românticos alemães – principalmente Novalis e Schlegel – ainda em fins do século XVIII e na primeira década do século XIX. Mais tarde apenas é que viriam Rimbaud, com suas Iluminações e Uma Temporada no Inferno; Baudelaire, com seu Spleen de Paris e J. K. Huysmans, com a coletânea La Drageoir aux épices. Tanto os fragmentos literários quanto os poemas em prosa refletem, em suas formas híbridas, decompostas, estranhas e diáfanas, a consciência estilhaçada do homem moderno.
Tzvetan Todorov, em Os Gêneros do Discurso (1980), dedica todo um entrecho do livro a abordar as questões essenciais da narrativa e o modo como esta, em determinados momentos ou casos, promove uma espécie de apagamento das distinções evidentes e características entre prosa e poesia, demonstrando como os limites entre os gêneros podem ser fluidos e traiçoeiros. Evitando determinações absolutas de toda ordem, Todorov propõe a tese de que o verso não é a categoria definidora da poesia e que não se trata de pensar o problema a partir da oposição básica entre prosa e poesia, mas de compreender que é “a prosa que se opõe ao verso” (p. 112) e que se este está excluído do jogo discursivo, deve-se perguntar “a que se opõe o poema” (p. 112), buscando definir a essência mesma do poético.
É a partir dessa proposição que Todorov afirma ser o poema em prosa o “lugar ideal para tentar encontrar uma resposta sobre a natureza da ‘poesia sem o verso’” (p. 112). Sendo assim, a problemática proposta não é tecnicamente a da distinção entre gêneros, mas sim como a essência mesma do poético subsiste alheia ao verso, como o poema em prosa, não se estruturando a partir da singularidade rítmica do verso, não deixa de ser uma manifestação naturalmente poética. Nesse sentido, o poema seria, então, apenas uma das formas – uma das estruturas – através das quais se expressa a natureza da poesia, do fenômeno poético, e não uma unidade absoluta de compreensão do próprio caráter da poesia. Uma das formas, não a única. É o que se pode perceber por meio dos estudos de Todorov; principalmente quando ele busca situar não as fronteiras e os limites entre os gêneros, mas a forma como estes se inter-relacionam, numa tentativa de superar suas próprias limitações estilísticas e estéticas.
Não é por acaso que a reflexão de Todorov sobre os gêneros discursivos envereda-se pelos mais diferentes caminhos: vai da noção mesma de literatura, passa pela discussão dos gêneros e se detém nas relações abertas entre narrativa e poética, prosa e poesia. A idéia é demonstrar que os gêneros não podem ser tomados como formas puras ou estanques de representação discursiva, que há narrativas que concebem seu substrato essencial a partir de uma estreita relação com a poesia – como é o caso do romance poético ou da narrativa poética -, assim como há manifestações poéticas que prescindem do verso e tomam de assalto a prosa, subvertendo e anarquizando as regras do jogo estético que nos impõem a crença de que a poesia, como manifestação discursiva, depende sempre do verso, do ritmo, do poema, em suma, para afirmar-se como forma e estrutura definida. E é justamente essa subversão radical entre os gêneros que engendra o poema em prosa e todas as suas interditas sutilezas.
Se o poema como forma de expressão, como uma apresentação, instaura uma ruptura em relação à linguagem de uma forma geral – e a linguagem literária particularmente –, o poema em prosa leva ao limite o ideal estético-criativo de ruptura: de um lado, representa a sublevação da própria linguagem criadora e, de outro, rejeita as formas pré-estabelecidas ou automatizadas das quais a poesia lança mão, negando a noção mesma de estrutura, pondo a perder o horizonte, as fronteiras demarcadas entre os gêneros literários. Talvez por isso seja tão difícil conceituar e definir, partindo de uma visada teórico-analítica, o que é, em essência, o poema em prosa.
Cada poeta que, em um dado momento de sua produção, rejeita o verso como medida e manifestação exemplar da poesia, nega os limites entre os gêneros e busca no poema em prosa uma nova maneira de se aventurar pelos caminhos e descaminhos da criação, acaba por conceber uma forma expressiva radicalmente nova, que não pode ser tomada, compreendida ou teorizada em relação à própria tradição literária a partir da qual se prefixou. O que equivale a dizer: cada poeta, ao valer-se do poema em prosa, encontra na tradição – legada sobretudo por Baudelaire e Rimbaud – não um modelo definido de composição – como aconteceu e acontece com o poema propriamente dito –, mas uma singularidade plena, absoluta, que não pode servir como guia, referência ou fundamento para um diálogo consciente. A condição determinante do poema em prosa é justamente essa impossibilidade de afigurar-se como um modelo exemplar, como uma forma mais ou menos padronizada de composição. Ele leva às últimas conseqüências a ruptura com os padrões normativos do gênero.
Assim, a característica essencial do poema em prosa diz respeito a essa singularidade plena, não-modelar, que se desvincula da tradição e não oferece parâmetros ou paradigmas estruturais mais ou menos definidos, diferentemente do poema e algumas de suas formas de expressão consagradas, como o soneto, a balada, a sextina, a terza rima e etc., todas circunscritas no tempo, modelares, sobremarcadas pela força ordenadora da tradição. Além disso, o poema em prosa não é, simplesmente, uma experimentação formal ou estilística, uma aventura criativa gratuita, sem maiores conseqüências, a qual o poeta, inadvertida ou conscientemente, resolve se lançar.
O poema em prosa é o resultado daquela mesma inquietação estética, sensível, que move o poeta em direção aos deslimites abissais da poesia, assim como propõe Claude Esteban em Crítica da Razão Poética: “A inquietação não é pois, no sentido tradicional do termo, uma paixão. Ela não se contenta em sofrer o choque dos contrários; trabalha – na incerteza do resultado ou da resultante das forças opostas, o que não significa de modo algum no ceticismo ou na desilusão dos atos que realiza. E direi de outra forma, usando conceitos já envelhecidos dos velhos fenomenólogos, que a inquietação é uma intencionalidade inquieta, e não uma consciência feliz ou infeliz. Voltada para o que não cessa de fazer-lhe falta, ela busca fora do alcance, fora da consecução”(1991, p. 37-38).
Mas parece insuficiente afirmar a inquietação como postulado fundamental que conduz o poeta à rejeição do verso e à conciliação com a prosa. A inquietação que motiva a poesia, manifesta em uma cadência, um ritmo, uma melodia que prescinde da música para que o jogo dos sentidos se aguce, é de outra ordem quando nos vemos entregues às sinuosidades e às armadilhas do poema em prosa. A inquietação estética que conduz o poeta aos deslimites do verso e às fronteiras da prosa é, na verdade, uma exacerbação dos sentidos e da consciência poética, o re-conhecimento de que há algo de arbitrário no universo nomenclativo, conceitual, que engendra as limitações teóricas e analíticas entre os gêneros. A inquietação que gera o poema em prosa é da ordem de uma ruptura absoluta e radical, que questiona não apenas as definições e distinções mais ou menos aceitas entre prosa e poesia, mas principalmente a arbitrariedade crítica e teórica que procura separá-las irremediavelmente.
O poema em prosa, então, é um ataque, um desafio e uma resistência contra os próprios postulados dos gêneros. Uma forma de dilaceração plena do eu, das coisas, do mundo e da criação em si mesma. Dilaceração que acena sempre para uma individualidade mais funda, exasperada por se firmar, por se re-conhecer, por se desvelar. Dilaceração sempre renovada, que entrevê, na prosa, a possibilidade de um registro narrativo de caráter fabular, ao mesmo tempo em que percebe, na poesia, a única forma verdadeiramente livre e subversiva de desautomatizar a linguagem cotidiana, rompendo drasticamente com a crença contemporânea na referencialidade e anunciando a extremada urgência de resgatar o poder simbólico da palavra.
O Resgate do Simbólico em Cinemitologias, de Ademir Assunção, e Dicionário Mínimo, de Fernando Fábio Fiorese Furtado.
Arlindo Machado, no ensaio Poesia e Tecnologia[3], afirma que no mundo contemporâneo, com o desenvolvimento constante e sempre mais acentuado de novos processos e procedimentos tecnológicos, “sucessivas gerações de poetas e analistas se tornam cada vez mais convencidas de que o conceito de escritura está se redefinindo profundamente em nosso século” (1998, 12). O crítico trata de uma forma de escritura – a poética – que tem suas estruturas drasticamente marcadas por esses novos processos tecnológicos: a infopoesia, a holografia, a videopoesia, e etc., seriam novas formas de escritura poética em que a palavra – sua matéria fundamental – acabaria por se transformar radicalmente a partir das possibilidades oferecidas por essas novas formas de mídia: o uso deliberado das cores; o movimento; a projeção; a ocupação espacial; a dissolução, seriam maneiras de re-significar a palavra, abrindo-lhe novas possibilidades de sentido:
Assistimos hoje a uma transformação tão importante no modo de produção textual quanto aquele que, em outros tempos, substituiu instrumentos como o pincel, o caniço e a pena de ganso por caracteres móveis uniformes, ou suportes como a pedra, o papiro, o pergaminho e o velino por folhas de papel seqüenciais. Saussure costumava dizer que o fato de uma palavra ser escrita com esta ou aquela cor, com pena ou cinzel, em alto ou baixo relevo não tinha a menor importância, quando o que estava em jogo era o seu processo significativo. Mas no discurso poético, os recursos expressivos de que lança mão o poeta são fundamentais para definir os significados construídos pelo poema.
Quando a palavra é colocada numa tela de televisão ou restituída tridimensionalmente através da luz coerente do laser (na holografia), quando ela ganha a possibilidade de movimentar-se no espaço, de evoluir no tempo, de transformar-se em outra coisa e de beneficiar-se do dinamismo cromático, a sintaxe que a rege torna-se necessariamente outra, as relações de sentido transformam-se e o próprio ato de leitura redefine-se. (Machado, 1998, 12)
Não há dúvidas de que os recursos expressivos tomados de empréstimo ao domínio das novas formas de mídia transformam os sentidos da palavra poética e redefinem o próprio ato de leitura, mas o que nos interessa, aqui, é perceber que o resgate do valor expressivo da palavra – sua dimensão simbólica, que abre o jogo dos sentidos – não vive e não pode viver na dependência restrita da técnica, não se dá apenas por meio de novos suportes ou diferentes instrumentos de escritura, mas também no domínio da tradição aberta e sedimentada pelo próprio livro. Assim, Arlindo Machado parece condicionar a mudança de rumos da escritura contemporânea aos processos oferecidos pelas novas tecnologias, o que significa um reducionismo gritante em relação à capacidade do poeta em redimensionar o valor e o poder simbólico da palavra sem contar com determinados aparatos técnicos.
Nesse sentido, o poema em prosa, gênero híbrido e estranho, passa a ser uma forma de manifestação poética na qual a palavra leva ao limite suas relações de sentido e o jogo declarado entre forma e conteúdo, abolindo até mesmo as demarcações mais claras e conscientes entre os gêneros literários e, por conseqüência, redefinindo profundamente o próprio gesto da leitura. É o que podemos entrever a partir de duas obras distintas, de dois poetas contemporâneos que, cada um a seu modo, resolvem resgatar o poder simbólico da palavra fazendo do poema em prosa o lugar ideal da invenção, do estranhamento e da re-significação da palavra poética: Cinemitologias, de Ademir Assunção, e Dicionário Mínimo, de Fernando Fábio Fiorese Furtado. Ambos os poetas buscam, em suas obras, reaver a força simbólica e expressiva da palavra, diluída pela ilusão contemporânea da comunicação absoluta, da informação total, da referencialidade plena. E tanto Cinemitologias quanto Dicionário Mínimo constroem-se como uma forma de romper esse cerco ilusório, que deposita nos processos tecnológicos e midiáticos de criação toda a sua crença artística e estética. Os dois livros representam, assim, uma resistência absoluta ao “fascínio do fácil”, que os novos suportes e as novas formas de escritura engendradas pela contemporaneidade podem oferecer.
Cinemitologias foi lançado originalmente em 1998, com uma tiragem limitada de apenas 100 exemplares, através de um processo de impressão conhecido como docutec, que barateava os custos de edição do livro. Em 2002, numa edição revista, Ademir Assunção publica, pela Atrito Art Editorial, uma tiragem de 500 exemplares, refazendo o projeto iconográfico da obra – símbolos indígenas, grafismos e desenhos primitivos, padrões de cerâmica antigos, e etc. –, que mantém um diálogo direto com os próprios poemas. Nessa obra, o resgate do simbólico passa necessariamente, pelo redimensionamento do valor do mito, das culturas primitivas, do paganismo e da liberdade plena dos instintos, tudo ordenado em uma escritura de matiz surrealista, que não descarta as referências a uma certa paisagem urbana contemporânea, pop, tão estranha e diáfana quanto a própria vazão onírica e mítica que a escritura de Cinemitologias enseja.
Organizado sob a forma de um diário que, entrecortado, abrange o período de tempo de um ano – de 02.01 a 02.12 –, sendo que é justamente a dimensão temporal que a poética mítico-simbólica de Ademir Assunção abole em sua essência. Isso porque a característica central do mito – proposto no próprio título – é prescindir da condição temporal do homem e abrir um canal de comunicação coma condição humana em si mesma, no que ela tem de mais primitivo, no sentido antropofágico do termo, e de mais original, no sentido de busca pela gênese primeira e rediviva da essência humana. Diário do mito e do inconsciente, segundo o próprio autor na introdução à segunda edição:
A estruturação do livro em datas remete, evidentemente, à idéia de um diário. Trata-se, porém, de um diário do sono, do sonho, do tempo dormido. O que busquei nesta pequena aventura literária foi um fluxo vertiginoso das imagens, como os processos oníricos, reciclados e transformados em linguagem escrita. Como um cinema do inconsciente. (Assunção, 2002, 9)
Realmente, Cinemitologias permite entrever sua estrutura imagética latente, que pulsa e se oferece ao olhar como uma provocação, um desafio e um deslumbre. Cada poema em prosa é concebido como o fragmento de um filme cujas cenas se confundem e distorcem, criando uma paisagem de fundo surrealista. Mas Ademir Assunção continua:
Glauber Rocha comparava a estrutura de montagem da linguagem cinematográfica com a estrutura dos sonhos. Os surrealistas chegaram a produzir vários filmes influenciados diretamente por sonhos – como Un Chien Andalou, de Salvador Dalí e Luis Buñuel. Cinemitologias nada tem a ver, no entanto, com automatismos de escrita. Em meu trabalho, procurei sempre desautomatizar a linguagem. (2002, 10)
Nesse mundo contemporâneo, em que o discurso sociológico, político, filosófico, artístico e estético acena, sempre, para a ruína da representação, para a falência, a impossibilidade e as limitações do próprio discurso – inclusive como instância primeira do próprio ideal de representação –, cabe ao poeta, num esforço ao mesmo tempo lúdico, mágico e intelectual, resgatar a capacidade, o poder e o valor simbólico da linguagem. Ao poeta, fica a ingrata missão de representar o mundo, as coisas, o homem. Indo mais longe: cabe ao poeta recriá-los, reinventá-los a cada instante. É o poeta quem redimensiona e abre novamente a linguagem aos deslimites dos sentidos. Se a verdade ruiu, junto com a crise da representação, os grandes sistemas ideológicos e com o próprio homem, resta ao poeta seu desígnio primeiro e seu infortúnio eterno: restaurar a verdade para além de seus próprios escombros.
E o poeta sabe que restaurar a verdade, valendo-se do poder simbólico da linguagem, é cifrar os sentidos, omitir, negar, a priori, toda significação que se dê ou ofereça passivamente, que permaneça no limiar da reflexão. Assim, o mito é a única forma do poeta adentrar o espaço da reflexão; a única maneira de desvirtuar o automatismo da linguagem, de reaver as verdades mais primitivas, essenciais, nas quais inevitavelmente nos reconheçamos. O mito instaura nossa representação ideal porque se constrói a partir do fluxo irrefreável da vida mesma. O mito extrai sua fratura mais decisiva da comunicação secreta, íntima e interdita, com as dimensões mais profundas da própria existência:
02.01
Recuerdos de um ácido na Ilha do Desterro: que a vida seja aquela contínua risada que se derretia enquanto o ácido atuava nas células cerebrais. No fim, todas as coisas continuavam em seus lugares: o mar no mar, a cachoeira na cachoeira e a água estava viva, como sempre esteve. (Assunção, 2002, 13)
A poesia, enquanto “recuerdos de um ácido”, lugar de abandono e desterro, cifrando os sentidos, negando os sentidos, possibilita, paradoxalmente, a experiência e a percepção das coisas eternamente em seus lugares, simples, apreensíveis, distribuídas e dadas, que o universo do discurso contemporâneo – pondo em circulação informações, conceitos, imagens absolutamente esvaziadas de qualquer sentido real – não nos permite entrever. A poesia re-significa o mundo quando os discursos organizam-se como simulacros de uma realidade contingente, simulada, que busca no domínio da técnica a aparência de verdade que denota. E a água viva, “como sempre esteve”, resgata a força mítica da velha parábola heraclitiana do tempo em constante transformação, agindo de forma implacável sobre os homens, o mundo e as coisas, sobre o próprio poeta, ao mesmo tempo em que nos sugere nosso destino eterno, alheio a toda dimensão histórica. Trata-se da aproximação entre o mito e a poesia como forma de nos alertar que, talvez, seja a hora de ensaiar uma nova transcendência, nossa íntima superação.
A poesia é o instante intemporal em que o poder do mito volta a nos comunicar a essencialidade das coisas e dos seres, ambos vistos sem ênfase ou cuidados. É o caso de afirmar, com Alfredo Bosi, que “a poesia recompõe cada vez mais arduamente o universo mágico que os novos tempos renegam” [4]. A poesia que dialoga com o mito nada mais é do que a tentativa de trazer à tona, fazendo da linguagem seu artifício supremo, os mistérios insondáveis e esquecidos da história, da vida, do espírito humano. Ao resgatar o mito, a poesia reencontra um dos mais antigos canais de comunicação entre o indivíduo e si mesmo – sua essência original –, o mundo, assim como o concebe, e o sagrado, o eterno, o atemporal – a mais urgente de suas buscas.
Assim, a poesia é, também, uma luta do indivíduo contra o esquecimento, contra o apagamento de seus traços individuais na História, apagamento que o mundo contemporâneo leva a efeito quanto instaura a crise da representação, do discurso e da idéia de verdade, passando a controlar, de forma cada vez mais maciça, o imaginário coletivo, negando o mistério, promovendo a proliferação descontrolada de imagens, afirmando a verdade a partir de uma lógica supostamente racional, que já não é a da divisão racional do trabalho – e o seu ideal de funcionalidade objetiva –, mas sim a da ilusão do conhecimento que a ideologia da superinformação faz circular. E não é preciso ir longe para compreender esse estado de coisas da contemporaneidade: obras como Tela Total, A Transparência do Mal e Da Sedução, do filósofo e sociólogo francês Jean Baudrillard, por mais polêmicos ou discutíveis que sejam seus pontos de vista, acenam e levam às últimas conseqüências as interrogações sobre a que caminhos essa realidade construída na contemporaneidade poderá nos conduzir, já que se fia na ideologia da superinformação e o modo como esta se esvazia de sentidos, criando aparências, simulacros e simulações de uma verdade que já não pode ser definida ou precisada em termos absolutos.
A poesia que se volta para o mito, que afirma os interditos da linguagem e se abre à percepção de todos os sentidos, instaura uma verdade de si para si, tão rebelde e singular que arruína, ainda que de dentro da própria poesia, esse espaço de aparências e ilusões que marcam o real, invertendo a lógica determinada do pensamento: a verdade é a que se cria de acordo com as múltiplas experiências individuais do artista, e não aquela que se dá a partir da circulação irrefreável de imagens e informações. Desse modo, a verdade da poesia é alternativa e resistência às ilusões do real:
23.06
Vento que vem de longe, abra-me as portas da percepção e as mantenha abertas. Como um grego antigo diante do mar, como um primata segurando o fogo primordial nas mãos. O primeiro olhar sobre os vales cheios de perigo. O deslumbramento de uma mente que descobre o véu da Grande Mãe. (Assunção, 2002, 49)
A poesia como um jogo aberto de sentidos acena para a percepção igualmente aberta e irrestrita do mundo, da realidade em breve abolida. Mas trata-se de uma percepção que busca a essência primeira das coisas, o olhar natural do “grego diante do mar”, do “primata” que vislumbra, pela primeira vez, o poder incompreensível do “fogo primordial”, da “mente” que desvela o segredo original do mundo – “o véu da Grande Mãe” –, que volta a se encobrir na linguagem ritualística do poeta. É ele quem deve resgatar a comunicação – por quê não dizer a comunhão? – secreta do homem com a essência perdida ou desgastada das coisas e de si mesmo. O poeta, como um xamã da linguagem, afirma o valor de suas múltiplas experiências, faz circular seu conhecimento cifrado, simbólico, do mundo, transformando este mesmo conhecimento numa experiência universal, coletiva. Resgatar o mito é abrir os sentidos de uma linguagem que procura instaurar o mundo, numa luta renhida com os próprios limites da representação, com o próprio re-conhecimento de que a linguagem é um jogo ao qual o poeta não pode se submeter sem antes desvirtuar ou subverter as regras desse mesmo jogo:
19.01
Riscos de adagas na pele da face. Palavras são lâminas. (Assunção, 2002, 15)
Como num ritual primitivo, tribal, a poesia grafa-se no próprio corpo, na pele, como um rito de passagem, como uma forma de marcar-se, para sempre, e de fazer com que vida e arte se confundam indelevelmente. E, nesse ritual, o poeta reconhece os perigos das palavras, seu caráter incisivo, seu modo de transformar-se em instrumento e motivo dessa celebração ritualística que é a manifestação poética. Assim, em Cinemitologias, o resgate do simbólico se dá por uma adesão incondicional ao mito no que este tem de mais singular e misterioso, de mais primitivo e ritualístico, de mais fantástico e ostensivo. Adesão antropofágica, oswaldianamente rebelde, de matiz surrealista – ainda que acene sempre para a superação de certas facilidades estilísticas impostas pela diluição das vanguardas –, que reordena a própria estrutura interna do mito pela notação subjetiva, que particulariza primeiro para, só então, explodir numa espécie de teogonia poética profundamente marcada e perturbada pelo vazio atordoado de imagens e sentidos que caracterizam nosso tempo, estabelecendo uma relação inviolável, crítica e ácida, entre a dimensão atemporal do mito e o registro subjetivo que flerta com a contemporaneidade e suas referências mass-mídia. Como em:
13.03
Não vai entender. Vai abrir a garrafa térmica e dizer que o café está horrível. Tem palavras frias na ponta da língua. Olhos negros, lábios rasgados pelo bisturi de Deus. Vai fumar um cigarro atrás do outro e me deixar sozinho vendo TV até a madrugada. Não vai me mandar embora. Vai me deixar sozinho na sala, com um bicho preto roendo minhas fibras. (Assunção, 2002, 19)
Ou em:
07.04
Tenho sonhado fotografias. Quando acordo, há centenas de imagens espalhadas pelo quarto. O cérebro funciona como uma Polaroid. Tento juntar tudo pra ver se vira um videoclipe mudo. (Assunção, 2002, 23)
Contra o vácuo atormentado da contemporaneidade, Cinemitologias encontra no poder do mito sua forma de resistência, a possibilidade de reaver, por uma nova simbologia, os sentidos esvaziados ou perdidos dessa linguagem impessoal, robótica, industrializada e informatizada que se firma sobre a ideologia da operacionalidade, do funcional, do objetivo e do pragmático:
16.04
Lembranças, alucinações, pensamentos, projeções. O Estúdio Realidade (William Burroughs) é manipulação incessante de sons e imagens. A televisão é a droga mais letárgica do século. Comparado ao poder de impacto da tevê só a bomba de Hiroshima. (Assunção, 2002, 23)
A televisão e a bomba: talvez os dois grandes símbolos do mundo contemporâneo – os mais imediatizados, recorrentes, incontornáveis –, produtos da nova lógica industrial e do domínio técnico, que exerce seu poder a partir da manipulação ostensiva – seja pela força coercitiva da bomba, seja pelo controle deliberado de uma linguagem vazia de sentidos, que não permite, pela rápida circulação das imagens, a menor ou mais inconsistente reflexão, como no caso da TV. Mesmo que o poeta tente organizar sua poesia, as imagens recorrentes que o tomam e invadem, como um “videoclipe mudo”, ele sabe que o canal de comunicação que essa mesma poesia abre é de outra ordem:
As coisas possuem um sentido. Mesmo no caso da mais simples, casual e distraída percepção, verifica-se uma certa intencionalidade, segundo demonstram as análises fenomenológicas. Assim, o sentido não é só o fundamento da linguagem como também de toda apreensão da realidade. Parece que nossa experiência da pluralidade e da ambigüidade do real se redime no sentido. À semelhança da percepção comum, a imagem poética reproduz a pluralidade e, ao mesmo tempo, outorga-lhe unidade. […]
Assim, a imagem reproduz o momento de percepção e força o leitor a suscitar dentro de si o objeto percebido. (Paz, 1982, 131-132) [5]
A imagem poética retoma uma experiência elementar, primordial, perdida em algum lugar de nós. Daí seu caráter mítico-simbólico, seu sentido sempre em devir, sua incapacidade de se reduzir aos limites da simples representação. A imagem poética é, na verdade, uma apresentação de tudo quanto habita em nós e permanece desconhecido de nós:
15.01
O Guardião se cansa de guardar a entrada da Gruta Sagrada e resolve dar uma banda pelo Túnel do Tempo. Moléculas se desintegram, líquidos se misturam, tigres saltam de um lado a outro do Estreito – nuvens vermelhas encobrem o Jardim da Lua Mundana. Livre de vigilância, a Gruta Sagrada se abre aos bárbaros, como uma prostituta em quarto-minguante. Enfim conhece os espasmos mais secretos. (Assunção, 2002, 13)
Aqui, a instância simbólica acena para a experiência do corpo em sua dimensão sexual. E o sexo é uma das experiências essenciais que motivam o homem, como um instinto básico, elementar, do qual não se pode fugir e que nos determina o destino: O Guardião, a Gruta Sagrada, o Estreito, o Jardim da Lua Mundana – símbolos cujo sentido só pode ser entendido como sentido em devir. A referência ao sexo é elementar e a leitura se dá até que com certa facilidade. As múltiplas experiências que estes símbolos concentram é que não se permitem entrever facilmente. Por isso o caráter de sentido em devir, que ainda esta para se perfazer e realizar, mas que nunca se perfaz ou se realiza completamente. A Gruta Sagrada também significa uma inversão poética do mito da caverna platônico. Nesse sentido, podemos compreender seu poder simbólico como o espaço de revelação e vivência de uma verdade íntima, velada, que se guarda e se protege, e que só pode ser descoberta quando tomada de assalto, quando os “bárbaros” aventuram-se a romper as barreiras cifradas do símbolo e penetrar os sentidos velados da criação poética. Assim, o poema faz circular um conjunto de sentidos que, desarticulados, nos revelam a própria condição metalingüística que envolve a criação:
25.04
Zonzo de banzo de um amor que esqueci na calçada. Onde estarei, meu amor, quando a chuva gritar meu nome e a tempestade rasgar as páginas do poema que ainda não escrevi? (Assunção, 2002, 25)
Os poemas ainda não escritos, destruídos pela chuva e pela tempestade – mais uma vez a água transparece como símbolo do tempo e da transitividade das coisas – só confirmam a instância em devir do sentido, que o poder simbólico da linguagem concentra. E é a circulação plural e incontrolável dos sentidos no interior do símbolo que nos leva a poemas vertiginosos como este:
13.05
É como se um pássaro pousasse na pálpebra de um Dragão Adormecido. É como se o Dragão Adormecido sonhasse um planeta habitado por flores de oxigênio. É como se as flores de oxigênio roçassem a têmpora de um samurai enlouquecido. É como se o samurai enlouquecido só existisse no sonho de um poeta que sonha com um dragão sonhando. É como se nada disso existisse. É como se fosse pintura de Matisse. É como se fosse cena de um filme de Kurosawa: Sonhos. (Assunção, 2002, 29)
Jogo incessante de imagens e circulação irrestrita de sentidos: o Dragão Adormecido, as flores de oxigênio, um samurai enlouquecido, o poeta que sonha. Todo o poema articula-se como uma realidade que prescinde da lógica e só conhece a verdade primordial da criação em si mesma. O que equivale a dizer: o resgate do simbólico, em Cinemitologias, afirma-se pela urgência extremada do poeta não só em restituir a força do mito ao universo da arte, mas também em criar, ao mesmo tempo, seus próprios mitos: a Ilha do Desterro, a Grande Mãe, a Gruta Sagrada, o Jardim da Lua Mundana, o Dragão Adormecido – mitos que se configuram como uma resposta ao esvaziamento de sentidos que a contemporaneidade nos impõe com seu jogo irrefreável de imagens que se desgastam justamente pela incontornável facilidade com que se dão a perceber, com que se instauram como uma forma de controle deliberado do imaginário coletivo. Ademir Assunção toma para si e subverte drasticamente a lógica da circulação irrestrita de imagens que as novas formas de mídia levam a efeito. O poema em prosa, então, é a forma perfeita para provocar, em plena contemporaneidade, o estranhamento, o choque e a ruptura que a linguagem poética solicita.
É preciso salientar que o poema em prosa atravessou todo o movimento romântico-simbolista, mas chegou timidamente ao século XX. A identidade vacilante e despedaçada dos indivíduos, agora, transparece em narrativas igualmente dilaceradas, como o Ulisses, de James Joyce. A narrativa passa a ser o lugar da fragmentação, do estilhaçamento, da surpresa e, por vezes, da manifestação poética. O poema em prosa perde sua força original de ruptura e inovação. Na América Latina, sequer chegou a ser uma tradição verdadeiramente articulada. Apenas na segunda metade do século XX, com O Fazedor, de Jorge Luis Borges e História de Cronópios e de Famas, de Julio Cortázar, é que o poema em prosa verdadeiramente desperta para a literatura latino-americana. E é justamente sob a influência de Borges e Cortázar que Fernando Fábio Fiorese Furtado publica o seu Dicionário Mínimo (2003). Diferentemente do cinismo trágico de Rimbaud, da morbidez violenta e cruel de Baudelaire, da beleza decadente de Huysmans ou dos passos vacilantes de nosso Cruz e Souza – autores que podem ser considerados aqueles que verdadeiramente trabalharam, na Europa e no Brasil, a forma volátil do poema em prosa – Fernando Fábio concebe uma poesia em prosa que se volta para o jogo cerebral entre as formas e os conteúdos de composição, entre a palavra e suas possibilidades latentes de sentido.
O único ponto de contato entre um dicionário comum e este Dicionário Mínimo é a proposta de relacionar, alfabeticamente, o significado das palavras. Mas, ao contrário de um simples dicionário, o livro de Fernando Fábio escolhe, para cada letra, uma única palavra e lhe descobre ou desvela sua secreta poesia. Assim, o poeta cria significados alheios às próprias palavras que relaciona, e reinventa a tradição do poema em prosa ao situá-lo nos limites do jogo lúdico de confundir e enganar, criando citações, notas de rodapé, passagens, entrechos e definições que, como vamos percebendo, não existem ou se confirmam. É a esse jogo simbólico que se refere Iacyr Anderson Freitas no ensaio-prefácio Minerações do Mínimo, que abre a obra de Fernando Fábio:
Pelo menos uma ordenada série de verbetes, contendo os sentidos usuais de vocábulos ou expressões, eis o mínimo que se espera de um dicionário. Mas não deste Dicionário Mínimo. E é aí que a porca torce o rabo. No lugar do habitual, brilha então um registro vivo de interpretações abertas e poeticamente desconcertantes. Registro menor na escolha das palavras – apenas uma para cada letra do alfabeto – e maior na potenciação dos horizontes lúdicos e afetivos dessas mesmas palavras, em que pouco se pode falar em definições. Afinal de contas, definir é definhar, é matar o objeto focalizado. (Furtado, 2003, 7)
Assim, lendo Dicionário Mínimo, é inevitável não pensarmos nos jogos de espelho criados por Borges através de suas constantes e inverificáveis citações. Impossível não pensarmos naquele flerte com o absurdo que encontramos na primeira parte de História de Cronópios e de Famas, quando Julio Cortázar cria um singularíssimo manual de instruções, ensinando aos leitores como chorar, cantar, sentir medo, entender três quadros famosos, matar formigas em Roma, subir uma escada ou dar corda no relógio. Os jogos de espelho e o flerte com o absurdo, na verdade, já se anunciam a partir da orelha do livro que, assinada por um Paschoal Cunha Garcia, se torna incompreensível na medida exata em que ironiza uma certa linguagem acadêmica, oficiosa, de um beletrismo desgastado, que mescla uma pseudo-erudição vocabular – que vai do preciosismo de uma língua portuguesa exageradamente culta às citações em latim e grego – a uma tentativa sempre frustrada de definir o objeto sobre o qual se volta:
As abas que se apõem à capa de um livro, tanto para conferir-lhe feição mais respeitosa quanto para permitir a inserção de textos encomiásticos acerca do autor e da obra, denominam-se de orelhas. À exceção do aspecto morfológico, posto que apensas ao que o vulgo confunde com a folha de rosto, trata-se de um termo impróprio, pois sua fisiologia não inclui a função auditória, e por conseguinte seria adequado ao menos adjetivá-las de moucas. Ou incluir o vocábulo, cum grano salis, no elenco das aberrações orgânicas produzidas pelo consensu omnium, uma vez que tal orelha tem antes uma função parlatória. (Furtado, 2003)
A passagem ilustra com perfeição o jogo de enganar a que os poemas em prosa de Fernando Fábio nos conduzem. A orelha do livro – sempre circunscrita aos limites da definição ou do comentário, sempre isolada do corpo textual da obra em si mesma – faz parte, em Dicionário Mínimo, da própria feitura do livro. Impossível separá-la ou distingui-la da escritura mesma da obra. De certa forma, a ironia que atravessa o próprio questionamento do conceito de orelha como as “abas que se apõem à capa de um livro”, e que mente sua verdadeira função – ao invés de auditiva, parlatória -, é a base sobre a qual boa parte dos poemas do livro se constituirão. Trata-se de uma ironia que se aproxima do riso declarado, da blague, da graça deliberada e franca, numa aventura crítica que busca demonstrar a fragilidade que norteia o próprio processo de construção dos sentidos. Fernando Fábio aponta para os dicionários como fraudes incontornáveis, porque pretendem fixar o que toda a palavra tem de mais móvel e diáfano: seu próprio sentido.
Inútil dizer que não existe nenhum Paschoal Cunha Garcia que, segundo as referências que acompanham a orelha da obra, é “Decano do Centre de Lettres Classiques de l’Université Alfred Jarry (Paris MCMLXIII) e Professor Titular de Filologia e Etimologia das Faculdades Integradas do Vale do Pirapetinga” (Furtado, 2003). Tudo não passa de uma armadilha criativa pronta a iludir os mais incautos. Armadilhas verbais bem ao gosto dos autores sob os quais acabamos por filiar Fernando Fábio – Jorge Luis Borges e Julio Cortázar. E, em se tratando de armadilhas, a orelha do livro é a mais perigosa e engraçada de todas. Representa, como já dissemos, um anacronismo total, absoluto, construído sobre uma teia de palavras e frases latinas que só fazem acentuar uma patética e desafiadora incompreensibilidade. E a crítica que ela instaura vai de encontro à vaporosidade que certos discursos são capazes de promover. Alfred Jarry, diga-se, é o escritor e dramaturgo francês considerado o precursor do teatro do absurdo com sua peça Ubu-Rei. Nada mais justo que um dos grandes precursores do absurdo para ilustrar uma crítica direta ao engessamento e à paralisia dos discursos críticos, teóricos e artísticos concebidos pela contemporaneidade.
O resgate do simbólico, em Dicionário Mínimo, se dá por meio desse jogo constante com a referencialidade que já não pode ser comprovada ou atestada a partir de determinadas e imutáveis verdades; por meio de uma transferência absoluta de sentidos, um deslocamento semântico que faz com que as palavras delirem dentro do processo simbólico de re-significação:
Flamboyant
Nem palavra nem árvore. Flamboyat é bote, boiando acima da tarde.
No período de floração, flamboyant é flama. Convém manter as crianças à distância. Os amantes nem tanto.
Flamboyant cresce à margem do dicionário. Parce que il ne parle pas, il flambe. (Furtado, 2003, 27)
Ao escolher a grafia francesa da palavra, o poeta sabe e re-conhece o poder simbólico que a palavra irá assumir. Em português, ficaria limitado à idéia mais ou menos translúcida de que a palavra acena para um determinado tipo de árvore. Mas em francês, flamboyant assume a própria e inalienável pluralidade de sentidos: reluzente, brilhante, rutilante, resplandecente, flamejante, faiscante, espaventoso, vistoso. Os sentidos deliram e a escritura mesma assume esse delírio essencial: contra os limites da prosa, o jogo aliterativo do flamboyant como “bote, boiando acima da tarde” – e as consoantes revelam o ideal mesmo de deriva que o verbo boiar sugere –; do flamboyant como flama – a imagem do fogo concentrada na repetição sistemática de conceitos que apontam para a similaridade de sentidos, nunca para a igualdade: flamboyant, flama, flambe. É a poesia quem redefine o valor semântico da palavra: de árvore à bote, algo perdido na tarde, quando floresce, flama, arde, queima, e, assim, cria um espectro semântico que aponta para a própria noção de desejo, crescendo à margem, avessa a qualquer dicionário e, por isso mesmo, alheia a toda definição. É justo lembrar que na literatura de um modo geral, o flamboyant sempre foi visto como o símbolo do amor, da paixão ou do desejo, sobretudo numa certa tradição romântica de criação.
Derivando dessa mesma linhagem, a de Borges e Cortázar, os poemas em prosa de Fernando Fábio revitalizam o gênero e radicalizam os processos de enganar, mentir e dissimular, indispensáveis quando a idéia é associar o inconfundível lirismo da poesia com a exatidão inverossímil da invenção mais radical, típica da narrativa moderna. O esvaziamento da referencialidade denotativa das palavras conduz ao preenchimento de cada vocábulo a partir de uma possibilidade de sentidos que se firma com a poesia e que demonstra a verdade das coisas e das palavras como símbolos que se grafam a partir do jogo cerebral entre forma e conteúdo, significante e significado, estrutura e sentido. O que os poemas de Dicionário Mínimo concebem é uma radicalização do processo simbólico que envolve a criação poética, processo largamente teorizado pelos românticos alemães e que Todorov procura demonstrar através de seu comentário sobre a teoria romântica do símbolo e a natureza elementar que este carrega consigo:
(1) O símbolo mostra o devir do sentido, não seu ser; a produção, e não o produto acabado. (2) O símbolo é intransitivo, não serve apenas para transmitir a significação, mas deve ser percebido em si mesmo. (3) O símbolo é intrinsecamente coerente, o que quer dizer que um símbolo isolado é motivado (não-arbitrário). (4) O símbolo realiza a fusão dos contrários, e mais especificamente, a do abstrato e do concreto, do ideal e do material, do geral e do particular. (5) O símbolo exprime o indizível, isto é, aquilo que os signos não-simbólicos não chegam a transmitir; é, por conseguinte, intraduzível, e seu sentido é plural – inesgotável. (Todorov, 1980, 97)
Sob esta perspectiva, Fernando Fábio, ao se valer do deslocamento semântico dos sentidos no interior da palavra, redimensiona o signo pluralizando sua capacidade significativa e transformando a própria palavra no lugar da diferença, no espaço do estranhamento, tornando-a uma realidade motivada (não-arbitrária), que se constitui, às vezes, de um registro irônico, lacerado, crítico e ácido do mundo e das coisas e, noutras vezes, de uma força afetiva, que resgata a memória perdida da infância, como em:
anágua
A madureza me surpreende com a palavra anágua.
O dicionário diz do étimo taino, ainda recendendo a Antilhas; diz da travessia do Atlântico, quando as tormentas do espanhol – enaguas – para o português exigiram reparos na proa e o lançar ao mar o lastro do plural.
A moda diz de uma peça obsoleta ante o império da transparência, do corpo-virtine, sem vincos, menos fusco que fátuo fulgor. Desvendado, desventrado, dissipado.
Na infância se escondia sob as saias que jamais levantei. Ou acena do varal, com rendas e aromas. Cet clair objet du désir nunca estava no rol de roupas sujas. Não se misturava com panos de prato, fronhas e toalhas.
Na madureza, restou apenas a prosódia líquida da palavra. Um mundo animado de anas e águas, de avas e vagas. Vocábulo de tanque, de cisterna. (Furtado, 2003, 17)
O registro afetivo, que se firma a partir de um inconfundível lastro lírico, revaloriza os sentidos de uma palavra em desuso, enraizada nos dicionários, marginal à língua comum, cotidiana, mas viva na memória que estabelece um jogo entre madureza e infância, presente e passado, lembrança e esquecimento, resgatando a antiqualha da palavra sob o prisma da nostalgia que o tempo acaba por conferir a todas as coisas. Assim, a poesia restabelece a força simbólica, capaz de provocar, ao mesmo tempo, surpresa e encantamento: da etimologia atravessada por questionáveis e insondáveis Antilhas, Atlânticos, navios, passa para a nossa língua perdendo o “lastro do plural” – uma forma de acomodá-la a nossas possibilidades prosódicas –; desgasta-se com o tempo e com o uso, numa época em que o corpo se mostra em sua plena gratuidade e translucidez, nu, livre de roupas ou vagos pudores, “desvendado, desventrado, dissipado”; mas vive plena de memória e afetividade, retomada à infância, quando ainda suscitava velhos e confusos desejos – e o trocadilho com o filme de Luis Buñuel, Esse Obscuro Objeto do Desejo, só faz com que o poder simbólico da palavra aflore em toda sua plenitude, já que a expressão francesa usada pelo poeta – clair – nos remete diretamente a relação claro/escuro, presente passado, infância/madureza presentes como indícios nostálgicos de uma época que só pode ser retomada por meio das armadilhas inescrutáveis da memória. A anágua não é só palavra, roupa de baixo, desejo latente infantil, ao contrário, ela é o próprio tempo resgatado, a própria infância posta em circulação no interior dos sentidos, rearranjados e reinventados a partir do poder simbólico que a criação solicita.
Dicionário Mínimo leva às últimas conseqüências a certeza de que todo signo subsiste apenas e a partir da própria fluidez significativa, da própria capacidade de se converter num universo simbólico que singulariza cada palavra, cada idéia, cada gesto, revelando novas e insuspeitas dimensões de sentido presentes no espaço da língua, da linguagem, ou, como quer Émile Benveniste, em Problemas de Lingüística Geral II, não podemos perder de vista esse processo de “simbolização, o fato que justamente a língua é o domínio do sentido. E, no fundo, todo o mecanismo da cultura é um mecanismo de caráter simbólico. Damos um sentido a certos gestos, não damos um sentido a outros, no interior de nossa cultura” (1989, 25). É o que faz Fernando Fábio em seus poemas. Ao escolher uma única palavra para cada letra do alfabeto, seu suposto dicionário privilegia essa natureza mutável, alheia e adversa do processo de significação, fazendo com que a poesia se manifeste como força doadora de sentidos a palavras tão estranhas entre si quanto anágua e bilosca, por exemplo, que, em outros domínios discursivos – digamos, numa obra verdadeiramente lexicográfica – veriam exploradas apenas sua característica teoricamente referencial.
bilosca
No princípio era bolinha de gude. Bilosca veio depois, quando o polegar já se entregara a outros dentes.
Embora substantivo simples, a sua redondez exige justaposição com búlica, vocábulo que ensina ao signo vazio.
Até os anos 60, acomodar bilosca na letra u de búlica era questão obrigatória nas provas de caligrafia, o que explica a sobrevivência do acento agudo que, à época, funcionava como ponto de mira. Difícil a bilosca não resvalar no b ou no l, desaparecendo na nota vermelha. (Furtado, 2003, 19)
O deslocamento semântico promovido por Fernando Fábio perde de vista a referencialidade plena e absoluta em favor da relatividade simbólica do discurso poético. Bilosca é um regionalismo mineiro para a locução adjetiva bola de gude, jogo infantil que consiste em atirar, umas contra as outras, pequenas bolas de vidro com o propósito de deslocá-las do centro fixo em que devem permanecer. O poema, desse modo, estabelece uma espécie de jogo com o próprio caráter lúdico da criação poética, já que o poeta contrapõe à bilosca o termo búlica, ‘que ensina ao signo vazio”, justamente pelo fato de que esta é uma forma não reconhecida pelas obras lexicográficas contemporâneas, uma forma perdida no tempo, resgatada ironicamente pela nota de rodapé que o poema traz consigo, associada às provas de caligrafia, buscando explicar a precedência de búlica, um arcaísmo, sobre bilosca, a palavra viva, corrente, fluida, engendrada pela língua em constante transformação. E a nota aponta para a obra de Paschoal Cunha Garcia – Subsídios para uma história do ensino de caligrafia no Brasil: dos jesuítas ao século XX. A obra, assim como o próprio autor, não existem, e Fernando Fábio destila sua crítica sutil e irônica à crença inquebrantável na referencialidade que o mundo contemporâneo nos obriga: nada melhor que o falseamento de um hipotético tratado acadêmico para legitimar uma palavra em detrimento de outra, um conjunto de sentidos em lugar de outro.
Se “de fato, mas manifestações do sentido parecem tão livres, imprevisíveis, quanto são concretos, definidos e descritíveis os aspectos da forma” (1989, 221), como sugere Benveniste, os poemas em prosa de Dicionário Mínimo desvelam justamente essa tensão constante entre forma e conteúdo, entre palavra e sentido, entre referencialidade absoluta e reapropriação simbólica da palavra, que o discurso poético leva a efeito. E as notas de rodapé que aparecem ao longo de boa parte do livro demonstram com perfeição esse estado de inconfundível tensão, de re-significação simbólica das palavras que já não aponta para as coisas, o mundo ou as instâncias categoriais do real. Assim, no vocábulo linha, por exemplo, o poeta afirma, em nota devidamente apartada do texto, que os aforismos ali relacionados são “excertos de anotações apócrifas realizadas durante as aulas ministradas por Paul Klee na Bauhaus, Weimar, em 1924”. É claro que tudo não passa de um exercício lúdico, de uma invenção tão incoerente que o próprio poema se desmente e revela:
Quem leia saiba, linha ilude algum dentro. Pára em meio, recolhe o ar, o arco, o caracol. No contorno da maçã, disfarça a mão armada. Desvio longo, até onde?
Linha acode como apóstrofe ao espelho.
Lápis pássaro deslimita. Será varal ou meridiano? Rubrica sobre a água ou giz na calçada?
Linha turista quando a pele é o único disfarce.
Rabiscar esconde armadilhas no mapa. Olho não descansa até desmontar a lâmina.
Linha é leque ou libelo?
Em sendo uma máquina simples, linha acomoda do horizonte a medida, da ponte as aspas, da esquina o adeus, do caderno o entorno, do gesto a infância.
A garatuja basta, inteira paisagem.
O que é a linha senão um capricho do tempo: bifurcações sem sentido até que se realiza o arabesco. (Furtado, 2003: p. 39)
A ambigüidade em torno do conceito de linha só pode se explicitar a partir da nota que, supostamente, relaciona a autoria dos aforismos ao pintor Paul Klee: a linha, presente na criação literária, também é uma das bases de composição da pintura. Assim, a ambigüidade não elide apenas a significação imediata que o conceito parece conceber, mas, principalmente, eleva a um profundo grau de indeterminação o sentido geral do poema. O deslocamento semântico imposto ao conceito de linha produz uma potencialização de sentidos que só podem ser divisados partindo da inter-relação aberta entre escritura e pintura. O que Fernando Fábio faz é criar um poema que denota, no plano das idéias, a mesma sinuosidade que se afigura entre os limites das artes e as fronteiras da criação. Não é por acaso que, no fim do poema, encontramos a afirmação de que “Linha erra: onde se lê autor, leia-se personagem” (2003, pág. 39).
Esse processo de concepção estética que desloca o conteúdo semântico das palavras e lhes oferece uma nova visada, um conteúdo estranho e alheio à própria definição, nada mais é do que um atentado contra os postulados lógicos da linguagem, e está na gênese mesma da criação poética, principalmente se pensarmos na definição de Octávio Paz, em O Arco e a Lira (1982), segundo a qual
A criação poética se inicia como violência sobre a linguagem. O primeiro ato dessa operação consiste no desenraizamento das palavras. O poeta arranca-as de suas conexões e misteres habituais: separados do mundo informativo da fala, os vocábulos se tornam únicos, como se acabassem de nascer. (Paz, 1982: 47)
Indo mais longe: separadas da linguagem midiática, do domínio da técnica, da informação que se fia unicamente no esvaziamento dos sentidos que tomam a comunicação humana de uma forma geral, as palavras, na poesia de Fernando Fábio, oscilam entre a consciência de que, por um lado, são construtos organizados que acenam para o próprio jogo – consciente e cerebral – da criação poética, e, por outro lado, deslocadas de seu universo rigorosamente lógico, alcançam o delírio imagético e imaginativo que a criação poética solicita. Cada palavra, então, é um novo símbolo, que instaura uma nova ordem, que solicita outras formas de pensamento e de abordagem do fenômeno poético.
Os poemas desvelam, em seus reflexos irreais, na superfície enganosa das palavras, o secreto dom de iludir. As referências cifradas, as citações enganosas, o diálogo com uma certa tradição literária, tudo isto está presente em Dicionário Mínimo, às vezes de forma tão explícita – como uma espécie de provocação – que é impossível não esboçar um sorriso cínico, de quem pactua com o engano sugerido pelo autor. É o que podemos perceber na nota de rodapé em cadeira: “Do catálogo das cadeiras Kerouac, que as Lojas Beat fizeram publicar em Nova Iorque no verão de 1922”. A nota toda é uma armadilha irônica: Jack Kerouac, escritor norte-americano da Beat Generation, é reconhecido por seu On The Road (Pé na Estrada) e por ter criado uma literatura de viagens, móvel, sugestiva, inquietante. Nada mais paradoxal do que constar em um catálogo de cadeiras – signo da imobilidade absoluta.
Desse modo, Dicionário Mínimo surge sob a ordem da inventividade, da ironia, do engano e do cerebralismo que fazem com que seus poemas em prosa não caiam nas tentações do lirismo fácil, da pura especulação subjetiva, da notação interior, confessional, e se transformem, sim, num exercício da inteligência, que busca estabelecer uma nova e necessária experiência com a linguagem poética, fazendo com que ela se desligue, de forma sutil e dissimulada, do excesso de referencialidade e concretude que a poesia contemporânea lhe imprimiu:
demudar
Creio que foi o poeta Edmilson de Almeida Pereira, estranhador de palavras, quem me apresentou este verbo.
No particípio, quando finge de adjetivo, sem nunca conseguir sê-lo ou selo.
Na verdade, o tempo mais adequado é o gerúndio, demudando.
Verbo heraclitiano par excellence.
Estudos recentes indicam que demudar está em desuso. Embora resista, próximo ao fóssil nos dicionários, inelutável nos seres imaginários de alguns mitos, súbito nos poemas que ainda serão escritos. (Furtado, 2003, 23)
No jogo lúdico, na ironia paródica, sutil e dissimulada, o poeta resgata o simbólico pelo próprio símbolo, penetrando surdamente no reino das palavras, como queria Drummond, e rompendo a lógica imperativa de uma estrutura assentada sobre a convenção da velha dicotomia significante/significado, forma/conteúdo. Demudar, aqui, simboliza devir, vir-a-ser, tornar-se. Logo, é símbolo indefectível da própria temporalidade. As palavras mesmas têm de, necessariamente, voltar à sua condição de símbolo. E cabe ao poeta, através do signo poético, forçar esse retorno. Se o poeta é o “doador de sentidos”, nos dizeres de Alfredo Bosi, seu objetivo primeiro deve ser o mergulho em profundidade na linguagem, o resgate de todas as instâncias e possibilidades significativas.
Mas reaver a potencialidade simbólica da linguagem poética não representa, unicamente, a doação do sentido, a experiência literária ao nível do significado apenas. É preciso, antes de tudo, que a experiência singularizadora do poeta rejeite, a priori, todas e qualquer forma imediatamente dada. Daí o apelo ao poema em prosa, essa forma alheia a modelos ou tradições estabelecidas. Demudar: signo eterno da criação poética: por isso sua existência simbólica, ou melhor, sua não-existência, sua inconcretude, sua atemporalidade possível apenas e verdadeiramente “nos poemas que ainda serão escritos”, na especulação sempre renovadora das formas de composição poética, na resistência contra o esvaziamento de sentidos da linguagem e dos discursos contemporâneos. Demudar: nos dicionários, fossiliza-se inutilmente; nos mitos, é condição e marca indelével; na poesia, é princípio e força ordenadora, centro de gravidade da própria criação. A poesia só existe em função de sua inalienável capacidade de converter-se naquilo com que primeiro se sonhou, imaginou, viveu ou intuiu.
Conclusão
Nessa espécie de Idade de Ouro às avessas em que vivemos, a linguagem parece ter se contaminado pela ideologia tecnocrata vigente, sujeitando-se aos princípios da tecnologia, automatizando-se barbaramente. Há o que se pode chamar de triunfo da técnica, como, um dia, no início do século XX, sonharam os futuristas, antes de despertarem para o pesadelo de um progresso que arrastou a humanidade para os excessos de duas grandes guerras. O século XXI principia sob a égide de um pensamento automatizado, sob uma nova ideologia das máquinas: os computadores, com seus códigos binários, com sua linguagem simplificadora, com sua infovia e seus registros programados – o Html, o Java, o Linux – impõe um pensamento que se quer lógico e preciso, esvaziado de sentidos, denotativo e referencial ao extremo, um pensamento que, em suma, abdique completamente da dimensão simbólica e reveladora da linguagem.
Nesse sentido, Ademir Assunção e Fernando Fábio Fiorese Furtado buscam, cada um a seu modo, através de suas próprias e singulares idiossincrasias, desautomatizar a linguagem, redimensionar o mito e reaver o paraíso perdido do símbolo como forma de compreensão do mundo, dos seres e das coisas, como espaço ideal a ser ocupado pelo grito inconsciente do espírito e como lugar essencial de luta e resistência contra o risco contemporâneo de transformar o homem num código programável. Contra a referencialidade, Cinemitologias e Dicionário Mínimo abrem caminho em direção ao sonho, à imaginação, ao delírio verbal e à secreta lógica do absurdo.
Mesmo que os poemas de Dicionário Mínimo reivindiquem, na sua estrutura, a lógica racional da referencialidade e da conceituação, características marcantes de toda obra lexicográfica, essa reivindicação não passa de um pretexto para que o poeta, no jogo lúdico da representação, sobreponha ao referencial – ou à aparência de referencialidade – a dimensão simbólica da linguagem poética. Trata-se, então, de desautomatizar a linguagem, o discurso, por meio da poiésis, parodiando uma estrutura discursiva das mais engessadas e automatizadas de que se têm notícias. Esse resgate do simbólico pela invenção, pelo humor, pela blague, pela subversão da forma e do conteúdo, é um modo de resistir ao esvaziamento da linguagem e da cultura contemporânea; uma maneira de desacreditar a ideologia dominante da técnica e da racionalidade postas em cena ao longo de todo o século XX e que se afirmam, hoje, através da suposta imediatização do conhecimento e da informação pelas novas formas de mídia.
Por outro lado, que dizer de um livro como Cinemitologias, que nos toma de assalto, de repente, que nos vampiriza e rouba, talvez de forma irremediável, nossa alma suja e gasta pelo vazio absoluto em que a palavra – inclusive a poética – parece ter se precipitado, roída pelo uso, condenada para sempre à voz impostora de tantos poetas de gabinete? É isso mesmo: aquela profecia prefigurada por Drummond no poema Política Literária parece ter se confirmado. Hoje em dia, quase que só há poetas oficiais. E a poesia acaba refém de uma linguagem protocolar, insensível, oficiosa e burocrática, que mente fingindo se expressar. Quebrar esse cerco significa impor à linguagem um delírio ritualístico, reinventar o mito, construir uma poesia que, como sugeriram os surrealistas, pusesse abaixo a realidade e adentrasse ao mundo dos sonhos.
Cinemitologias concebe em si as duas utopias. Mas ao invés de adentrar o mundo dos sonhos com a licenciosidade que uma certa tradição surrealista acabou criando, Ademir Assunção prefere o caminho mais audacioso: arrebentando as portas do sonho e arruinando para sempre a realidade, que se desespera e perturba diante da ressurreição e da insurreição do mito. Cinemitologias não nos desafia apenas a partilhar de sua linguagem viva e pulsante, de sua liberdade extremada, que é quase um grito de apelo, uma tentativa agônica, e às vezes frustrada, de se fazer ouvir. Antes de tudo, ele exige que, feito o poeta, nós também sejamos capazes de pactuar com sua força essencial, com seu frágil e, ao mesmo tempo violento, centro de gravidade: a vida no mais puro estado de loucura criadora. A loucura de Hörderlin, que foi a mesma loucura que levou Rimbaud às Iluminações e a Uma Temporada no Inferno, que guiou Lautreámont pelas mãos na perdição poética dos Cânticos de Maldoror, que também foi a loucura sensual e cruel de Baudelaire em seu Spleen de Paris.
A loucura que excita a linguagem e a leva a um transe constante, a uma espécie de cio poético, que luta contra o tédio e o vazio que nos toma quando o mundo não passa de uma máquina ilusoriamente perfeita, com suas engrenagens enrustidas e seu caótico funcionamento, e quando nossos gestos se confundem com as repostas programadas dos autômatos que constroem a velha e inestimável ordem social, política e econômica. Os poemas em prosa de Cinemitologias são feitos de ruas impossíveis, de dragões, centauros, serpentes, mulheres perdidas, morcegos com asas de cristal, abandono e revelação. Cada palavra nos permite entrever sua matéria volátil, seu delírio visual, sua rejeição absoluta aos velhos ídolos de barro. A poesia de Cinemitologias e de Dicionário Mínimo nos redime de nossa falta mesma de saídas. É sempre uma experiência gratificante poder encontrar nos limites abissais da criação poética a revelação espantosa de nossa mais plena e absoluta condição, o desafio cifrado, o jogo simbólico que nos obriga nossa própria e inadiável leitura.
Referências Bibliográficas.
ASSUNÇÃO, Ademir. Cinemitologias. Londrina: Atrito Art Editorial, 2002, 2ª edição.
BENVENISTE, Émile. Problemas de Lingüística Geral II. Campinas: Pontes, 1989.
BOSI, Alfredo. O Ser e o Tempo da Poesia. São Paulo: Cultrix, 1977.
ESTEBAN, Claude. Crítica da Razão Poética. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
FURTADO, Fernando F. F. Dicionário Mínimo. São Paulo: Nankin Editorial e Juiz de Fora: Fundação Cultural Alfredo Ferreira Lage – FUNALFA, 2003.
HEIDEGGER, M. The Origin of the Work of Art trad. Albert Hofstadter. New York: Harper Colophon Books, 1971.
______________ A origem da obra de arte Belo Horizonte: Kriterion, 1992. vol. 86. pp. 114-133
______________ “Sobre a essência da verdade” In Os Pensadores. trad. Ernildo
Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1979. pp. 127-145
MACHADO, Arlindo. “Poesia e Tecnologia”. IN: Revista da Biblioteca Mário de Andrade. São Paulo. Volume 56. Jan./Dez. 1998
PAZ, Octavio. O Arco e a Lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
___________. Signos em Rotação. São Paulo: Editora Perspectiva, 1996, 3ª edição.
TODOROV, Tzvetan. Gêneros do Discurso. São Paulo: Marins Fontes, 1980.
__________________. Teorias do Símbolo. Campinas: Papirus, 1996.
[1] Parte desse artigo que se refere ao livro de Fernando Fábio Fiorese Furtado, Dicionário Mínimo, foi publicada em 30 de setembro de 2004 no jornal A Tribuna Impressa de Araraquara. Por sua vez, encontra-se, aqui, revisto e ampliado, problematizando uma questão que não poderia ser tratada no espaço exíguo do jornal.
[2] Doutorando em Estudos Literários pela Faculdade de Ciências e Letras da UNESP – Araraquara. Crítico, escritor e poeta. Autor do livro de ensaio A Poesia como Transcendência ou o Mundo Desenraizado de Jorge de Lima: um Olhar sobre Invenção de Orfeu (no prelo), com o qual venceu o concurso de Ensaios Jorge de Lima no Contexto Universal da Poesia 2003. É professor de Teoria da Literatura na Faculdade Santa Rita – FASAR – de Novo Horizonte.
[3] Machado, Arlindo. “Poesia e Tecnologia”. In: Revista da Biblioteca Mário de Andrade. São Paulo, V. 56, janeiro/dezembro de 1998.
[4] Bosi, Alfredo. O Ser e o Tempo da Poesia. São Paulo: Cultrix, 1977, pág. 150.
[5] Paz, Octávio. O Arco e a Lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
“Há muitas outras proesias que dizem por si só, que merecem ser lidas, ou devoradas, ou ainda, projetadas em nosso cinema sensitivo, o que vem a contar pontos para a experiência cinemitológica e poética de Ademir Assunção...”
(Tribuna Popular, Santo André, fevereiro de 1999)
O novo livro de Ademir Assunção não é um livro. É um apanhado de curta-metragens recheados de surpresas. Depois da prosa experimental A Máquina Peluda, de 1.997, o poeta paulista registra em seu Cinemitologias (Edições Ciência do Acidente, 1.998) mínimas prosas poéticas — como também mínima edição de 100 exemplares numerados e autografados pelo autor — derivadas, segundo o próprio autor, de um inconsciente que aflora um certo momento do ato da criação de qualquer tipo de arte, de um impulso criativo, movido por sensações e paisagens várias. O livro é dividido em datas, formulando uma espécie de rota onírica dentro de imagens surreais ou de uma imagem apenas, com milhares de trilhas a viajar.
O sonho tem uma função de alicerce para as prosas de Ademir, como mostra o texto 07.04: “Tenho sonhado fotografias. Quando acordo, há centenas de imagens espalhadas pelo quarto. O cérebro funciona como uma polaroid. Tento juntar tudo pra ver se vira um videoclipe mudo.” — a relação do estático e do movimento, realçados pela modernidade pop de palavras como polaroid e videoclip enveredam pelo mundo etílico de noites regadas a jazz.
Outro fragmento cujo resultado é muito interessante é 21.03: “Passinhos de gueixa pela madrugada, roçar de meias delicadas no assoalho. O vento mistura as letras escritas no papel de arroz. Os pessegueiros estão secos.” — trabalho que carrega uma cadência oriental e bebe da mesma fonte do cineasta japonês Akira Kurosawa.
“Morcegos com asas de cristal negro se espatifam na janela. Lua de cacos cubistas mirando-se no espelho. Pânico no olho do cavalo.” — esse fragmento, 02.04, parece ter sido concebido após uma viagem a bordo da invenção maior de Timothy Leary ao som de qualquer uma das 13 canções do álbum Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band, dos Beatles, tamanha a carga de vôos despejada por esse texto.
Em 18.11: “Caco de vidro rasgando a superfície da água. Um peixe-miragem mergulha no espelho, crispa as escamas em seu próprio reflexo, engole-se a si mesmo, desaparece no lago profundo de seu avesso.” — esse texto é uma prova da qualidade do trabalho, com versos fortes e reverberação de idéias, simples idéias elevadas a poesia.
Há muitas outras proesias que dizem por si só, que merecem ser lidas, ou devoradas, ou ainda, projetadas em nosso cinema sensitivo, o que vem a contar pontos para a experiência cinemitológica e poética de Ademir Assunção, que, ao contrário de outras tentativas preguiçosas e pouco brilhantes de alguns escritores da sua geração, percebe a longa distância existente entre criar pontos de vista e remendar cacoetes visíveis.
Enfim, Cinemitologias bem que, ao invés de ser editado, poderia ser dirigido por, quem sabe, Luis Buñuel, que, se não posso provar, posso acreditar que adoraria.
“O esmero em levar em uma das mãos a vitalidade da linguagem e na outra o ritmo musical, como se levasse duas preciosas faculdades do sentir, faz da poesia de Ademir Assunção um dos instrumentos de revitalização da poesia brasileira.”
(Folha de Londrina, Londrina, 6 de outubro de 1994)
Durante a noite nem todos os poetas são pardos. Durante o dia nem todos os gatos são bardos.
Todos os gatos, uma hora ou outra, precisam de um peixe. Mas nenhum peixe necessita de um gato.
Todos os poetas precisam das palavras, do mesmo modo como todas as palavras necessitam de um poeta.
No caso, o escolhido para o árduo trabalho de retirar a poeira e as teias de aranhas das palavras foi Ademir Assunção. Seu trabalho poético no livro LSD Nô, lançado pela editora Iluminuras, revela o sorriso das palavras ao sentir a circulação sanguínea inflada de oxigênio novo.
O esmero em levar em uma das mãos a vitalidade da linguagem e na outra o ritmo musical, como se levasse duas preciosas faculdades do sentir, faz da poesia de Ademir Assunção um dos instrumentos de revitalização da poesia brasileira.
LSD Nô é povoado por versos forjados no esmeril do cotidiano com o cuidado de quem sabe que as palavras sentem o que sente quem as utiliza, assim como sente quem lê o modo de utilização destas palavras.
O poeta é o arado no solo da palavra. É aquele que confere fertilidade à linguagem. Para que o leitor sinta as sementes, imagine plantações dançando ao vento. Para que os frutos sejam alimentos iluminados.
A linguagem está a serviço da vida e não a vida a serviço da linguagem (como dizia Leminski).
Vamos supor que um velho ator nô, como num passe de mágica, fosse transportado de seu palco japonês do século 15 para uma esquina da avenida Paulista, em São Paulo, às seis da tarde de uma quinta-feira. Considerando estar dentro de um sonho, senta-se num canto da calçada percorrendo os sentidos pela paisagem. Um menino de rua tropeça em suas pernas e, falando alguma coisa, lhe entrega um pedaço de pão de centeio duro, velho e embolorado. Ao provar o pão, nosso homem nô entra em extase, em um estado alterado da consciência em que ele, o nô, a avenida, o pão, desaparecem. Tudo desaparece e um misterioso pássaro cruza os ares renovando os ventos com seu canto. A beleza do pássaro no céu, do céu no pássaro, do sentido de seu canto quieto em seu canto, ou nos quatro cantos do mundo, dão origem ao LSD Nô.
Como um trovão mostra a existência de um céu sobre a terra, as palavras mostram a existência de sutil dizer sob suas formas. Quem tiver olhos que ouça.
“Ademir Assunção pode ser considerado un inbentor de nuebas formas de fazer el poema acontecer en el âmbito de la literatura brasileira. Gracias a contribuiciones como las de Ademir Assunção, la poesia brasileira se renueva y se universaliza...”
(Revista Zunai # 26, São Paulo, março de 2013)
http://www.revistazunai.com/ensaios/douglas_diegues.htm
1.Conozco la poesia de Ademir Assunção desde muleque, cuando yo ainda ensayaba los primeros vuelos montando palabras. Naquella época nin ele nin Marcos Losnak nin Rodrigo Garcia Lopes nin Maurício Arruda Mendonça tenían libros publicados. Eram los poetas de Londrina. Una banguardia secreta que brotava en la ciudade más rápida del país – segundo Leminski. No teníam libros. Pero ya eran buenos poetas. E yo los admiraba y respetaba. Los leia en Folha de Londrina. Los leia en las esplendidas rebistas que elles faziam, como a K’AN. Desde la frontera. Yo los leía. Marabillado. Eran rebistas que me hacían penzar. Que me traziam nuebos sentidos para la bida. Desde esa época admiro y respeto el traballo de Ademir Assunção y de los poetas de Londrina que hoje fazem la rebista Coyote. Tengo acompanhado entusiasmado também las interbenciones periodísticas de Ademir. Su traballo periodístico também es digno de nota. Porque se trata de un periodismo de poeta. Periodismo de vanguarda. Periodismo que faz falta hoje na imprensa brasileira o paraguaia o argentina o uruguaia. La merda es que los periodistas de banguarda son muito muito subestimados por los donos de los jornaes. Son muy mal aproveitados neste Brasil bendido y baronil. Bolbiendo al poeta Ademir Assunção, non poedo omitir u Ademir letrista y compositor de sofisticados sambas-japoneses com sus manos Edvaldo Santana y Itamar Assumpção. Está tambéim el Ademir prosador, prosa experimental, prosa de poeta. Pero antes y después de todos elles, siempre estubo u poeta, el bisionário zen-salvaje. U poeta Ademir Assunção — em trânsito entre as diversas linguagens — u poeta que fundamenta y canta las pelotas del juogo.
2.LSD NÔ é u primer libro du mano Ademir. U título híbrido que une u químico Albert Hofmann, el inbentor du LSD, y Zeami, el inventor du NÔ, u teatro clássico japonês, confunde y assusta a las máfias acadêmicas y la burrice letrada. Eso ya dice muycho. Mas LSD NÔ es tambien un pájaro misterioso que habitava en el sur de Mongólia. Eso ayuda a confundir más la puretice oficial. Esse título ya es biajante. En el u poeta transita danzando, desde el oriente hasta el ocidente, contra la tirania de la identidade fixa y los nacionalismos mezquinos.
3.En la contratapa de LSD NÔ Arnaldo Antunes nos habla du corte preciso dos versos, de la fluência do ritmo, de las elaboradas tessituras sonoras, de la contundência, de la consistencia, del consciência del lenguaje du poeta Ademir. Pero solamente eso — pienso — non bastaria. Ademir vae além de la mera técnica. Ele tiene algo de salbaje, de inclasificable, de fuego, de indefinible, inato, que es su maneira própria de fazer la coisa acontecer, que es nueba, diferente, y me impacta. En el verso de Ademir, se encuentran, como en una fiesta indonésia, milênios de poéticas ocidentales y orientales, poéticas indígenas, simbolos y imágenes de culturas diversas, vida y morte, amor y mistério, luzes y sombras. Pero todo eso entra en la poesia de Ademir Assunção filtrado por las vísceras del poeta. Eso es lo que lo diferencia de los poetas de su generación.
4.Ademir Assunção pode ser considerado un inbentor de nuebas formas de fazer el poema acontecer en el âmbito de la literatura brasileira. Gracias a contribuiciones como las de Ademir Assunção, la poesia brasileira se renueva y se universaliza sin deixar de ser brasileira y se desbanaliza sin deixar de ser poesia. Escritos con sangre. Xustaposiciones de vida e linguagem. Melopéias-fanopéias. Linguagem em llamas. Poema onde cabe quase tudo, inclusive lágrimas y otras iguarias encontradas en el lixo. Linguagem de vozes de ninguém, ego sin endereço, talbez alôs do além, passos sin ninguna pressa contra la lógica de la mesquinaria de la cultura capitalista, de la literatura feita non para durar, mas para bender depressa. Poesia sin precio.
5.Algunas bezes Ademir Assunção se parece a un neo-antropófago. Abierto a los infinitos otros. U poeta que foi ver si ele mismo ainda estaba lá em una esquina de Atenas. Um poeta que deglutiu legal poiéticas de bárias partes y em vez de se tornar um imitador barato de poéticas alheias, encontrou sua própria voz, antes y depois del próprio cérebro aculturado. Ademir Assunção mergulhou en el fondo de si mesmo. Bebeu du LSD NÔ de su própria sangre. Por eso su palabra es forte. Por eso sus jogos verbales son intensos y non apenas meros juegos esteriles. Por eso u fogo de su palabra puode quemar.
6.Relendo LSD NÔ para escribir estas notas, me dou cuenta de que algunos poemas de esse libro parecen cantos indígenas, cantos pele-bermelhas, cantos de um índio urbano, um índio que habita una grande ciudade. Canto de fé em lo impossible. Como o poema ALVO, à página 66, do LSD NÔ.
7.Ademir Assunção também encontra tempo para ser um poeta japonês do século XXI. Um samurai salbaje capaz de destilar haicais certeiros contra o tédio cultural brochante. Na noite sin vino com chá de cidrera u poeta japonês Ademir Assunção celebra estrellas y u vazio perfecto. Vê a chuva molhando uma lágrima. Coleta a poesia do insignificante. Como non sabe de tudo ni quere ser u dono de la berdade, puode ainda admirar la lua cheia de la noite capitalista llena de amores podres.
8.Para que serbe la poesia meninas y meninos? U elegante anfiteatro curitibano fica em silêncio. Enton eu falo com minha voz de falo feliz: para deixar as pessoas menos burras. Ou como hablaba u mano Itamar Assumpção: para deixar la humanidade mal-agradecida menos burra. Essa es una teoria chamacoco de uma frase apenas que acabo de inbentar para compensar u tédio de las grandes teses que nos mortificam desde u tempo de Cesar Vallejo. Porque esa es una de las birtudes de la poesia du Ademir Assunção y de toda poesia que me impacta. Ella me deixa menos burro, menos mesquinho, menos triste, menos pureta. Ella hace bem para mia bida. Ela me ayuda a combatir u tédio de los ritos oficiales y de la poesia que non tem mais nada de nuebo a dizer.
Ñu Guazú, primabera 2003
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Douglas Diegues, poeta e ensaísta nascido no Rio de Janeiro, reside hoje em Ponta Porã (MS). É autor do livro Da gusto andar desnudo por estas selvas – Sonetos salvajes (2003).
“O capítulo bom da história é o nível de sua poesia, bem acima da safra das publicações recentes no mercado editorial. A questão não é só 'fazer' poesia, mas, principalmente, pensá-la. E pensar é um masoquismo a que poucos se aventuram.”
(Diário do Povo, Campinas, 16 de outubro de 1994)
Um título sugestivo e flashs de indiscreta lucidez em uma poesia rigorosa, repleta de musicalidade. São com esses elementos que Ademir Assunção estreou seu primeiro livro, LSD Nô, lançado recentemente pela editora Iluminuras. Apesar do nome, não é a filosofia oriental que perpassa em seus poemas, mas sim, a ocidental pincelada com a mais pura urbanidade.
O nome LSD Nô é uma alusão direta à mensagem que Assunção quer passar ao leitor. De um lado, a expansão da mente através de um alcalóide sintetizado quimicamente; do outro, a referência direta ao milenar teatro japonês no qual a minimização dos gestos conduz à sabedoria. Exceder e conter. É a partir desses dois princípios (aparentemente) paradoxos, que se descortina a sua poesia.
Mesmo disfarçada em alguns momentos em aspectos concretistas, engana-se quem pensa encontrar em seu trabalho um exercício cerebral, no qual apenas a forma impera. Auxiliada por uma excelente programação visual, a edição de LSD Nô prima pela economia da linguagem (enxuta e objetiva) sempre a serviço do fazer poético.
O projeto do LSD Nô inclui, além do livro, uma fita K-7 e um concerto de poesia (há ainda a possibilidade de um CD). Como Arnaldo Antunes (em Nomes) e Haroldo de Campos (com o seu Galáxias), Assunção produz um verdadeiro arsenal multimídia para o lançamento do seu livro. Com isso, Assunção não só proporciona o ato de “ler” a sua obra, mas também o de “ouvir”. Nada mais adequado, já que sua poesia é repleta de ritmos e modulações, criando muita musicalidade. E é essa a arte oral de que Borges nos fala: “um verso sempre exige sua pronúncia” (vide suas parcerias com Itamar Assumpção e Edvaldo “Lobo Solitário” Santana).
O capítulo bom da história é o nível de sua poesia, bem acima da safra das publicações recentes no mercado editorial. A questão não é só “fazer” poesia, mas, principalmente, pensá-la. E pensar é um masoquismo a que poucos se aventuram.
Segundo o poeta espanhol Calderón de La Barca, para os poetas e os místicos, toda vigília parece um sonho. Entre o delírio (o sonho) lisérgico e a lucidez (vigília) gestual nipônica, coloca-se o verso de Assunção. Nada de verborragia, nem discursos rebuscados. A exemplo de Leminski, a poesia de Assunção se descortina sem pretensões.
Em latim, as palavras “inventar” e “descobrir” são sinônimas. Assunção introduz o leitor no seu imaginário e, paulatinamente, coloca-o como personagem de sua “história”, levando-o a descobrir um horizonte de acontecimentos e, consequentemente, identificar-se com eles.
Essa é a questão: assumir a poesia como insubmissão e, através dela manifestar o novo, o inusitado. E a poesia que se quer maior é aquela que é pura água, puro ouro, puro ar. E pura é a obsessão que faz Assunção expelir suas secreções verbais. Nenhum miasma ameaça seu fluxo de insensatez poética. Na sua poesia, não há lei nem gravidade. Sua palavra única: a que não mata, a que amarra, a que amara.
“Pelos três livros, pequenas genialidades. E cada um atinge sua obra-prima: o budista Ademir, em Satori (‘sou apenas/ mais uma/ espécie de vida/ entre muitas/ viajando pelo tempo/ que nunca existiu’)...”
(O Estado de São Paulo, Caderno 2, São Paulo, 5 de março de 1995)
Então tá. Passou eleição, Natal, Ano-novo, Reis, praia, Carnaval (bela Bidu Sayão, hein?): começamos agora outra vez. Diz que o povo em Brasília cantava nas ruas “eu tinha medo do HIV, agora tenho medo do FHC”. Pura maldade, tem Dona Ruth Maravilhosa por trás, não? Então tá seguro, então já rolou, então vamos falar do que interessa.
E o que interessa? Toujours y always and sempre: p-o-e-s-i-a.
São três rapazes por volta dos 30 anos, dois paranaenses e um paulista que acabam de conseguir a façanha inacreditável de publicar seus primeiros livros. Boas editoras, bons livros: Solarium, de Rodrigo Garcia Lopes; LSD Nô, de Ademir Assunção, ambos da valorosa Iluminuras, de Samuel Leon, e Primeiro Segundo, de Ricardo Lima, numa edição lindíssima da Arte Pau-Brasil. Entre eles, em comum, além da geração (Rodrigo é de 62; Ademir de 61; Ricardo, o mais jovem, de 66) e do talento em comum, certo universo, certas heranças. Aqui e ali, pelos três, é possível recolher vestígios da geração beat, de Paulo Leminski, Ana Cristina Cesar, e uma visão de mundo marcada pela ironia em relação ao amor e às estruturas sociais.
Cada um faz isso de um jeito, e com múltiplas atividades. Rodrigo, o mais viajado (mestre em Artes pela Arizona State University, com tese sobre William Burroughs), tem poemas escritos em Creta, Veneza, Londres, Viena, Barcelona, é também tradutor dos difíceis poemas de Sylvia Plath, publicados pela Iluminuras. Ademir, jornalista que passou aqui pela redação do Caderno 2 lá por 87, sob o heterônimo de Pinduca, é letrista de músicos como Itamar Assumpção e Edvaldo Santana, participou de exposições de poesia visual em Paris, Lisboa e Sidney. Ricardo fez três anos de geologia, que trocou por comunicação, e guerrilhou anos em oficinas culturais em Ribeirão Preto e, em São Paulo, na assessoria de cinema da Secretaria de Cultura do Estado. Ou seja: além de poetas, são três lutadores culturais.
Em Rodrigo e Ademir às vezes certa atração pelo concretismo, pela visualidade do poema: versos em corpos diversos ou dispostos no branco de maneira não convencional. Ricardo é diferente: através de uma epígrafe de Hilda Hilst — que com João Cabral e Adélia Prado compõe o triângulo de nossos maiores poetas vivos — propõe de saída seu universo de puro rigor. Poemas enxutos, exatos, sem título, essenciais a ponto de lembrar às vezes Antonio Fernando de Francheschi ou Rubens Rodrigues Torres Filho, poetas marcantes da geração anterior.
Pelos três livros, pequenas genialidades. E cada um atinge sua obra-prima: o budista Ademir, em Satori (“sou apenas/ mais uma/ espécie de vida/ entre muitas/ viajando pelo tempo/ que nunca existiu”); Rodrigo em Morning Glory, dedicado a Ana Cristina Cesar, musa de todos nós (“olha/ é outono/ em tudo/ (lá fora e agora —)/ quando um rosto (é tudo —)/ que resta na memória”); Ricardo mais de uma vez, talvez principalmente neste poema com sabor gullartiano: “pessoas se perdem/ vizinhos mudam da infância/ amigos somem de tempos em pentes./ Família morre/ amor passa/ cidades partem/ as tardes/ não as recebo mais.”
Publicados entre final do ano passado e início deste, não lembro de ter lido nenhuma resenha ou sequer notas pelas raríssimas páginas literárias dos jornais. E olha que sou atento… Onde andarão os críticos d’antanho? Será que, como Dulce Veiga, também querem “outra coisa”? Pois essa outra-coisa palpita nestes livros de uma geração de jovens-nem-tão-jovens, muito além dos shopping-centers e videoclips e clubbers da vida, cheios de cultura, vigor, brilho. Quando voltarem a me encher o saco perguntando por-que-a-poesia-brasileira-está-estagnada, esfrego estes livros nas fuças dos desinformados. E quanto a vocês, o que estão fazendo aí parados lendo esta crônica? Corram já para as livrarias.
“De um lado, pessoas se arrastando como zumbis, vivendo em condições precárias, de desespero total. Por outro, celebridades de papelão, vazias, dando opinião sobre tudo, da política ao sexo anal. Achei que deveria trazer esse inferno para dentro da tradição da poesia brasileira.”
(O Diário de Maringá, Maringá/PR, 17 de setembro de 2015)
Wilame Prado
O escritor Ademir Assunção lançou recentemente dois livros pela Editora Patuá, Pig Brother e Até Nenhum Lugar, ambos de poesia. Semana passada, ele lançou os livros no Londrix – Festival Literário de Londrina. Sobre as suas mais recentes obras e sobre o cenário atual da poesia brasileira, o vencedor do Prêmio Jabuti em 2013 concedeu entrevista:
WILAME PRADO – Por que resolveu lançar os dois de uma vez? Tem a ver com os conteúdos: um mais porrada e outro mais lírico?
Ademir Assunção – Sim. Pig Brother é um poema longo, muito influenciado por minhas leituras sobre xamanismo, de um lado, e pela brutalidade humana, de outro. Procurei enfocar o lado selvagem, obscuro e violento desse mundo cheio de insensatez. Guerras, chacinas, linchamentos, torturas, tráfico de órgãos, intolerâncias, incitações ao ódio não são experiências agradáveis, mas a arte não pode se furtar de abordá-las. O livro acabou ficando barra-pesada, reconheço. Por isso decidi publicar também Até Nenhum Lugar, que é muito influenciado por minhas experiências com o zen, com uma visão mais sutil sobre a vida. Não diria que é um livro lírico. Diria que é o outro lado da moeda. A espécie humana é capaz das maiores delicadezas e das piores atrocidades. O que leva o pêndulo a oscilar, o tempo todo, para um lado e para o outro? Há motivações políticas, econômicas, religiosas, mas, do ponto de vista, digamos, espiritual, ou ontológico, se quiserem, essa “oscilação” é um mistério para mim. Por que enquanto uns tratam de criar outros tratam de matar?
WILAME – Explique o criativo título Pig Brother.
Ademir – Em vez de explicação, deixo em aberto para interpretações. Há uma referência clara ao clima de opressão do Big Brother, de George Orwell, e também ao exibicionismo babaca do Big Brother Brasil da TV Globo. Ao mesmo tempo, Pig Brother é a personificação de uma entidade xamânica. O xamanismo nos leva a encarar o lado obscuro, o pavor, a doença, para tentarmos superá-la. Mas que cada um leia e faça sua própria interpretação.
WILAME – Seria um livro apocalíptico?
Ademir – Não cabe a mim anunciar nenhum apocalipse. Simplesmente procurei jogar uma lente de aumento sobre situações com as quais convivemos cotidianamente. O cenário do poema é realmente chocante: o trânsito das cidades está paralisado, a Baía da Guanabara é uma crosta de óleo fétido, os rios são esgotos a céu aberto, a violência explode em todo canto. Acrescentei mais alguns pequenos detalhes: o céu é de lata, as árvores são de alumínio, o ar é quase irrespirável, as pessoas não conseguem sentir mais absolutamente nada. Isso torna o livro apocalíptico ou há um apocalipse pairando no horizonte dessa sociedade de consumo desenfreado que estamos vivendo?
WILAME – Seria um livro que não dá salvação aos seres humanos?
Ademir – Minha linguagem é a linguagem artística. Não sou pastor nem profeta. Não vendo ilusões. Penso que a arte pode abrir os olhos das pessoas, pode fazê-las enxergar melhor o que não estão enxergando com nitidez. Veja: durante o processo de criação do poema, caminhava muito pela cracolândia de São Paulo e por bairros periféricos da cidade. Não é um cenário que prima pela beleza e pela suavidade. Por outro lado, lia aquelas instrutivas revistas que mostram a frivolidade do mundo das celebridades. De um lado, pessoas se arrastando como zumbis, vivendo em condições precárias, de desespero total. Por outro, celebridades de papelão, vazias, dando opinião sobre tudo, da política ao sexo anal. Achei que deveria trazer esse inferno para dentro da tradição da poesia brasileira. Por que? Bem, porque ele existe e alguém precisa falar dele.
WILAME – Em Pig Brother há claras referências à noite paulistana e carioca. Como é a sua relação com essas cidades, com essas noites?
Ademir – Minha relação é a de uma pessoa que procura se manter o mais atento possível. Tenho a impressão de que estamos perdendo a noção do que é real, do que é imagem, do que é falsificação. De fato, em Pig Brother há muitas referências a bairros, ruas e inferninhos, principalmente de São Paulo e do Rio de Janeiro, mas também de Porto Alegre, de Buenos Aires e uma ou outra cidade. Isso porque queria deixar o mais concreto possível o ambiente em que os personagens se movimentam, queria trazer esses cenários para bem perto do leitor. Minha intenção era deixar uma dúvida: mas, caramba, tudo isso está se passando no futuro ou neste tempo presente? Se as pessoas saírem da leitura com esta dúvida, sinal de que funcionou.
WILAME – Parabéns pela capacidade de construção imagética com os versos. Na sua opinião, é preciso muito treino ou muitas vivências para conseguir isso na poesia?
Ademir – É preciso muita leitura, muito treino, muita observação e muitas vivências. Eu procurei esse efeito: um fluxo incessante de imagens despejadas na cabeça dos leitores. Não me preocupei tanto com a ação dos personagens. Não existe uma narrativa linear de episódios. Existe esse fluxo de imagens, quase sempre tenebrosas, com uma luz opaca, eu diria, se fosse um cineasta. Mas sou um poeta, minha matéria prima é a palavra. Neste livro, talvez eu me comporte como um poeta querendo fazer cinema.
WILAME – O leitor que quiser comprar, só no site da Patuá?
Ademir – Sim, a venda dos dois livros, tanto Pig Brother, quanto Até Nenhum Lugar, está sendo feita somente pelo site da Editora Patuá. Parece que as condições impostas pelas grandes redes de livrarias são desvantajosas para as pequenas editoras. A venda via site está se tornando uma saída viável para editores, autores e leitores interessados. Deve crescer muito mais nos próximos anos.
WILAME – Como foi esse processo com a editora, e a tiragem curta de 150 exemplares?
Ademir – É realmente chocante que em um país com 200 milhões de habitantes livros importantes saiam com tiragem inicial de 150 exemplares, não é? Mas é assim que as coisas estão funcionando. Não adianta fazer grandes tiragens se não há locais para colocá-los a venda. Não sou um autor de best-seller nem de livrinhos de colorir. De qualquer modo, a primeira impressão dos dois livros já se esgotou e a gráfica está rodando a segunda. Conforme vai saindo, vai-se imprimindo mais exemplares. As novas técnicas de impressão tornaram esse processo mais barato e evita-se gastos com estocagem. Aos poucos, meus livros vão se tornando tão conhecidos quanto os bons livros das grandes editoras.
WILAME – O que é ganhar um Jabuti?
Ademir – Ganhar um Jabuti? É um reconhecimento bacana, importante. Mas não mudou minha vida em nada. Continuo bebendo nos mesmos bares, com os mesmos amigos. Se fosse um Nobel, que está em torno de 1 milhão de euros, se não me engano, eu poderia viver o resto dos meus dias numa praia, me dedicando integralmente à leitura e à escrita.
WILAME – O que é fazer poesia no Brasil?
Ademir – Fazer poesia, para mim, é uma necessidade vital, quase como respirar. Acho que não seria diferente se vivesse na Dinamarca, Rússia ou Itália. Não tenho dúvidas que minha vida seria bem mais pobre sem a leitura e a escrita de poesia. É uma poderosa ferramenta de percepção.
WILAME – Como estamos de poetas?
Ademir – Muito bem. Há ótimos poetas vivos escrevendo com sangue, com pegada forte, com sutileza, sobre você, leitor, sua irmã, seu vizinho, sua namorada – mesmo que vocês não saibam disso. Viver na mesma época de Geraldo Carneiro, Glauco Mattoso e Alberto Lins Caldas, por exemplo, é um privilégio.
WILAME – Fale dos próximos projetos.
Ademir – Passar uma boa temporada na praia, pisando descalço na areia, namorando, de papo pro ar, sem nada pra fazer.
“No momento, as pessoas estão sendo mais estimuladas a consumir do que a perceber o que está acontecendo em volta. Quando isso se inverter, penso que as pessoas voltarão a ler e a ouvir mais poesia novamente. É como o oxigênio: só quando não conseguirem mais respirar é que vão se dar conta de que ele é realmente essencial.”
(Folha de Londrina, Londrina/PR, 13 de setembro de 2014)
Nelson Sato
Ademir Assunção é um dos poetas mais festejados do momento. Em 2013, seu livro “A Voz do Ventríloquo” foi eleito o melhor do ano, na categoria Poesia, pelo júri do Prêmio Jabuti. Nascido em Araraquara (SP), viveu em Londrina nos anos 1980 mudando-se depois para São Paulo. Tem vários livros publicados – o mais recente é “O Caio e O Cuio”, sua estréia na literatura infantil.
A seguir, entrevista que concedeu à Folha 2.
NELSON SATO – O tema do debate em que você irá participar hoje à noite, como convidado do Festival Literário Londrix, é inspirador: “O lugar da poesia”. Qual é lugar da poesia?
Ademir Assunção – O lugar da poesia é a vida. Somos seres de palavras. Pensamos, e até sentimos, dentro de um idioma. Sem as palavras não seríamos o que somos. E a poesia é essencialmente a arte da palavra. Quando a nossa relação com as palavras se empobrece, a vida sofre as consequências. Veja: a canção, que traz o tipo de poesia mais popular no Brasil, teve um papel fundamental na expressão das emoções, da imaginação e até do pensamento político brasileiro. Quando os meios de comunicação passam a difundir um cancioneiro mercantilista, mais voltado para o lucro do que para a percepção, tudo em volta se empobrece. Não tenho dúvidas de que a pobreza das relações humanas nos dias atuais se deve, em grande parte, ao empobrecimento da poesia veiculada na canção que se ouve no rádio, nas festas. Antes ouvíamos Raul Seixas cantando: “Eu que não me sento no trono de um apartamento/ com a boca escancarada, cheia de dentes,/ esperando a morte chegar”. Hoje ouvimos Michel Teló: “ai se eu te pego, delícia”.
SATO – As pessoas estão lendo mais poesia hoje em dia do que nos anos 80, quando você publicou seus primeiros versos em Londrina ?
Ademir – Tenho a impressão de que estão lendo – e ouvindo – menos. No momento, as pessoas estão sendo mais estimuladas a consumir do que a perceber o que está acontecendo em volta. Quando isso se inverter, penso que as pessoas voltarão a ler e a ouvir mais poesia novamente. É como o oxigênio: só quando não conseguirem mais respirar é que vão se dar conta de que ele é realmente essencial.
SATO – A poesia – e a literatura de uma forma geral – pode ser encarada como uma forma de resistência a um mundo cada vez mais hostil à lentidão, à concentração e até mesmo à necessária cota de solidão?
Ademir – Claro. Não só como uma forma de resistência mas como uma forma de existência.
SATO – Como a conquista do Prêmio Jabuti, com o livro “A Voz do Ventríloquo”, repercutiu em sua autoavaliação como poeta? Ao reler seus livros anteriores, acredita que atingiu a “maturidade” no domínio da técnica e da percepção poética?
Ademir – Na minha autoavaliação como poeta não teve grandes repercussões. Nunca escrevi para ganhar prêmios. Escrevo para organizar minha percepção, antes de tudo. Para me manter atento. Quando publico um poema ou um livro, não estou querendo me exibir, mas levar essas percepções a outras pessoas. Quanto à maturidade, sinceramente, não sei. Claro que tenho muito mais experiência, mas mesmo depois de tantos anos, nunca sei como vai começar o próximo poema.
SATO – Simultaneamente à “A Voz do Ventríloquo”, você lançou o CD “Viralatas de Córdoba” em que sua poesia é turbinada com arranjos musicais de ritmos variados, como o rock, o blues, o jazz e o pop. Você montou um show com banda para executar essa proposta ao vivo. Como tem sido a experiência?
Ademir – O contato direto com o público é muito estimulante. É possível perceber como um poema, às vezes até mesmo um único verso, é capaz de atingir as pessoas. Procurei durante muitos anos uma linguagem para a poesia falada, dessa forma, no contexto de um show mesmo. Os músicos tocam guitarra, baixo, bateria. Eu toco a palavra. É o meu instrumento.
SATO – Sua publicação mais recente é o livro “O Caio e o Cuio”, sua estreia na literatura infantil. Como surgiu o interesse em escrever para crianças?
Ademir – A entrada das crianças pequenas no mundo das palavras é fascinante. Em vez de falarem “galo”, por exemplo, elas falam “cocó”, que é o som que o galo produz. Antes de assimilar o significado das palavras, elas vão fazendo associações incríveis, brincando com os sons, com os fonemas. Quando meus filhos eram pequenos, eu me divertia com eles inventando poemas, histórias e até palavras. Então, não foi bem um interesse em escrever para crianças. Foi surgindo naturalmente. Mas tenho um cuidado enorme em publicar. Não quero encher a cabeça das crianças com bobagens, regras e lições que depois elas levarão muito tempo para se livrar.
“Escrevo sobre o que observo nas ruas, nos bares que frequento, nos noticiários dos jornais e televisões. Ao mesmo tempo, escrevo influenciado pelos livros que li, pelas canções que ouvi, pelos filmes que assisti. Ninguém está sozinho quando se põe a escrever. Muitos já criaram antes de mim.”
ARARAQUARENSE ADEMIR ASSUNÇÃO LANÇA SEU SEGUNDO DISCO SOLO, VIRALATAS DE CÓRDOBA
(Tribuna Impressa, Araraquara/SP, 12/01/2014)
Matheus Vieira
O ano que terminou foi extremamente especial para o araraquarense Ademir Assunção, influente jornalista da área cultural, compositor e poeta brasileiro, hoje residente em São Paulo, capital.
Além de conquistar seu primeiro Jabuti (na 53ª edição), com o livro de poesia “A Voz do Ventríloquo”, Assunção lançou, no fim de 2013, seu mais novo disco solo, “Viralatas de Córdoba” (sucessor de “Rebelião na Zona Fantasma”) e assim consolidou sua carreira artística por meio de uma transição entre a poesia, a prosa e a música.
Nascido em 1961, em Araraquara, Assunção é formado em Jornalismo pela Universidade Estadual de Londrina e foi repórter cultural dos jornais Folha de Londrina, O Estado de São Paulo e Jornal da Tarde, além de editor-assistente do caderno Ilustrada, da Folha de São Paulo.
Publicou outros livros de sucesso, como “LSD Nô”, “A Máquina Peluda”, “Zona Branca”, “Adorável Criatura Frankenstein”. Já dividiu palco com Itamar Assumpção, Edvaldo Santana e Madan, além dos intérpretes Ney Matogrosso, Patrícia Amaral e Titane.
E para conversar sobre “Viralatas de Córdoba”, que conta com participação de Fabiana Cozza, Thaís Piza e Ricardo Garcia, Ademir Assunção atendeu a reportagem em um bate-papo cheio de revelações, com tempero marginal.
MATHEUS VIEIRA – Logo de cara, o que me chamou atenção ao ouvir “Viralatas de Córdoba” é o ritmo do seu vocal, em tom de contação, com poucas partes cantadas, realmente. Esta é essência do trabalho, certo?
Ademir Assunção – Sim. Não sou cantor. Sou poeta. Não estou interessado em cantar. Estou interessado em entoar meus poemas, explorando ao máximo os ritmos dos versos, pausas, entonações, colocações de voz, às vezes mais agressiva, às vezes mais melancólica. Não se trata de uma simples leitura, linear, com uma banda fazendo “fundo musical”. Cada composição nasceu do próprio ritmo dos poemas, dos grooves dos versos, das colocações da voz falada. É uma maneira curiosa de compor. Não há necessariamente melodia, mas há um encaixe rítmico dos versos nos compassos musicais. Tenho consciência de que é uma linguagem peculiar, diferente do que se está acostumado a ouvir. No começo as pessoas estranham um pouco, mas logo se acostumam e começam a curtir.
MATHEUS – Inclusive, suas letras são um destaque a parte, com versos marginais e recheados com um humor singular…
Ademir – Bem, escrevo sobre o que observo nas ruas, nos bares que frequento, nos noticiários dos jornais e televisões. Ao mesmo tempo, escrevo influenciado pelos livros que li, pelas canções que ouvi, pelos filmes que assisti. Ninguém está sozinho quando se põe a escrever. Muitos já criaram antes de mim. De Homero a Roberto Piva. De Tom Waits a Sérgio Sampaio. De Sérgio Leone a Tarantino. Eu não seria o que sou se não tivesse conhecido o que esses caras já fizeram. Não posso fazer feio diante deles. Quanto à “marginalidade” dos versos o que posso dizer é que tenho predileção pelas figuras que se sentem deslocadas num mundo em que as pessoas se preocupam mais com o carro do ano ou com a roupa da moda do que com a própria vida.
MATHEUS – A banda que lhe acompanha, ‘Fracasso da Raça’, também é destaque à parte, com arranjos que migram do rock, passando pelo jazz e chegando no blues. Você já os conhecia?
Ademir – Venho trabalhando com Marcelo Watanabe (guitarrista), Caio Góes (baixista) e Caio Dohogne (baterista) há mais de 4 anos. Não posso dizer que eles simplesmente me acompanham. Eles são parceiros no processo criativo. Antes, trabalhei com Madan (compositor e violonista) e Ricardo Garcia (percussionista). Com eles gravei o cd anterior, “Rebelião na Zona Fantasma”, com a colaboração fundamental do guitarrista Luiz Waack. Somando tudo, desde 1996 venho desenvolvendo essa linguagem de poesia falada com música. É um longo caminho.
MATHEUS – Aliás, por quê este nome?
Ademir – Fracasso da Raça é o nome de uma das composições do “Viralatas de Córdoba”. Um reggae com uma surpreende virada para salsa caribenha. O poema é assim: “uns constroem pontes / uns constroem poemas / uns tiram leite das vacas / uns tiram leite das pedras / (uns bebem o leite das pequenas) / uns mandam bem no gogó / uns só no blablablá / uns fabricam sucessos / uns fabricam antenas / (antenas da raça pagando suas penas) / antenas na roça, antenas na praça / do Oiapoque ao Chuí, antenas / sintonizadas no programa do Datena”. É esse o fracasso da raça: ao mesmo tempo em que somos capazes de inventar tecnologias incríveis, as utilizamos de forma completamente idiota.
MATHEUS – O nome do disco surgiu quando você visitou sua filha em Córdoba, Argentina (N.R – Lá, os moradores cultivam o hábito de alimentar com tigelas de comida e água os vira-latas da cidade nas calçadas). Que louco, isso. A foto da capa também foi feita por lá?
Ademir – Sim. O viralata (prefiro a grafia deste modo, sem hífen) que estampa a capa do cd é um autêntico cão das ruas de Córdoba. Identificação, né? Me sinto mais próximo dos viralatas de rua do que dos poodles de apartamento. Nada contra os poodles. É só uma questão de identidade.
MATHEUS – Como está a recepção do disco? Sua agenda está lotada?
Ademir – Está indo bem. Fizemos um ótimo show de lançamento no Sesc Belenzinho (em São Paulo), em final de novembro, e nos apresentamos em alguns programas de televisão, como o do Heródoto Barbeiro (Record News) e o Metrópolis (TV Cultura). Agora estamos marcando shows em outras cidades, mas eu estaria mentindo se dissesse que a agenda está lotada. Não temos uma montanha de dinheiro para comprar espaços nas rádios ou no Faustão. O caminho é mais lento, mas duradouro. Pode ter certeza que esse trabalho não é para durar apenas um verão e ser rapidamente substituído por outra moda.
MATHEUS – Além da música, você tem uma carreira intensa na literatura, vencendo o Jabuti em 2013 com ‘A Voz do Ventríloquo’. Onde termina o Ademir poeta e começa o músico. Ou não existe esse limite?
Ademir – Esse limite não existe. O cd é uma continuidade da minha linguagem poética, muito marcada pela oralidade. Não se trata de um artifício, um truque, para conquistar mais público. Cresci lendo poesia e ficção mas também ouvindo rock’n’roll, blues, jazz, toada, samba-canção. Quando passo do silêncio da página impressa em um livro para o rumor da fala em um cd, posso explorar outros recursos, junto com os músicos. Entram riffs de guitarra, linhas de baixo, levadas de bateria, backing-vocals, mas o núcleo de tudo continua sendo a poesia.
MATHEUS – Você tem preferência por alguma delas?
Ademir – São registros diferentes. Pretendo continuar escrevendo livros e gravando cds. O importante é que a linguagem em ambos funcione. O nível do que se escuta no Brasil caiu muito. Mas isso é mais por uma determinação das emissoras de rádio e televisão. Tenho plena convicção de que há muitas pessoas ainda capazes de ouvir e entender algo mais elaborado do que “ai se eu te pego / delícia”. Por mais que os meios de comunicação se esforcem ainda não conseguiram reduzir a todos ao nível da debilidade mental.
MATHEUS – Falando um pouco sobre a sua cidade natal, Araraquara. Você acompanha notícias da cidade? Destaca algum trabalho artístico da Morada do Sol?
Ademir – Saí de Araraquara há 35 anos. Todos os meus seis irmãos moram aí. Volto à cidade com freqüência, menor do que gostaria, mas volto. Tenho grandes amigos, como o Pedro Renzi, que sempre me dão notícias. Infelizmente, não estou tão próximo para acompanhar a movimentação artística da cidade. Mas tenho certeza que há pessoas inquietas, criativas, pulsantes em todos os lugares, não apenas em São Paulo ou no Rio. Torço para que essas pessoas cresçam e apareçam.
MATHEUS – Você pretende lançar seu disco em um show por aqui?
Ademir – Claro. Estamos em contato com o Sesc Araraquara. Gostaria não apenas de lançar o cd, mas de conversar com as pessoas, incentivá-las a criar e a desenvolver seus trabalhos. Araraquara é minha cidade natal. É o lugar onde nasci e vivi até os 18 anos. Para onde quer que eu vá estarei ligado à Morada do Sol.
MATHEUS – Quais os planos para o ano que entra? Na música, primeiro.
Ademir – Fazer muitos shows, divulgar esse trabalho, mostrar que é possível encantar, cutucar e tocar mais pessoas.
MATHEUS – Agora, na literatura.
Ademir – Como disse, um trabalho é extensão do outro. Não faço essa separação entre música e literatura. Pelo menos, não no meu caso. Mas, falando especificamente de livros, tenho dois novos trabalhos prontos: um de poesia e um de ficção. Estou contatando editoras. Quem sabe ambos sejam lançados ainda este ano.
“É bacana receber esse prêmio, mas não me envaideço. Poesia não tem nada a ver com vaidade. Não me considero melhor do que muitos outros poetas que estão escrevendo com vigor e intensidade. Quero dedicar este Jabuti, aliás, a dois grandes poetas que jamais o receberam: Roberto Piva e Augusto de Campos.”
(Folha de Londrina, 22 de outubro de 2013)
Marcos Losnak
O jornalista e poeta Ademir Assunção foi o vencedor da 55ª edição do Prêmio Jabuti na categoria Poesia. Com “A Voz do Ventríloquo” (Edith), Assunção, que já trabalhou na FOLHA, levou o prêmio de R$ 3.500. A obra agora concorre ao prêmio de Livro do Ano de Ficção, no valor de R$ 35 mil – que, juntamente com o de Não Ficção, será anunciado na cerimônia de premiação, em 13 de novembro. O autor concedeu entrevista sobre a premiação.
MARCOS LOSNAK – Você imaginava que “A Voz do Ventríloquo”, publicado por uma pequena editora, poderia ganhar o Jabuti de poesia?
Ademir Assunção – Sinceramente, não imaginava. Alegra-me trazer esse prêmio também para a Edith, uma editora minúscula, mas que tem um trabalho editorial de alta qualidade. E o que chamo de qualidade? Estou falando do alto potencial da arte e do pensamento em perceber, criticar e reimaginar o mundo em que estamos vivendo. É bacana receber esse prêmio, mas não me envaideço. Poesia não tem nada a ver com vaidade. Não me considero melhor do que muitos outros poetas que estão escrevendo com vigor e intensidade. Quero dedicar este Jabuti, aliás, a dois grandes poetas que jamais o receberam: Roberto Piva e Augusto de Campos.
LOSNAK – Os poemas de “A Voz do Ventríloquo” batem de frente com o efeito anestésico da vida contemporânea. As pessoas deixaram de ser humanas para se tornar consumidoras?
Ademir – Há uma máquina voraz em funcionamento, que enxerga as pessoas não como indivíduos, mas como consumidores em potencial. As pessoas valem não pelo que são, mas pelo tanto que elas podem comprar. Isso está acontecendo em todos os setores, da fé religiosa à arte. As cidades não andam mais e todos os dias mais carros são colocados nas ruas. A especulação imobiliária desfigura os bairros das cidades cotidianamente. Rádios e televisões nos entopem os ouvidos e os olhos com programações de baixíssima qualidade. A violência aumenta de maneira assustadora nas ruas das grandes e médias cidades. Feridas seculares continuam abertas e vão continuar expelindo seu pus sobre a cabeça de todos nós. É chato dizer isso, mas é mentira? Há um descompasso enorme entre o ser e o ter. Grande parte dos poemas do livro revela o desconforto de se viver numa realidade como esta.
LOSNAK – Vivemos numa época de quantidades colossais de informações disponíveis no universo virtual. Qual o sentido da poesia nesse universo?
Ademir – Sim, estamos expostos a uma quantidade colossal de informações, mas me pergunto: há uma quantidade colossal de conhecimento circulando? Não estou convencido disso. Informação não é o mesmo que conhecimento. Dentro da lógica voraz de consumo, a informação se torna também uma mercadoria e grande parte desse volume colossal é descartável, dura pouco tempo e logo é substituído por outro. Conhecimento demanda tempo, dedicação e espaço para vivenciá-lo. A poesia não é um produto moldado para os caprichos do consumo. Compreender um grande poema, mesmo que seja um minúsculo haikai de três linhas, nos faz compreender melhor a nós mesmos. A essa altura da vida, não tenho a menor dúvida de que um poema como “Uivo”, de Allen Ginsberg, ou “Eu andava assim tão distraído”, de Maurício Arruda Mendonça, melhorou a minha percepção. Este não seria um dos sentidos da poesia: tornar-nos mais despertos em nossa breve estadia neste mundo?
LOSNAK – O livro realiza uma critica ferina aos grandes sistemas globalizados (econômicos, culturais e políticos). Você considera que a poesia pode ser um território de resistência?
Ademir – Mais do que resistência, gosto de pensar a poesia como um território de existência. A poesia está no mundo assim como uma Ferrari modelo 2014. Uma Ferrari certamente poderá me levar longe. Mas a poesia me levará muito mais adiante.
LOSNAK – Você tem um trabalho que une música e poesia no show “Rebelião na Zona Fantasma”. O caminho da sua poesia passa pela música?
Ademir – Antes de tudo, passa pela oralidade. Gosto de ouvir a música da fala. Há muitos nigerianos, por exemplo, vivendo em São Paulo. Gosto de ouvi-los conversando nas ruas do centro. Quando falam, parece que estão tocando um tambor. Eles têm uma fala totalmente percussiva. Quando escrevo, presto muita atenção à música das sílabas se roçando umas nas outras, ao ritmo das frases, às cadências das palavras longas e das palavras breves. Isso me levou ao desejo de oralizar meus poemas com a colaboração dos músicos. Agora em novembro lanço meu segundo cd, “Viralatas de Córdoba”, com minha banda Fracasso da Raça, formada por Marcelo Watanabe (guitarra), Caio Góes (baixo) e Caio Dohogne (bateria). É um trabalho de poeta. Da composição de cada poemúsica (como gosto de chamar) até a finalização das gravações, os arranjos, a edição dos backing vocals, sempre com a colaboração dos músicos, todo o trabalho foi muito enriquecedor para mim.
LOSNAK – Londrina fez parte de sua formação como poeta?
Ademir – Sim. Costumo dizer que nasci em Araraquara, interior de São Paulo, e renasci em Londrina. Tenho “dupla cidadania”. Foi em Londrina que formei as bases do que sou hoje. Os sete anos que vivi na cidade, de 1979 a 1986, foram muito intensos, muito ricos em experiências, em troca de conhecimentos. Foi aí que li grande parte dos autores que formaram meu alicerce, que vi grandes filmes, na sessão da meia-noite do Cine Teatro Ouro Verde, que ouvi os primeiros discos de Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção e Frank Zappa, e que comecei a trabalhar como jornalista profissional. Também fiz grandes amigos, que me ajudaram a crescer, a abrir os olhos. Eles sempre estão comigo, onde quer que eu vá.
“Fui em direção ao jornalismo movido pelo interesse pela linguagem poética. Peguei um período em que era possível praticar um jornalismo bem mais instigante do que o atual. Era possível desenvolver um estilo, ou vários estilos de escrita, e discutir questões relevantes com mais profundidade.”
(O Estado do Maranhão, São Luís/MA, 28 de setembro de 2013)
ZEMA RIBEIRO – Em 2012 você lançou o livro de poemas A voz do ventríloquo e a coletânea de entrevistas Faróis no caos. Sua trajetória parece desde sempre marcada por essa, digamos, vida dupla: a poesia e o jornalismo. Em que sentido um e outro se ajudam e completam e/ou atrapalham?
Ademir Assunção – Fui em direção ao jornalismo movido pelo interesse pela linguagem poética. Peguei um período em que era possível praticar um jornalismo bem mais instigante do que o atual. Era possível desenvolver um estilo, ou vários estilos de escrita, e discutir questões relevantes com mais profundidade. Sempre fui fascinado pela página grande de um jornal, com todas as suas possibilidades criativas, desde a linguagem gráfica, fotográfica até a própria escrita. O jornalismo me ajudou a criar uma disciplina e a procurar uma poesia mais impura, mais misturada ao cotidiano. E o estudo da tradição poética me ajudou a praticar um jornalismo mais criativo, enquanto foi possível. Embora sejam linguagens e meios bem diferentes, procurei contaminar um ao outro, levando uma consciência poética ao jornalismo e trazendo um pouco das impurezas da linguagem jornalística para a poesia.
ZEMA – Poesia “é saber usar a língua para extrair gemidos, uivos e palavras obscenas das mulheres mais vagabundas”. Esta é a resposta que você deu ao também poeta Edson Cruz, em O que é poesia? [2009], livro que ele organizou. O que mais é poesia? E levando em conta essa definição, você arriscaria um chute? Há muitos ou poucos poetas por aí? Bons ou ruins?
Ademir – Não gosto da poesia como algo puro, uma espécie de virgem imaculada no alto de um pedestal. Prefiro a poesia que vai para o meio da rua, que lambe as feridas dos trombadinhas, que se deixa violentar por tudo o que é humano, que se arrisca aos altos voos mas que tem consciência de que o asfalto é duro é áspero. Como diria Nietzsche: “de tudo o que se escreve, aprecio somente o que é escrito com o próprio sangue.” Sim, há muitos poetas que escrevem com essa fúria e essa urgência. São esses os que mais me interessam.
ZEMA – A mediocrização do jornalismo cultural brasileiro te obrigou a um exílio voluntário. Entrevistas como as reunidas em Faróis no caos estão cada vez mais raras na chamada grande mídia. Neste aspecto, uma volta ao passado parece mesmo impossível?
Ademir – Nada é impossível e o tempo não é linear como pensamos. É possível que a qualquer momento surja uma nova tribo de jornalistas que encare o exercício da escrita e da informação de maneira apaixonada e ousada, e não apenas como uma profissão, “onde quem pode manda e quem tem juízo obedece”. Para mim, isso é uma total falta de juízo. É preciso também que as condições se apresentem para que essas mudanças aconteçam. Quanto ao meu exílio, não foi tão voluntário assim. Passei períodos difíceis, sem grana, sem conseguir trabalho em jornal ou revista algum. Mas nunca estive disposto a vender o que tenho de mais precioso: a minha inquietação.
ZEMA – Muito do conteúdo dos poemas de A voz do ventríloquo é uma crítica a essa sociedade do espetáculo e do consumo desenfreado, que vai mais a um show ou a um restaurante para postar a foto do artista no palco e da comida no prato que para apreciar um ou outro. A experiência parece só existir se compartilhada. Escrever é um exercício solitário, que vai na contramão disso tudo. Como você dosa o exercício de escritor com a exposição na medida que o mesmo deve ter, divulgando a obra, conquistando leitores?
Ademir – Sinceramente, nunca me preocupei em conquistar mais leitores. Sigo fazendo o que tenho que fazer. A escrita, para mim, é vital. Tenho tanto prazer em passar madrugadas escrevendo solitariamente quanto em subir em um palco e apresentar meus poemas com minha banda. É claro que tenho intenção de influenciar mais pessoas, de interferir no resultado do jogo, mas que isso aconteça sem concessões descabidas. A poesia é capaz de abrir o olho de muita gente. Não a encaro como um entretenimento. Não tenho nenhuma dúvida de que minha percepção seria mais pobre se não tivesse lido “Uivo”, de Allen Ginsberg, ou a tradução da “Ilíada” por Haroldo de Campos, para citar dois exemplos.
ZEMA – Além dos livros de poesia e prosa e da atividade jornalística, outra atividade sua é a música. Para você, há diferença na hora de compor uma letra de música ou escrever um poema?
Ademir – Apenas diferenças técnicas. No meu caso, a maior parte das minhas parcerias musicais nasceu de poemas já escritos. Poucas vezes escrevi poemas para harmonias ou melodias já prontas. Acho um equívoco pensar que a “grande poesia” só pode existir no livro. Itamar Assumpção, por exemplo, é um poeta de altíssima voltagem. Só que em vez de publicar livros, gravou discos. São meios diferentes, com possibilidades diferentes. Gosto muito do poema cantado de Gilberto Gil: “Na lata do poeta tudo nada cabe / Pois ao poeta cabe fazer / Com que na lata venha caber / O incabível.”
ZEMA – Depois de Rebelião na Zona Fantasma você está preparando um novo disco, fundindo poesia com rock e blues, numa experiência para muito além de recitar poemas com fundo musical. A banda que te acompanha se chama Fracasso da Raça, um belo nome que já traduz uma opinião, uma visão de mundo. Deste novo disco – como se chamará? – já tive a oportunidade de ver o clipe de Bang bang no sábado à noite e ouvir Lena, enviada por e-mail em primeira mão. Em ambas estão referências fundamentais para tua literatura, como Bob Dylan, John Lee Hooker, Sérgio Leone. O que mais esperar? E qual a previsão de lançamento?
Ademir – Este novo disco, que se chama Viralatas de Córdoba e será lançado em novembro, está mais radical do que Rebelião na Zona Fantasma. Das 14 faixas, há apenas uma cantada, um blues interpretado pela cantora Fabiana Cozza. É um poema que Edvaldo Santana musicou, sem nenhuma alteração. Todos os outros são entoados, com ritmos, com modulações, com intenções de voz diferentes. Porém, meticulosamente encaixados em harmonias e compassos musicais. Como você frisou, não se trata de poemas falados com um “fundo musical” aleatório, improvisado. O processo de composição com os músicos Marcelo Watanabe, Caio Góes e Caio Dohogne foi muito curioso. Os próprios compositores jamais haviam trabalhado desta maneira. Gravei também “O Deus”, parceria com Edvaldo Santana e Paulo Leminski e “Nossa Vida Não Vale um Chevrolet”, do Mário Bortolotto. Ambas são canções, originalmente cantadas, mas fiz uma versão falada (ou “entoada”, como prefiro). Em “Chevrolet” acrescentei o poema “Eu Caminhava Assim tão Distraído”, do poeta e dramaturgo Maurício Arruda Mendonça.
ZEMA – As revistas literárias e culturais são tema de uma das mesas de que você participa na 7ª. Feira do Livro de São Luís. Recentemente a editora Abril fechou a Bravo!, que apesar de já não ser como quando iniciou, ainda tinha alguma importância. É um sinal dos tempos? Ou sempre foi assim: a tesoura que corta o orçamento pega primeiro na cultura?
Ademir – Essa é a realidade do mercado editorial. Se uma publicação comercial não dá lucro financeiro, acaba sendo extinta. Não era um leitor assíduo da Bravo!, mas lamento seu fim. Particularmente, preferia que a Veja fosse extinta e a Bravo! continuasse.
ZEMA – Você é um dos editores da revista Coyote, que já conta 10 anos, 24 edições, um pequeno apoio da Prefeitura de Londrina e muita paixão e teimosia dos editores – a teimosia uma espécie de sal da poesia, tempero que não pode faltar. A meu ver é a mais importante revista de literatura do Brasil, hoje. Como surgiu a ideia e o que os leva a resistir?
Ademir – Rodrigo Garcia Lopes, Marcos Losnak e eu fizemos outras revistas antes, juntos, ou separados. A Coyote nasceu de uma necessidade nossa de mostrar autores, tanto do passado quanto do presente, que considerávamos importantes e que não víamos em outras publicações. E há uma particularidade da Coyote que as pessoas notam de cara: a linguagem gráfica. Para mim, Losnak é um gênio do design gráfico. Não entendemos a revista apenas como “suporte” para textos. A própria linguagem gráfica assume um papel de altíssima significância.
ZEMA – Que outras revistas literárias te fizeram e/ou fazem a cabeça?
Ademir – Várias, da Navilouca à Azougue. Muitas revistas surgiram nas últimas décadas, a maioria desapareceu, mas deixou contribuições importantes. Para citar algumas: Bric-a-Brac (Brasília), Orobóro e Medusa (Curitiba), Imã (Vitória), Ontem Choveu no Futuro (Campo Grande), Carioca e Inimigo Rumor (Rio de Janeiro), Pulsar (Teresina, se não me engano), Pajeurbe (Fortaleza) e Revista de Autofagia (Belo Horizonte). Há várias outras que me escapam à lembrança no momento.
ZEMA – Você conhece a Pitomba, editada aqui por Bruno Azevêdo, Celso Borges e Reuben da Cunha Rocha? Qual a Coyote, também tem periodicidade de-vez-em-quandal e é feita com pouquíssimo apoio, no fim das contas sai do bolso do trio mesmo. O que acha da publicação?
Ademir – Gosto do tom de provocação e irreverência da Pitomba. Cada poeta ou grupo de poetas traz suas referências críticas e criativas. É importante que elas apareçam, que causem atritos. Os atritos provocam movimento, abrem novos horizontes perceptivos.
ZEMA – Outro tema que você debaterá é a relação entre poesia e rebeldia, passando por obras de Paulo Leminski e Torquato Neto, entre outros, poetas que também influenciaram teu trabalho, você um rebelde. Quem são os rebeldes de hoje, que nomes valem a pena e mereceriam uma indicação tua, a um amigo, dentro de uma livraria?
Ademir – É preciso situar o termo “rebeldia”, para que não se torne algo caricato. Atitudes rebeldes surgem da necessidade de se firmar outras maneiras de viver e de fazer as coisas. Elas são vitais para ampliar a percepção, as experiências, para não cair na vala da acomodação, do mais-do-mesmo. Espíritos rebeldes sempre existiram, no passado, no presente e existirão no futuro. A lista dos poetas vivos que mais me instigam não é pequena. Para citar apenas cinco deles, eis alguns que procuro acompanhar com grande interesse: Douglas Diegues, Rodrigo Garcia Lopes, Fabrício Marques, Celso Borges e Micheliny Verunschk. Mas há um punhado de outros, que podem se sentir incluídos.
ZEMA – Você participa ainda do Poesia no Beco, em um espetáculo de voz e guitarra, espécie de miniatura do que será o disco. Quais as expectativas para esta apresentação e em geral, nesta sua primeira visita à Ilha natal de Ferreira Gullar?
Ademir – O que vou apresentar em São Luis do Maranhão, com o guitarrista Marcelo Watanabe, é uma versão, digamos, mais descarnada das composições que estão nos dois discos, o Rebelião e o Viralatas. Não tem os arranjos, com bateria, baixo, backing vocais, percussão, que estão presentes nos discos. As composições serão apresentadas mais próximas da raiz, de como elas nasceram. Tomara que as pessoas se sintam estimuladas com o que vão ouvir. Quero aproveitar essa minha primeira viagem ao Maranhão para mostrar o que estamos fazendo e também conhecer o que os criadores daí estão aprontando.
“Quando nos deparamos com ideias consistentes, saímos mais enriquecidos. A arte não é um acessório de luxo. É algo essencial para nos encantar e até mesmo para nos perturbar. Nascemos sem saber nada. Isso é um fato natural. Mas morrer sem saber nada, isso é uma tragédia. Uma vida inteira desperdiçada.”
(Jornal do Commércio, Recife/PE, 20 de janeiro de 2013)
Diogo Mendes
No livro Faróis no Caos o jornalista, poeta e editor da revista de cultura Coyote, Ademir Assunção traz toda sua habilidade de entrevistador para conversar com grandes nomes da cultura brasileira, com um foco naqueles que estão na contramão da produção comercial e padronizada. Na entrevista abaixo, ele comenta sobre como foi falar com tantas figuras essenciais para se entender o país ontem e hoje e ainda fala da sua poética, presente no seu mais recente livro, A Voz do Ventríloquo.
DIOGO GUEDES – De que forma a entrevista pode revelar um artista para o público? Existe uma forma de se preparar uma entrevista?
Ademir Assunção – Para mim, no princípio de tudo, está o interesse vívido pelas idéias e pelas experiências artísticas. Quando um entrevistador está realmente interessado no pensamento do artista, e não apenas em cumprir uma pauta, há grandes possibilidades de fazer uma entrevista reveladora. Pensar é uma das capacidades humanas mais fantásticas. Não podemos desperdiçá-la – embora grande parte da imprensa cultural hoje nutra um desprezo escandaloso pelo pensamento. Prefere publicar trivialidades de celebridades do que tornar público idéias que podem nos fazer compreender melhor o mundo que nos cerca. A melhor forma de se preparar uma entrevista é se informar sobre o entrevistado, conhecer sua obra, estudá-la minimamente. Perguntas inteligentes e perspicazes normalmente resultam em boas entrevistas.
DIOGO – Um dos recortes que aparece na gama de entrevistados de Faróis no caos são nomes que figuram na margem do mainstream cultural – as exceções são pessoas de pensamento que também vai contra a corrente, como Caetano. Como a contracultura e os autores à margem são formas de enxergar o mundo?
Ademir – Ao longo da minha trajetória jornalística, nunca me preocupei em entrevistar pessoas famosas. Minha preocupação sempre foi entrevistar pessoas que tinham o que dizer. Tenho interesse principalmente por aqueles artistas mais críticos, mais inventivos e que, por isso mesmo, acabam ficando à margem do mainstream. Não me sentiria minimamente realizado se ficasse desperdiçando preciosas páginas de jornais com papinho furado, com pessoas que estão mais interessadas em dinheiro do que em conhecimento. É essa capacidade crítica, de refletir sobre o mundo que nos cerca e de criar linguagens que o modifique, que permeia as entrevistas presentes no livro.
DIOGO – As aberturas das entrevistas revelam tanto dos autores como as próprias falas deles. Mas há no livro acréscimos fundamentais como os comentários das circunstâncias em que as conversas aconteceram. Como foi recordar esses encontros? Acredita que mostrar os bastidores do jornalismo ajuda o leitor a entendê-lo (e a entender mais o artista, no caso)?
Ademir – Gosto de pensar que o bom jornalismo ajuda o próprio leitor a se entender. Quando nos deparamos com idéias consistentes, saímos mais enriquecidos. A arte não é um acessório de luxo. É algo essencial para nos encantar e até mesmo para nos perturbar. Nascemos sem saber nada. Isso é um fato natural. Mas morrer sem saber nada, isso é uma tragédia. Uma vida inteira desperdiçada. Recordar esses encontros foi algo extremamente estimulante para mim. Espero que seja para os leitores também.
DIOGO – Quais desses entrevistados foram especialmente difíceis de entrevistar (não no sentido do acesso, mas da dificuldade de fazê-los penetrar nas perguntas)?
Ademir – Sinceramente, com nenhum deles tive esse tipo de dificuldade. Acho que todos perceberam que eu estava interessado em levar uma conversa séria (não sisuda, mas séria). Não estava interessado em papinho furado. Talvez tenham se sentido à vontade também para falar coisas que normalmente não encontrariam espaço para falar.
DIOGO – Há algum escritor ou artista, vivo ou morto, com quem nunca conversou e que você gostaria de entrevistar?
Ademir – Muitos. Cazuza é um dos que lamento não ter entrevistado. Chico Science, outro. Raul Seixas eu entrevistei, mas lamentavelmente não pude publicar a entrevista no livro por falta de autorização dos familiares. E entre os vivos há tantos que penso em fazer um novo volume. Para citar apenas três, aí do Pernambuco: Fred Zero Quatro, Jomard Muniz de Brito e Lirinha. E certamente há muita gente pouco conhecida, que tem muito a dizer.
DIOGO – O que mudou na forma de se fazer entrevistas desde a década de 1980 até hoje?
Ademir – O jornalismo mudou. Está muito superficial. Houve um grande avanço tecnológico, mas o nível de informação despencou a patamares constrangedores. Outro problema é que a arte passou a ser vista exclusivamente como negócio. Isso afetou o nível da programação das rádios e televisões. O jornalismo e a indústria da comunicação não refletem a riqueza cultural de um país como o Brasil. Aqueles que controlam os meios de comunicação optaram pela mediocridade. É uma lástima.
DIOGO – Em seu livro de poemas A voz do ventríloquo, você trata de como fazer poesia hoje parece inútil. Por que ainda assim é importante escrever? A poesia é menos lida hoje?
Ademir – A linguagem verbal, que é a matéria-prima da poesia, está sendo esvaziada constantemente pela banalidade da publicidade, da indústria da comunicação e pelo marketing político. Há toda uma máquina em pleno funcionamento para tentar nos convencer a deixarmos de ser inteligentes. Nesse contexto, a poesia pode parecer um adereço completamente inútil. Mas, se pensarmos que a poesia tem um potencial altíssimo de resignificar as palavras da tribo, de desvendar outras camadas de percepção, de chamar a atenção para aspectos da realidade que poucos estão percebendo, então ela passa a ter uma importância fundamental. Não tenho certeza se a poesia é menos lida hoje, mas, com certeza, ela é mais desprezada pelos que detém o poder da indústria da comunicação. De todo modo, é impressionante como uma atividade humana tão “inútil” tem sobrevivido ao longo de milênios entre todos os povos do planeta.
DIOGO – Você mistura referências à cultura pop com reflexões estéticas na obra. Como vê que universos (ainda que cada vez menos) distintos podem dialogar? Existe também parte da noção xamânica da poesia, como Roberto Piva?
Ademir – Não tenho certeza se são exatamente referências à cultura pop o que transparece em muitos poemas. São referências a minha época e a minha formação. Não nasci e cresci na Grécia de Homero ou na Itália de Dante. Eles não tinham o cinema, o rock’n’roll, os desenhos animados. Eu cresci nesse mundo. É nele que vivo. Na minha formação, ter lido a Ilíada foi tão importante quanto ter visto Por um punhado de dólares, de Sérgio Leone. A poesia de Rimbaud, para mim, teve tanto impacto quanto a música de Frank Zappa. No poema “O Fim da História em Gotham City” faço uma crítica à ideia do “fim da História” propagada por Francis Fukuyama no final dos anos 80 (que consolidou o terreno teórico para o neoliberalismo), usando os personagens Batman e Coringa numa cidade totalmente degradada, dominada pelos narcotraficantes, pela corrupção e pela indústria do sexo. Dante falava de Beatriz como uma mulher quase mítica. Eu falo de Batman e Coringa como personagens de nossa época. Uso intencionalmente para provocar ruído naquela visão da alta poesia, da poesia de gabinete. Ao mesmo tempo, é normal. São as minhas referências. Quanto à noção xamânica, estou convencido de que ela é um componente de toda a arte. Há um lado de construção, de elaboração da linguagem, mas há também um lado incontrolável, que não sabemos exatamente de onde vem. Isso é justamente o que dá o giro da criação. Senão, estamos apenas repetindo o que outros já criaram. Nem tudo pode ser apreendido pelo racional. Há muitas coisas que não sabemos explicar.
“A poesia, atualmente, pode até ter um alcance pequeno no espaço, mas tem um grande alcance no tempo. Ela pode demorar um pouco mais para chegar até os interessados e os desinteressados, mas tem uma duração muito maior do que as musiquinhas que se ouve nesse verão e que ninguém mais lembrará no próximo outono.”
(O Diário de Maringá, Maringá/PR, 23 de outubro de 2012)
Wilame Prado
O jornalista e escritor Ademir Assunção, 51 anos, é velho conhecido aqui do norte do Paraná, principalmente por ser um dos editores da revista Coyote, de Londrina. Natural de Araraquara/SP, mora há 26 anos na capital paulista porque diz preferir “o inferno”. A grande São Paulo inspira diariamente Assunção a produzir freneticamente no campo do jornalismo e da literatura, principalmente porque acredita na força atemporal do texto como ferramenta crítica da sociedade contemporânea, cercada por violência, consumismo desenfreado e corrupção. São esses os principais assuntos ditos em forma de poesia durante sete noites por um ventríloquo em seu livro de poesia “A Voz do Ventríloquo” (Editora Edith, 110 páginas), lançado em 2012 após quatro anos sem publicar.
Este ano, aliás, tem sido frenético para Assunção. Além do título de poesia, lançou recentemente “Faróis no Caos” (Edições Sesc SP, 408 páginas) – obra que reúne 29 grandes entrevistas feitas por ele em 28 anos de atuação no jornalismo cultural. Com perguntas bem elaboradas direcionadas a, por exemplo, Paulo Leminski, Augusto de Campos, Hermeto Pascoal, Sebastião Nunes, Arrigo Barnabé, Luis Fernando Veríssimo e Caetano Veloso, Assunção traçou um panorama lúcido, crítico e contundente do cenário cultural brasileiro nas últimas três décadas. Acima de tudo, o livro é reflexo de pessoas envolvidas e engajadas artisticamente conversando sobre processos de produção e, claro, sobre a insanidade dos tempos de agora – muitas vezes possíveis de serem vividos somente por intermédio de uma espécie de fuga -, com o consumo de bons livros, boas músicas, peças de teatro marcantes ou filmes que inspirarem um bom papo.
Sobre as duas obras, Ademir Assunção concedeu entrevista, por email, ao Diário. Dentre outros assuntos, comentou seu processo criativo, falou sobre a força crítica da poesia e também sobre sua desilusão com o jornalismo que se pratica hoje.
WILAME PRADO -Por que poesia?
Ademir Assunção – Por que não?
WILAME -O que pensa quando está escrevendo poesia?
Ademir – Penso nas estrelas refletidas na negra pupila da viciada em crack que vejo na calçada do bar que frequento.
WILAME – Quem é o ventríloquo? Qual é a altura de sua voz?
Ademir – O ventríloquo pode ser múltiplos personagens: o suspeito de assassinato de um filme obscuro de Hitchcock, um deus hindu que só existe às sextas-feiras, das 23 à 0 hora, ou um Big Brother que sussurra vozes, que não são nossas, em nosso cérebro. A altura da voz do ventríloquo depende do nível de surdez do ouvinte.
WILAME – Uma crítica ao consumismo e à violência – questões presentes no cotidiano atual do nosso País – pode ser ouvida por meio da poesia?
Ademir – A poesia, atualmente, pode até ter um alcance pequeno no espaço, mas tem um grande alcance no tempo. Ela pode demorar um pouco mais para chegar até os interessados e os desinteressados, mas tem uma duração muito maior do que as musiquinhas que se ouve nesse verão e que ninguém mais lembrará no próximo outono. Até hoje, um poema como “Uivo”, de Allen Ginsberg, escrito na década de 50 do século passado, nos assombra, nos alerta, nos informa e nos torna muito mais inteligentes do que o noticiário político cotidiano. Portanto, a poesia, como uma elaboração de linguagem no mundo, tem uma força muito maior do que muitos suspeitam.
WILAME – Cite exemplos do cotidiano que costumam incomodar você a ponto de querer sentar no PC para fazer uma poesia.
Ademir – As escandalosas desigualdades sociais, a manipulação da fé pelos falsos profetas e a indústria do emburrecimento, funcionando 24 horas por dia por meio de ondas eletromagnéticas, me incomodam a ponto de me estimular a usar a linguagem contra isso tudo. Por que? Porque a passageira experiência humana neste planeta pode ser uma aventura muito mais estimulante do que a sucessão de miséria e escravidão física e mental a que a maioria dos pobres terráqueos está submetida – e essa escravidão acaba afetando a todos. Como diz Roberto Piva: “a repressão não é um atributo de um partido, nem de esquerda nem de direita, mas uma forma de fazer você esquecer da autêntica liberdade cósmica.” Mas não escrevo apenas movido por este incômodo. Escrevo também para celebrar esta autêntica liberdade cósmica, que pode trazer tanto esplendores quanto mistérios abissais.
WILAME – Em quase 30 anos de jornalismo, bem recortado com as entrevistas de “Faróis no Caos”, qual foi a melhor coisa que já te aconteceu? E a pior?
Ademir – A melhor coisa foi ter entrado no jornalismo em um período em que havia mais criatividade e ousadia. Através do jornalismo, e movido pela minha curiosidade artística, pude entrar em contato com algumas das pessoas mais inquietas, inteligentes e criativas do Brasil. Pude travar longos diálogos com elas e apresentar o pensamento vivo, as experiências humanas, e a visão de mundo dessas pessoas a uma gama enorme de leitores. Essa riqueza de conversas incríveis, no interior de noites estreladas ou de dias nublados, é que está no livro Faróis no Caos. Tenho certeza que esses faróis vão nortear muita gente que está por aqui e que ainda está por vir. O pior que me aconteceu? Foi ver o jornalismo virar as costas pra si mesmo e se tornar o que se tornou: algo enfadonho e avesso à ousadia.
WILAME – Para você, qual a melhor entrevista do livro?
Ademir – As entrevistas são diferentes umas das outras. Há visões convergentes, há visões divergentes, há choques de opiniões. Juntas, formam um mosaico de informações e conhecimentos muito valioso. São pessoas com experiências muito ricas, que influenciam a cultura brasileira, contando fatos importantes das suas trajetórias, lançando luzes sobre períodos recentes da história do país, refletindo sobre o próprio fazer artístico. Para mim, não há a melhor. Todas são essenciais.
WILAME – Se antigamente você entrevistava Leminski, Bortoloto e Augusto de Campos, quem gostaria de entrevistar nos dias de hoje, na área cultural?
Ademir – Eu continuo atuando no jornalismo e continuarei entrevistando outras pessoas. Mário Bortolotto e Augusto de Campos estão vivos, continuam ativos artisticamente. Leminski, mesmo falecido, continua exercendo enorme fascínio e influência nas artes brasileiras. Quer dizer: não pertencem a um período que possa ser chamado de “antigamente”. Tenho uma lista enorme de pessoas que ainda quero entrevistar, a maioria pouco conhecida do grande público: Lourenço Mutarelli, Reinaldo Moraes, Josely Vianna Baptista, Fred Zero 4, Rodrigo Garcia Lopes, Edvaldo Santana, Fausto Fawcett, Marcos Losnak, Nelson Capucho. Gosto de conversar com pessoas que têm muito a dizer. Gosto de abrir espaços para elas dizerem. Há pessoas incríveis, fazendo coisas incríveis, de norte a sul do país. O público merece conhecer suas ideias.
WILAME – Comente sobre os comentários inéditos nas longas entrevistas e os curtos espaços dos jornais.
Ademir – Todas as entrevistas tiveram grandes espaços nos jornais e revistas em que foram publicadas. Porém, todas eram longas conversas. Para o livro, sem a limitação de espaço de um jornal ou revista, reeditei todas elas, aproveitando trechos que haviam ficado de fora. Mas sem perder o rigor da edição. Sem querer aproveitar tudo. Uma das coisas que prezo muito nas entrevistas é a edição. É preciso saber onde cortar, é preciso saber tirar as redundâncias e, ao mesmo tempo, manter a fluência da fala, a contundência ou a sutileza dos raciocínios. Adoro editar diálogos. É uma técnica. É uma arte.
WILAME – Tendo a oportunidade de conversar com tanta gente boa, o que pensa a respeito do que já foi produzido culturalmente no País? E os reflexos, os faróis para os de hoje?
Ademir – A cultura brasileira é o resultado da miscigenação de muitas culturas. Temos uma riqueza enorme aqui. Mas temo que isto esteja se empobrecendo devido a ação constante das grandes mídias tradicionais, que estão rebaixando o nível de tudo em nome de um único Deus: o dinheiro. Muito dinheiro. Porém, há muita gente criando, pensando, elaborando coisas fantásticas. A função do jornalismo é torná-las conhecidas. É apresentá-las ao público. Uma pessoa não consegue sobreviver se alimentando apenas de sopinha rala. Intelectualmente, também não conseguiremos sobreviver nos alimentando apenas de celebridades construídas para durar uma estação.
WILAME – Leio no facebook você reclamando que os jornais e a imprensa de modo geral silenciaram sobre Faróis no Caos. Por que acha que isso acontece no País? Quais polêmicas que estão sendo evitadas e que são levantadas por você na obra?
Ademir – Não silenciaram, exatamente. O livro vem repercutindo bem, está despertando interesse. Especialmente fora do eixo Rio-São Paulo, onde vejo muita gente mais atenta e interessada. Claro que poderia repercutir muito mais. Talvez muitos profissionais que estão acomodados dentro do contexto atual do jornalismo, que abriram mão da sua capacidade crítica, se sintam incomodados com as reflexões contidas no livro. Penso que deveria ser o contrário, que esses profissionais se sentissem estimulados, que voltassem a exercer o jornalismo com fascínio, e não com fastio, que percebessem que há um público enorme querendo inquietação, querendo informação de verdade. Talvez algumas pessoas estejam querendo esconder Faróis no Caos para não se auto-questionar. Mas não tem jeito. O livro está no mundo, está andando, vai chegar em quem tem que chegar.
“Há pessoas que se dedicam única e exclusivamente a ganhar dinheiro. Há pessoas que se dedicam a mentir e roubar. Há pessoas que se dedicam à natação. Eu me dedico à poesia e à música. Essa é a razão da minha vida. Quando não estou escrevendo, estou lendo. A poesia é minha forma de oração, minha celebração do mistério.”
(Diário da Região, São José do Rio Preto/SP, 5 de setembro de 2012)
Daniela Fenti
Com um pé na música e outro na literatura, o jornalista Ademir Assunção é a atração inédita de hoje, na lanchonete do Sesc Rio Preto. Às 21h30 ele sobe ao palco com a banda Fracasso da Raça para se apresentar pelo projeto Sonora. O quarteto, formado por ele nos vocais, Marcelo Watanabe na guitarra. Caio Góes no baixo e Caio Dohogne na bateria, funde poesia, blues e rock’n’roll por meio de um lirismo provocativo.
O próprio nome da banda saiu de um dos poemas dele, que se refere à capacidade da espécie humana de criar tecnologias fantásticas, mas de fazer péssimo uso delas. É uma brincadeira e, ao mesmo tempo, uma preocupação. “Quando penso, por exemplo, na invenção da televisão, um meio de comunicação incrível, mas habitado por celebridades ocas e por toda a sorte de lixo para distrair e emburrecer as massas, penso que estamos realmente fadados ao fracasso”, lamenta Assunção.
Batizado como “As Ruas Estão Estranhas”, o show também tem tom crítico e alude à realidade das metrópoles. “Vivemos uma época de riquezas exageradas e misérias terríveis”. O poema que empresta título ao espetáculo refere-se a esse clima de violência crescente, impulsionado pelo consumismo e pela ganância. Seu último verso diz: “Deus está solto e dizem que ele está armado”.
Como resultado da ousadia no palco há um “ame ou odeie” na plateia. “Fazemos música, não um ritmozinho qualquer para enganar os incautos. Quem estiver interessado em forrozinho universitário, breganejo com letrinhas fuleiras ou coisas do gênero vai se decepcionar”, dispara o líder.
Em seguida, às 23 horas, Assunção lança o livro Faróis no Caos (edições Sesc). Ele já havia publicado cinco livros de poesia e dois de ficção, entre os quais Zona Branca, e tem outros três títulos inéditos.
A obra atual é uma seleção de entrevistas realizadas pelo autor em sua prática jornalística e publicadas desde os anos 1980 em grandes jornais e revistas de circulação nacional.
Seu lançamento ocorreu no dia 28 de agosto, no Sesc Pinheiros, em São Paulo. No evento, houve um debate sobre jornalismo cultural com o dramaturgo Mário Bortolotto e o também jornalista Maurício Kubrusly.
Atualmente, ele divulga este trabalho e o também recém-lançado A Voz do Ventríloquo, além de trabalhar na pré-produção do segundo CD e de um volume para crianças.
Confira abaixo os principais trechos da entrevista concedida ao Diário da Região.
DANIELA FENTI – Quantas entrevistas compõem Faróis no Caos?
Ademir Assunção – O livro tem entrevistas com 29 escritores, compositores e um ou outro artista de outra área. Entre eles, estão os poetas Paulo Leminski, Augusto de Campos, Roberto Piva, Glauco Mattoso, Haroldo de Campos, Chacal, os escritores Luis Fernando Veríssimo, Mário Bortolotto, Márcia Denser, Nelson de Oliveira, os compositores Luiz Melodia, Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção, Caetano Veloso, Arnaldo Antunes e Hermeto Pascoal, além do ator Grande Otelo. Era pra ter saído também uma entrevista histórica com Raul Seixas, feita em 1987, dois anos antes da sua morte, mas não conseguimos a autorização dos herdeiros a tempo. Procurei entrevistar artistas radicais, que estabeleceram uma relação profunda e inovadora com o mundo.
DANIELA – Em que período as entrevistas foram publicadas originalmente?
Ademir – As entrevistas foram publicadas ao longo de 26 anos, nos vários jornais e revistas em que trabalhei, como Folha de São Paulo, O Estado de S. Paulo, Jornal da Tarde, Revista Isto É e Revista Coyote, da qual sou um dos editores atualmente, ao lado dos poetas Marcos Losnak e Rodrigo Garcia Lopes. A primeira entrevista, com Caetano Veloso, é de 1985. A última, com o poeta Geraldo Carneiro, de 2011.
DANIELA – Quais os critérios para a escolha delas?
Ademir – A criação deste livro foi movida mais por necessidade do que por critério. Eu estava muito descontente com a superficialidade do jornalismo cultural de uns tempos pra cá. Pedi demissão de um emprego de sete anos, aluguei uma casa numa praia semi-deserta, levei várias pastas com as entrevistas originais e passei dois meses trabalhando diariamente, sem televisão, sem telefone, sem internet, sem nada que desviasse minha atenção. Sabia que tinha nas mãos um material muito interessante, disperso em várias publicações, que seria importante reunir em livro e recolocar em circulação. Mas confesso que fiquei surpreso quando comecei a perceber o resultado final. Era muito mais denso do que eu imaginava.
DANIELA – Qual é a sua preferida?
Ademir – Não tenho nenhuma entrevista preferida. Todas são densas, profundas e apresentam visões de mundo bem peculiares. Há também informações preciosas sobre o contexto em que determinadas experiências artísticas surgiram e se desenvolveram. Porém, há visões antagônicas sobre os processos artísticos e sobre o ser e o estar no mundo. As visões de Augusto de Campos e Roberto Piva, por exemplo, são frontalmente antagônicas. Um privilegia o racionalismo, a disciplina, o rigor; o outro o irracionalismo, o desregramento, a energia anárquica. Ambas são fascinantes. Nunca estive a procura de consensos. Penso que o atrito e o confronto de ideias geram movimento.
DANIELA – Por que o poeta resolveu “namorar” a música?
Ademir – Minha poesia, desde o início, sempre foi marcada pela musicalidade. Trabalho bastante a sonoridade e o ritmo dos poemas. Também tive muita influência dos poetas ligados a música, desde os provençais do século XII até Bob Dylan e Sérgio Sampaio.Talvez por isso alguns compositores perceberam que muitos poemas meus poderiam ser musicados e cantados. Daí surgiram minhas parcerias com Itamar Assumpção, Edvaldo Santana, Madan e Zeca Baleiro.
DANIELA – Como definiria o estilo do grupo?
Ademir – Essencialmente, é uma fusão de poesia com blues e rock’n’roll. Nossas influências vão de Frank Zappa a John Lee Hoocker, passando por Itamar Assumpção e Chico Science. Mas misturamos todas essas influências e fazemos um som próprio, com poemas que falam sobre as belezas e os horrores do mundo em que estamos vivendo.
DANIELA – Como é sua rotina, atualmente? Quanto de música e de poesia permeia nela?
Ademir – Há pessoas que se dedicam única e exclusivamente a ganhar dinheiro. Há pessoas que se dedicam a mentir e roubar. Há pessoas que se dedicam à natação. Eu me dedico à poesia e à música. Essa é a razão da minha vida. Quando não estou escrevendo, estou lendo. A poesia é minha forma de oração, minha celebração do mistério. Nas horas vagas, me dedico a descolar “algum trocado pra dar garantia”. E a me divertir, claro, fazendo sexo, conversando com os amigos, bebendo ou assistindo a um jogo do Santos.
“Não podemos esquecer que há velhos problemas ainda longe de soluções. E o principal deles é a injusta e insana concentração de bens gerados pela raça humana. A voracidade da sociedade industrial e a concentração de riquezas estão nos levando ao caos social e ao esgotamento catastrófico dos recursos do planeta.”
(Jornal Rio Paranazão, Guaíra/PR, junho 2007)
Cristian Aguazo
Musical, técnico e de atitude, Ademir Assunção, o poeta que escreve com sangue a poesia de nosso tempo, é o entrevistado do Jornal Rio Paranazão. Desde nosso primeiro contato, Ademir Assunção se mostrou comunicativo, parceiro, atencioso. Ao comentar sobre a pouca divulgação da poesia, sobre a escassez de políticas para fomento à leitura, Ademir logo se prontificou: enviou livros para mim e para a carente Biblioteca Pública de Guaíra. Com as cores da diversidade, projetou, como em telas de cinema, seu technicolor, e pintou uma poesia de cor viva, mas também com a realidade em preto e branco e china blue. E de blues em blues, pelos cortes precisos e viradas de cena, avançamos por sua poética cinematográfica, pela profundidade das águas mitológicas, pelo porte zen, pela corrosiva escrita da sociedade globalizada e pelas marés de signos publicitários.
Ademir é um poeta crítico, antenado, que domina a escrita de nosso tempo. Ademir é, também, um dos melhores poetas da nova geração. Formado em jornalismo pela UEL, editor da revista Coyote, o autor que hoje vive em São Paulo é dica mais do que recomendada para os poetas-leitores, para os poetas-pesquisadores, para os poetas-alunos e para os poetas-poetas. Afirmo isso depois de ler os livros “Cinemitologias” e “Zona Branca” (este último, excelente), e depois de ouvir o belo disco “Rebelião na Zona Fantasma”.
CRISTIAN AGUAZO – Em seus poemas percebi que existe uma “problematização” do mundo contemporâneo. Essa discussão se dá através da linguagem, dos temas, das metáforas. Nessa riqueza, nessa diversificação, existe a utilização (influências) de recursos das vanguardas (concretismo, por exemplo). Isso é bastante visível e muitas vezes chato na poesia atual. Com você, ficou bom. Isso porque você não perde o “fio”, não deixa de fazer versos sem um propósito. Sua poesia tem valor discursivo muito grande, mesmo quando não se vale de versos, digamos, “mais discursivos”.
Ademir Assunção – Não sou de falar muito (exceto quando encho a cara). Minha poesia tende mais para a síntese do que para um estilo discursivo. Mesmo quando escrevo poemas mais longos, procuro condensar a linguagem. Procuro dizer o máximo usando o mínimo de palavras. Para mim, poesia é como um asteróide em estado absoluto de condensação, prestes a explodir e espalhar fagulhas para todos os lados.
CRISTIAN – Ao ler a orelha do seu livro tive a impressão de que seria um livro diferente, cheio de ‘aventuras’ e tal. Confesso que até nem gostei muito. Não foi o que percebi dentro do livro. A obra em nada explora aquele tipo de linguagem, ou talvez explore, mas de uma maneira poética e sem o apelo ao mero entretenimento. Quando terminei de ler, entendi que a idéia do livro era usar uma linguagem heterogênea e, assim, percebi que aquela linguagem cumpria um outro objetivo. A intenção era uma linguagem híbrida, que passa pelas técnicas eruditas, que sofre uma influência do cinema, das mitologias (indígenas, gregas, orientais), da cultura pop, da TV, da música. Estou certo?
Ademir – Na orelha do livro procurei contextualizar a Zona Branca como um presídio de segurança máxima para onde são enviados os rebeldes, dissidentes e arruaceiros. Os que são mandados para esse presídio fora do espaço-tempo, “percebem a grosseira manipulação de fatos e idéias, responsável pelo ostracismo de criadores brilhantes e pelo sucesso de clones descartáveis”. Com isso, procurei criar uma metáfora do isolamento dos artistas mais radicais no mundo contemporâneo. Eu queria um texto num clima de ficção científica, avesso ao tradicional blablablá retórico das orelhas de livros, e que funcionasse como uma crítica feroz da ideologia do entretenimento, essa ideologia babaca que esvazia e manipula o significado da arte, da cultura, do discurso político. Minha poesia é contrária a esse tipo de ideologia. E ela tem influências explícitas de todas essas linguagens que você cita em sua pergunta. Quanto a isso, sim, você está certo.
CRISTIAN – Roger Chartier estuda os novos desafios da escrita em nosso tempo (a relação do leitor com novos veículos, como a internet). Stuart Hall fala das novas identidades, da hibridização das identidades. Novos problemas estão postos na sociedade, embora os velhos problemas sejam pertinentes e ainda permaneçam em pauta. E a poesia? Qual é, a seu ver, o principal reflexo destes novos dados (conquistas e problemas) na poesia contemporânea?
Ademir – O tráfego gigantesco de informações dos dias atuais (muitas delas sem credibilidade nenhuma), os recursos de computação gráfica, a rapidez dos transportes, a facilidade de comunicação via internet, tudo isso afeta a escrita, claro. Há muitos recursos novos e interessantes que podem ser utilizados pelos artistas de hoje. Mas não podemos esquecer que há velhos problemas ainda longe de soluções. E o principal deles é a injusta e insana concentração de bens gerados pela raça humana. A voracidade da sociedade industrial e a concentração de riquezas estão nos levando ao caos social e ao esgotamento catastrófico dos recursos do planeta.
CRISTIAN – Ademir, quais os poetas que mais têm chamado sua atenção?
Ademir – São os rebeldes, dissidentes e arruaceiros. Aqueles que sabem muito bem que a linguagem poética é poderosa, capaz de modificar pensamentos e percepções. Gosto daqueles que não apenas nomeiam o fogo, e sim, botam a mão no fogo, experimentam o fogo, sem medo de se queimar. Arte não é um bom território para espíritos medrosos e acomodados.
CRISTIAN – Conte-nos sobre o seu trabalho como editor da Revista Coyote.
Ademir – Somos três editores da Coyote: Marcos Losnak, Rodrigo Garcia Lopes e eu. Nós três somos poetas e jornalistas. E, sobretudo, amigos. Temos visões diferentes sobre muitas coisas, mas temos também visões semelhantes sobre muitas outras. Cada um tem profundo interesse nas pesquisas, percepções e referenciais dos outros. Isso faz com que o trabalho conjunto funcione muito bem. Nós fazemos a revista que gostaríamos de ler. Costumo dizer que a Coyote é uma revista autoral e que os editores funcionam como maestros, regendo uma sinfonia executada por vários poetas, prosadores e pensadores.
CRISTIAN – Tenho tendência a não gostar de poesia que faz “experimentalismo por experimentalismo”. Uma poesia que não se preocupa com o conteúdo (não estou falando daquela visão de arte social ortodoxa, “marxista-positivista”), que se perde em frigidez, não me apetece. Também existem aqueles poetas que são bons teóricos, têm milhares de leituras, mas fazem versos “frios”, dissertam sobre filosofia e ciência, mas não agradam. É cada vez mais comum encontrar esse tipo de poesia. E a crítica elogia, porque do ponto de vista formal um poema desses é ok. Qual sua opinião?
Ademir – Minha visão é muito semelhante a sua. O termo “experimental” está organicamente vinculado às vanguardas do século 20. E todas elas partiram de uma atitude de inconformismo e de rompimento diante da linguagem. Pra quê? Pra tentar fazer com que a linguagem, cada um a seu modo, rugisse com mais ferocidade ou se abrisse para outras gamas de percepções humanas. Acontece que muitas das descobertas ou das experimentações das vanguardas foram diluídas. Alguns poetas e prosadores ficaram apenas na crosta e petrificaram organismos que são radicalmente vivos. Eu penso que a poesia precisa manter esse espírito de inconformismo radical para se manter viva. O experimentalismo pelo experimentalismo, ou o falso experimentalismo, pode acabar levando a uma atitude parnasiana, em que a linguagem poética se torna uma estrutura forrada de badulaques que não funcionam.
CRISTIAN – Se de um lado existe na poesia uma tendência ao haicai, aos versos curtos, existe também anacronismo nos versos de poetas que se voltaram, em releitura os melhores, para uma dicção clássica. A poesia em nosso tempo se cansou das regras e agora aposta nessa multifacetada realidade?
Ademir – Verso curto não quer dizer necessariamente haicai. Marcial também usava versos curtos em seus epigramas. Oswald de Andrade usou versos curtos em seus poemas-minuto. E cada um tem características bem diferentes. O verso curto pode ser uma experiência tão intensa quanto um poema longo, um poema narrativo. Não é o tamanho do poema que o torna interessante ou não. Quanto à dicção clássica, é preciso entender melhor sobre qual dicção clássica está se falando. A dicção clássica da Grécia, da Roma antiga, da China, do Egito? O haicai é de um período, digamos, clássico do Japão. De qualquer modo, vivemos hoje numa realidade, num mundo, num acúmulo de conhecimentos completamente diferentes dos períodos clássicos. Como escrever uma poesia “clássica” tanto tempo depois? E pra quê? Seria um tanto ridículo um poeta “clássico” dos dias de hoje escrever um poema épico sobre a Guerra de Tróia, quando temos a Guerra do Iraque, a violência urbana e a indústria de manipulação de informações bem debaixo dos nossos narizes. É possível reler o passado, mas não é possível voltar ao passado.
CRISTIAN – Como a poesia paranaense está representada no cenário nacional?
Ademir – Não consigo ver a poesia dividida por Estados. Estamos num planeta, no interior de uma galáxia, dentro do sistema solar, girando num imenso universo. Somos migalhas gravitando num gigantesco mistério. Nesse contexto, como saber de que modo a poesia paranaense está representada no cenário nacional?
CRISTIAN – Curti o seu cd. Achei de uma beleza ímpar. As letras, as melodias, tudo muito interessante. Como foi trabalhar com os músicos? Quais as suas influências? Fale um pouco sobre o seu disco…
Ademir – Desde a publicação do meu primeiro livro, LSD Nô (1994), eu queria transformar muitos daqueles poemas, impressos no espaço de uma folha em branco, em experiências orais, inscritas no tempo da voz e da música. Quando escrevo, procuro me manter bem atento ao ritmo das frases e à musicalidade das palavras. Talvez seja influência de minhas intensas leituras dos poetas provençais (via traduções de Augusto de Campos) e das minhas audições de música popular (o rock’n roll incluído nisso). Antes da gravação do cd, montei um espetáculo com dois músicos muito importantes nesse trabalho: o violonista Madan e o percussionista Ricardo Garcia. Eu não queria simplesmente “recitar” poemas sobre um “fundo musical”. Queria que linguagem poética, linguagem oral e linguagem musical se fundissem de tal maneira que se tornassem uma outra coisa, mais orgânica e inseparável. Demorei anos para chegar nessa linguagem e quando resolvi gravar o cd tive também a ajuda do guitarrista Luiz Waack, um músico excelente, que foi da banda Isca de Polícia, do lendário Itamar Assumpção. A contribuição desses músicos foi fundamental para Rebelião na Zona Fantasma ser o que é.
CRISTIAN – Gostei muito (muito mesmo) das músicas “Noite e Dia”, “Escrito a Sangue” e “Pó”. Outra coisa: acho interessante a sua postura. Você tira aquela visão (ainda muito comum em nossa sociedade) do poeta como um “otário”, um nefelibata. Essa mistificação aconteceu muito na época dos românticos, mas aquilo foi em um outro contexto histórico. Por que essa visão do poeta romântico ainda é referência até hoje?
Ademir – Talvez porque a maioria das pessoas conheça muito pouco de poesia.
CRISTIAN – “Zona Branca” é inspirado em uma música de Frank Zappa. Rock, blues, jazz (Jazz Kamaiurá, título de um capítulo do livro), qual a importância destes estilos para sua poesia?
Ademir – Eu cresci ouvindo rock, blues, jazz, música de vanguarda, música brasileira, ao mesmo tempo que lia Pound, Nietzsche, McLuhan, Bukowski, Alan Moore, John Fante, Dostoievski, Paulo Leminski, Bashô, Rimbaud e uma infinidade de outros autores, pensadores e estilos artísticos. Toda essa “sopa cósmica” formou o que sou hoje. É natural que esteja embutida na minha vida e na minha poesia. Sou um poeta com os dois pés no meu próprio tempo.
CRISTIAN – Em “Zona Branca” parece que existe uma percepção que explora imagens e sonoridades que mesclam força, leveza, ternura e até tristeza. O poema “Zoom” é um exemplo: O sol aponta o cocuruto no ombro da manhã/ espadas de luz sangrando o escuro/ bombeiros, sirenes, crianças, praças/ nenhum incêndio queima esta lágrima. Muito legal isso, mas não li isso em “Cinemitologias”… comente.
Ademir – Cada livro é diferente do outro. Parte significativa das nossas vidas nós passamos dormindo. E enquanto estamos dormindo nossas mentes continuam funcionando, reprocessando ou reeditando, pra usar um termo contemporâneo, símbolos, conteúdos e conhecimentos. Tudo isso se expressa através dos sonhos. Tenho grande interesse tanto pela estrutura quanto pelo conteúdo dos sonhos — e hoje sabemos que estrutura e conteúdo estão isomorficamente fundidos. Cinemitologias tem a ver com esse meu interesse pelos sonhos. Não sou o primeiro a me interessar por eles. Os surrealistas falaram muito sobre isso. A maior parte da poesia e da prosa de Jorge Luis Borges parece um intrincado sonho. Em Cinemitologias tentei resgatar imagens de sonhos, fragmentos de mitologias e flashes de filmes, utilizando uma linguagem de prosa poética. Eu queria cavoucar meu inconsciente e trazer de lá imagens poéticas.
CRISTIAN – Deixe um recado para os nossos leitores.
Ademir – Procurem manter os olhos bem abertos.
“Eu me considero um cego no meio de um tiroteio de escopetas, semi-automáticas e uzi-israelenses. É que moro do lado de um morro boca quentíssima. Numa das entradas um trafica apelidado Nico Mandíbula até teve a manha de mandar esculpir um totem de madeira com a famosa frase do Grande Sertão Veredas: ‘Se Deus vier, é melhor que venha armado’”.
(Revista Bula – março de 2007)
FLÁVIO PARANHOS – O que você lê habitualmente? E o que ouve e vê (cinema)? Tudo isso te assombra enquanto escreve?
Ademir Assunção – Leio Paulo Coelho e assisto a Dois Filhos de Francisco incessantemente. Isso me leva a um estado de irritação mediúnica propício para despertar em mim a faísca da escrita. Quando este método não funciona, ligo a televisão e assisto a programas evangélicos. É tiro e queda: a inspiração baixa na hora, principalmente se estiver rolando aquelas animadas sessões de descarrego. Mas devo confessar que isso às vezes me assombra, sim. Às vezes fico com tanto medo que durmo com as luzes todas acesas. Antes, porém, bato uma bronha pra relaxar.
FLÁVIO – No final do livro Adorável Criatura Frankenstein há esta informação a seu respeito: “Poeta, jornalista e prosador (…)”. Como é isso? Você se considera primeiro poeta, depois jornalista e por último prosador?
Ademir – Na verdade, eu me considero um cego no meio de um tiroteio de escopetas, semi-automáticas e uzi-israelenses. É que moro do lado de um morro boca quentíssima. Numa das entradas um trafica apelidado Nico Mandíbula até teve a manha de mandar esculpir um totem de madeira com a famosa frase do Grande Sertão Veredas: “Se Deus vier, é melhor que venha armado”.
FLÁVIO – A leitura de Adorável Criatura Frankenstein dá vontade de ler mais coisa sua, só que não poesia, mas sim romance e/ou contos. Esse livro não deixa entrever um poeta. Tem certeza de que a ordem acima está correta (1- poesia, 2-jornalismo, 3- prosa)?
Ademir – Mas eu me esforcei tanto pra que o Frankenstein deixasse entrever um poeta. Sou um bosta mesmo.
FLÁVIO – Adorável Criatura Frankenstein é do caralho, mas tem de ser lido de enfiada (um psicanalista diria que estou com fixação fálica, mas juro que não). Não dá vontade de largar (atenção: cuidado com a rasgação de seda, daqui a pouco eu peço um emprego ou dinheiro emprestado). Mas tem de ser lido de gut-gut. Se o cidadão ler no crediário, muitas prestações, arrisca não entender, portanto não apreciar. Você sabia desse risco, foi consciente? (Admitindo que eu esteja com razão, evidentemente).
Ademir – Olha, vamos parar com esse papo furado e ir direto ao assunto: me empresta duzentas pratas? Todo mundo sabe que escritor só se fode nesse país, não sabe? Então, tem duzentinho?
FLÁVIO – O que aconteceu com a coleção Lê Prosa da Ateliê? Ainda existe?
Ademir – Não sei bem ao certo. O Marcelino Freire é que é o idealizador da coleção. Vou perguntar a ele na próxima vez que encontrá-lo.
FLÁVIO – Além da revolução tecnológica, qual a distância da poesia dos anos 70 para a poesia de agora?
Ademir – Quinze centímetros, segundo as últimas medições científicas do Departamento de Engenharia Lingüística da USP.
FLÁVIO – A idéia do blog, do cyber livro não é, na verdade, uma repetição ou um aprimoramento da poesia marginal, naturalmente com um alcance maior?
Ademir – Acho que poetas e blogueiros são todos uns marginais perigosíssimos que deveriam estar trancafiados no presídio de segurança máxima de Presidente Epitácio, junto com o Fernandinho Beira Mar, o Gugu Liberato e a Luciana Jimenez. Aliás, se ela prometer ficar de boca fechada, eu topo dividir a minha cela.
FLÁVIO – Se fosse mandar para uma viagem sem volta, qual poeta seria o primeiro da fila?
Ademir – Eu mesmo. Principalmente se a passagem for pro Hawai ou Honolulu, com todas as despesas pagas e uma aposentadoria vitalícia.
FLÁVIO – O que fazer quando o inferno astral não passa?
Ademir – Comprar umas brejas bem geladas no bar da esquina e curtir o inferno. É aconselhável deixar o ventilador ligado.
FLÁVIO – Se o que sobra da literatura é literatice, o que sobra dos blogs é exatamente o quê?
Ademir – Latas de sardinha vazias e caroços de azeitonas.
“Eu adorava ouvir as narrativas orais das minhas tias. Elas contavam histórias de terror. Eu prestava muita atenção na fala. Gosto muito de música popular também, da maneira como os cantores dividem os versos, transformam o ar que vem dos pulmões em palavras e as lançam no espaço, como uma chuva de sons carregados de significados.”
(Jornal da Paraíba, João Pessoa/PB, 21 de maio de 2006)
Astier Basílio
O suplemento AUGUSTO inaugura uma série de entrevistas com escritores contemporâneos de todo o Brasil. Romancistas, contistas e poetas falarão sobre o seu trabalho. O primeiro entrevistado é o poeta Ademir Assunção.
ASTIER BASÍLIO – Em Rebelião na Zona Fantasma você uniu música à poesia, num tom não muito utilizado. Não foi um recital, tampouco você escreveu letras de músicas. Quando foi que surgiu a idéia do CD e quais foram seus objetivos?
Ademir Assunção – Acredito que desde o início minha poesia é fortemente marcada pela musicalidade. Levei a sério a afirmação de Ezra Pound de que a poesia começa a definhar quando se afasta da música. Sempre gostei de trabalhar as rimas internas nos versos, a prosódia, as assonâncias, aliterações, ecos. Acho que isso vem desde a minha infância. Eu adorava ouvir as narrativas orais das minhas tias. Elas contavam histórias de terror. Eu prestava muita atenção na fala. Gosto muito de música popular também, da maneira como os cantores dividem os versos, transformam o ar que vem dos pulmões em palavras e as lançam no espaço, como uma chuva de sons carregados de significados. Tudo isso se impregnou na minha linguagem. De alguma forma era quase natural que algum dia eu buscasse esse registro oral da poesia. Busquei durante anos uma linguagem que unisse poesia e música. Não queria fazer simplesmente uma leitura linear, convencional, com instrumentistas fazendo fundo musical. Queria uma coisa orgânica, em que a poesia e a música estivem dentro uma da outra, como o esqueleto e a carne em um corpo. O violonista Madan e o percussionista Ricardo Garcia foram muito importantes para que eu encontrasse o tom desse trabalho. Eles criaram comigo as bases. Depois, em estúdio, o guitarrista e arranjador Luiz Waack também teve uma participação fundamental. Ele traduziu minhas idéias em estruturas musicais e as deixou ainda mais ricas do que eu imaginava. Eu queria fazer um disco de poesia mas de tal forma que um músico ouvisse e pensasse: “caramba, esses caras não estão brincando”.
ASTIER – Você conseguiu a medida correta entre música e poesia, sem que uma sobrepujasse a outra. Houve algum cuidado especial para isso?
Ademir – A idéia era essa mesma: uma linguagem em profundo diálogo com a outra. Trabalhei o tempo todo com isso em mente e os músicos compreenderam muito bem. Tivemos um cuidado em todos as etapas, desde a gravação das bases, das vozes, até a mixagem — que é algo muito trabalhoso. A gravação de um disco envolve muita técnica. Você pode ter idéias fortes mas se não tiver um domínio técnico tudo pode ir por água abaixo. O que era pra ser um vendaval acaba se transformando numa brisa inofensiva. Por outro lado, não adianta ter domínio técnico mas não ter idéias fortes. Nesse caso, pode acabar em algo como uma mulher com o corpo perfeito, mas totalmente vazia.
ASTIER – A forma como você interpreta, seja num canto meio rap, meio jazz, já dá a idéia de que há uma estrutura de show no disco. Você tem se apresentado com os músicos?
Ademir – Veja bem: não sou um cantor, sou um poeta. O tempo todo eu estou “falando”, ou, talvez, “entoando” poesia. Como mudo as intensidades, a duração dos versos, e os coloco dentro de compassos musicais, às vezes dá a impressão de um canto-falado. Mas é só impressão. Quanto aos shows, esse trabalho surgiu primeiro nos palcos. Eu, Madan e Ricardo Garcia fizemos várias apresentações. Fomos testando o que funcionava e o que não funcionava. Começamos os shows em 1996 e só fui iniciar as gravações em 2003, sete anos depois. Quando chegamos ao estúdio, a linguagem estava bem madura. Agora estamos voltando ao palco, com banda, baixo, bateria, guitarra e piano, com uma sonoridade muito mais potente.
ASTIER – Sua poesia não abre mão das experimentações vanguardistas, sabendo aproveitar bem as heranças literárias. Mas, nem sempre é possível conciliar musicalidade à experimentação, na poesia. Qual o segredo para conseguir se sair bem nestas duas vertentes?
Ademir – Não tenho certeza se existe um segredo. A personalidade artística de uma pessoa é formada por inúmeras circunstâncias, por leituras, experiências de vida, trabalho obsessivo com a linguagem. Eu não tenho uma formação acadêmica. Sempre tive liberdade de me mover em várias direções. Ao mesmo tempo que gosto da música vanguardista de Varése, adoro as histórias em quadrinhos de Will Eisner. Há muitas fontes de informação e de estímulos para quem quer se manter acordado. Talvez esse seja o segredo: se manter atento às coisas, tentar compreender a fundo como os outros desenvolveram suas linguagens, e não resvalar superficialmente em todas as coisas. Rótulos não significam nada. O que importa são as experiências mais profundas e radicais.
ASTIER – Você tem mais projetos que envolva música e poesia? Como tem sido a recepção ao seu trabalho?
Ademir – Tenho algumas idéias. Penso em fundir, num próximo trabalho, a rítmica de sutras zen-budistas com jazz e poesia. Algo com piano, trompete e guitarras entre o blues e o jazz. Mas ainda quero trabalhar mais esse cd, divulgá-lo, fazer bastante shows, fortalecer o núcleo de músicos que estão trabalhando comigo. A recepção tem sido muito boa. Tanto de crítica quanto de público. Esse trabalho está me mostrando mais uma vez que esse negócio de que as pessoas não gostam de poesia é papo furado. Depende de qual poesia. E depende de quais pessoas.
ASTIER – Vamos falar um pouco sobre o Movimento Literatura Urgente. Como está o movimento hoje e quais são as perspectivas para o grupo?
Ademir – Embora ainda não tenhamos conseguido quase nada na prática, tenho certeza que o lançamento do Manifesto Temos Fome de Literatura, as propostas contidas nesse manifesto (que podem ser acessadas no site www.literatura-urgente.com.br) e a própria movimentação que isso gerou, é algo muito positivo. A semente foi lançada e espero que outros venham e ajudem a levá-la adiante. No momento, eu estou um pouco cansado. Sempre disse que nunca quis ser líder de nada. O núcleo mais atuante acabou sendo eu, Ricardo Aleixo, Claudio Daniel e Marcelino Freire. Não conseguimos ainda incentivar os escritores a criarem outros núcleos por todo o Brasil. Não existe uma fórmula. Acho que uma possibilidade é a criação de leis de fomento à literatura, como existe aqui em São Paulo o Programa de Fomento ao Teatro. Esse programa gerou uma movimentação incrível no teatro independente. Seria muito interessante que os escritores criassem núcleos, trocassem informações e elaborassem leis semelhantes para serem apresentadas nas Câmaras Municipais, Assembléias Legislativas e no Congresso Nacional. Isso não é nada absurdo. É possível. Em Londrina há o Fundo Municipal de Cultura, que em quatro anos possibilitou uma agitação cultural enorme na cidade. Em Porto Alegre também existe. O Estado do Mato Grosso acabou de aprovar lei semelhante. Há experiências espalhadas por aí. É que os escritores não sabem.
ASTIER – Quais as principais dificuldades a serem vencidas pelo Movimento Literatura Urgente?
Ademir – Acho que a principal dificuldade é convencer os próprios poetas e escritores a deixarem de conformismo e partirem para a ação. Muita gente não compreendeu o que estamos falando. Pensam que estamos “pedindo” dinheiro para o governo. Não é nada disso. Estamos falando de políticas públicas, como existem para o teatro, para o cinema. Com muito menos dinheiro é possível criar uma explosão literária, com encontros nacionais e internacionais, revistas, festivais de poesia, gravações de cds. O desenvolvimento da linguagem é assunto dos próprios poetas e escritores. Mas a difusão e o fomento à literatura, na minha opinião, é assunto que envolve políticas públicas. É isso que os escritores não compreenderam ainda.
ASTIER – Em todas as áreas culturais, cinema, música, teatro, certamente, literatura é a que menos recebe investimento. Há alguma razão para isso? Qual seria a sua explicação?
Ademir – Falta de consciência dos escritores. Essa a explicação. Quando passarmos a elaborar propostas e a batalharmos por elas, as coisas vão mudar. Tenho certeza disso. Os escritores ficam esperando a boa vontade de algum Secretário de Cultura. Como cantou Chico Buarque: “espere sentado/ ou você se cansa/ está provado/ quem espera nunca alcança”.
ASTIER – Você está trabalhando em algum projeto atualmente?
Ademir – Estou trabalhando, muito lentamente, em dois livros, um de prosa poética, outro de poesia. Sem pressa. Projetos literários não são tudo na vida. Meu maior projeto é continuar vivo e atento. O resto é conseqüência disso.
“Os meios de comunicação estão fazendo uma senhora lavagem cerebral no consciente e no inconsciente coletivo. As rádios funcionam na base do jabá, para tocar merda o dia inteiro. A televisão foi invadida por peruinhas, pastores evangélicos e jornalistas vergonhosamente desinformados ou manipuladores. É um verdadeiro circo de horrores.”
(Site Contrainformação, março 2003)
Fabiano Calixto
Ademir Assunção é uma das vozes mais intensas da poesia brasileira contemporânea. Publicou os livros “LSD Nô” (poesia, Iluminuras, 1994), “A Máquina Peluda” (prosa experimental, Ateliê Editorial, 1997), “Cinemitologias” (proesia, Ciência do Acidente, 1999) e “Zona Branca” (poesia, Altana, 2001). Foi um dos editores da revista de artes Medusa e atualmente edita, com Marcos Losnak e Rodrigo Garcia Lopes, a revista Coyote. É também letrista e tem parcerias com Itamar Assumpção, Edvaldo Santana, Madan, entre outros. Participou de exposições de poesia visual na Austrália, Portugal e França. Seus poemas figuram nas antologias “Outras Praias – Other Shores” (Iluminuras, 1998), organizada por Ricardo Corona, e “Na Virada do Século – Poesia de Invenção no Brasil” (Landy, 2002), organizada por Claudio Daniel e Frederico Barbosa.
FABIANO CALIXTO – Ademir, sua poesia é ácida, assim como sua opinião sobre as Letras e a cultura em geral na terra pindorama. Poderia nos dizer do que a poesia é capaz?
Ademir Assunção – A poesia é capaz de virar o mundo de uma pessoa de cabeça para baixo. Pelo menos foi o que aconteceu comigo, quando conheci Rimbaud, Ezra Pound, Cruz e Souza, Li Tai Pô, Paulo Leminski, por exemplo. Dá para imaginar o impacto na cabeça de um moleque de 16 anos ao ler algo assim?:
Até logo, até logo, companheiro,
Guardo-te no meu peito e te asseguro:
O nosso afastamento passageiro
É sinal de um encontro no futuro.
Adeus, amigo, sem mãos nem palavras.
Não faças um sobrolho pensativo.
Se morrer nessa vida não é novo,
Tampouco há novidade em estar vivo.
Imagine então descobrir que esses versos do poeta russo Iessiênin foram escritos com o próprio sangue, nas paredes de um hotel! Foi seu último poema. Ele cortou os pulsos e escreveu sua despedida com o próprio sangue. A partir do momento que tomei contato com a poesia, falei para mim mesmo: não vou ser um bundão. Não vou ser um escravo. Eu agradeço a todos aqueles que incendiaram minha vida com a rebelião da poesia. Quanto à acidez dos meus escritos e das minhas opiniões… Olha, eu procuro escrever o que eu penso. Com intensidade. Com coragem. Com informação. Acho que ácido mesmo é o sistema financeiro que corrói a vida de milhões de pessoas em todo o mundo sem a menor dor de consciência.
FABIANO – Um dia você me falou das leituras que faz em escolas da rede pública estadual, dizendo que o pessoal, quando instigado, se interessa e muito. Fale-nos um pouco disso.
Ademir – Cara, os meios de comunicação estão fazendo uma senhora lavagem cerebral no consciente e no inconsciente coletivo. As rádios funcionam na base do jabá, da propina, para tocar merda o dia inteiro. A televisão foi invadida por peruinhas, pastores evangélicos e jornalistas vergonhosamente desinformados ou manipuladores. Com raríssimas exceções, é um verdadeiro circo de horrores. Diante disso, o que fazer? Ficar trancado dentro de casa se queixando que ninguém mais se interessa por arte e cultura de verdade? Eu não me conformo com isso. Estudei poesia pra caramba e continuo estudando. Sou apaixonado pelas possibilidades da linguagem escrita. Então, vou tentar passar esse conhecimento pra frente. Vou criar uma forma de contra-informação. Foi por isso que montei um show de poesia com os músicos Madan e Ricardo Garcia. Fizemos apresentações em bibliotecas, bares de jazz, teatros. O que mais me impressionou foi um na Favela Monte Azul, na zona sul de São Paulo. As pessoas piraram. Muitas vieram me dizer: puxa, eu não sabia que poesia era um negócio tão forte. Tenho contato também com alguns grupos de rap e vivo passando pra eles poemas de Maiakovski, Leminski, Torquato, Pound. Eles ficam fascinados. E eu também fico impressionado com a força da linguagem deles. O que falta é a poesia chegar nas pessoas. Falta circulação. Não estou interessado em ficar trancado dentro de casa, levando uma vidinha pequeno-burguesa, olhando o fogo de longe, com medo de me queimar.
FABIANO – Bem, o Rap é um alicerce de idéias e atitudes dentro da periferia e tem sido usado em algumas escolas como maneira de trazer o estudante pra perto da escola e de uma vida menos deteriorada pela futilidade, violência, drogas etc., logo se vê que há uma atração, um fascínio muito grande da juventude por esse estilo de música – rhythm and poetry. Poderia comentar sobre?
Ademir – O rap é a rebelião das quebradas. É o sistema de informação das periferias. Acho do caralho os próprios caras da perifa, que levam uma vida difícil, muito expostos à miséria, à violência e à degradação humana, falarem de suas próprias vidas, se expressarem do jeito deles, com os recursos que têm a mão. Qualquer pessoa que realmente se interesse pelos diversos usos da linguagem deveria se interessar pelo que e pelo como os rappers estão se expressando. Diante da estupidez e da manipulação da mídia eles mostram o outro lado, a outra versão dos fatos. E mostram, sobretudo, uma outra linguagem. E sabemos que a linguagem determina o pensamento, a maneira de entender e organizar o mundo, a vida, enfim. Quando a intelectualidade vivia uma certa sonolência, um estado de anestesia, os rappers chegaram afrontando, assustando, botando a boca no trombone. Isso é ótimo. Eles criaram novas contradições culturais. Agora, também não gosto dessa idéia curta de alguns rappers de que a “verdadeira cultura” começou neles. Não dá pra ser condescendente com esse tipo de ignorância. E Cartola? E Wilson Batista? E Moreira da Silva? E Luis Melodia? E Geraldo Pereira? Conhecimento não é de uma classe social ou de outra: é de todo mundo. As idéias de Einstein ou os poemas de Artaud não foram desenvolvidos para a burguesia. Pelo amor de Deus. Acho legal eles conhecerem Villon, que era bandido, foi preso, e escreveu uma poesia do caralho. Acho legal eles conhecerem a prosa de Guimarães Rosa e de João Antonio, as melodias e harmonias de um Pixinguinha e as idéias musicais de um Varése ou de um Arrigo Barnabé. Por que não?
FABIANO – ContraInformação foi criado por um pessoal descontente com os rumos tomados pelos dirigentes desta nave Brasil. Essa moçada, daqui do ABC paulista, quer mostrar a informação real, sem as mentiras da grande e idiotizante mídia. Você, junto a Rodrigo Garcia Lopes e Marcos Losnak, edita uma revista de artes chamada Coyote. Qual coro vocês querem desafinar com o uivo desse Coyote?
Ademir – Queremos afinar o coro dos descontentes. Dos insatisfeitos. Trago sempre em mente um verso de Mário Quintana: “um poeta satisfeito não satisfaz”.
FABIANO – Na rede mundial de computadores nota-se a chegada de vários e vários sites de informação alternativa. Todos contra esse mundo do canibalismo odioso dos países ricos, dos donos da informação, donos da cultura etc. etc. etc. Vão aí duas perguntas em uma: o que acha da internet como veículo de informação alternativa? você acha que está nascendo um novo tipo de pensamento de esquerda dentro da democracia da internet?
Ademir – Não sei o que dizer sobre a internet. O que vejo de mais radical, por enquanto, é a atuação dos hackers, que destroem sistemas de grandes companhias, assaltam bancos virtualmente. Eles são os piratas da era eletrônica. É bem provável que a internet e o computador pessoal modifiquem radicalmente a vida das próximas gerações, como o livro modificou, no passado. A passagem da cultura oral para a cultura escrita e, séculos depois, para a distribuição em série da cultura escrita é algo que modificou radicalmente os hábitos humanos. Com a internet vão acontecer mudanças também. Não sei direito quais. Adoraria que a internet fosse esvaziando o monopólio das grandes redes de comunicação. Por mim, gostaria que as emissoras de tevê e de rádio fossem à falência — se é para transmitir merda, elas que se fodam. Em seu lugar, adoraria que surgissem centenas, milhares de rádios e tevês piratas, com programação de qualidade. Por outro lado, há também um excesso de bobagens na internet. Acho um saco esse negócio de abaixo-assinado contra a guerra do Iraque, abaixo-assinado contra a matança de focas no Pólo Norte, abaixo-assinado contra a fome na Etiópia. Pô, se as pessoas querem protestar devem ir pra rua, fazer barulho, se juntar, se ver. Acho legal as pessoas voltarem para as ruas. Não gosto muito do excesso de contato virtual. Eu gosto mesmo é do contato real.
FABIANO – Qual a sua ligação com a contracultura. Dê uma geral dos anos lisérgicos.
Ademir – Olha: quem me levou a escrever poesia não foi Drummond, nem Bandeira. Foi Jimi Hendrix. Muita gente se choca quando digo isso. Mas é um fato. Foi desse ponto que eu parti. Qual o problema? Eu queria escrever com aquela eletricidade, com aquela urgência, com aquele fogo que Hendrix tocava guitarra. Venho de uma tradição oral. Minha família era do campo. Quando pequeno, eu adorava ouvir minhas tias narrando histórias e causos, a maioria de terror. Quando cursava a universidade, eu estudava semiótica, cinema impressionista alemão, teoria da comunicação durante o dia e à noite adorava conversar com os bêbados da rodoviária. Ia uma turma, sempre alguém tocava violão. Ficávamos enchendo a cara com os bêbados da rodoviária até o dia amanhecer. Quando entrei em contato com todo aquele universo da contracultura, me senti em casa. Nunca fui um erudito. Não sou um cão de raça. Sou meio um cachorro vagabundo, desses sarnentos, que adoram andar na rua. Mas eu não vivi os anos lisérgicos, nem a contracultura. Pelo menos não naquele momento histórico em que tudo isso aconteceu. Eu ainda era criança naquela época. Mas acho que em Londrina, onde morei de 1979 a 86, nós tivemos esse espírito de experimentação intensa, alguns anos depois. Estávamos sedentes de informações e experiências. Não nos contentávamos apenas em receber as informações dos livros. Queríamos VIVER aquelas informações. Foi um negócio muito muito forte. Muito louco e muito forte.
FABIANO – Quais os artistas que você admira hoje em dia?
Ademir – Admiro aqueles que sabem que arte não se resume a um campeonato de técnica. Aqueles que têm coragem de botar a mão no fogo para poder dizer o que é se queimar de verdade. Os verdadeiros experimentadores.
FABIANO – Não poderia deixar de fora esta pergunta: o que acha de Gilberto Gil como Ministro da Cultura?
Ademir – Olha, espero que ele Kaya na Gandaia e contribua para uma verdadeira reforma agrária no campo da cultura. Porque as patotas, os cartéis e os senhores feudais da cultura estão precisando de um sacolejo. Toda a grana oficial fica nas mãos de um pequeno feudo. É legal ter um artista de verdade e não um burocrata no Ministério. Mas, sei lá, eu preferiria alguém menos famoso, que estivesse mais próximo daquilo que realmente está acontecendo na cultura e na produção artística brasileira – e não apenas naquela restrita faixa do que está na mídia, no poder.
FABIANO – Você acha que há muitas piscinas cheias de ratos e muitas idéias que não correspondem aos fatos?
Ademir – Acho também que há muitos ratos ocupando espaços dos artistas mais viscerais e interessantes. Muitos trapaceiros e enganadores. Isso tem de montão.
FABIANO – Como preparar raticidas para esses lite-ratos e sua polititica?
Ademir – Continuar fazendo poesia de grosso calibre. É a melhor maneira que conheço. Ratos e polititiqueiros possuem uma característica bem peculiar: eles se matam entre si. É só uma questão de tempo. Prefiro seguir as regras herméticas dos alquimistas, cantadas pelo Jorge Ben em sua Tábua de Esmeraldas: evitar qualquer relação com pessoas de temperamento sórdido.
FABIANO – Para encerrar, que tal um poema seu?
Então tá.
A VIDA EM TECNICOLOR III
agora digo nada, a vida
que se vive agora, o relógio
marca as horas, clepsidra
que evapora, silêncio
nas bordas do tempo, escrita
perdida no espaço, os peixes
saltam nas vagas, poema
que ao vento se apaga, ao lume
de lua nenhuma, um nome
escrito na água
“Há diferenças, sim, entre a linguagem poética escrita e a falada ou cantada. São evoluções, histórias e recursos diferentes. Até o modo de apreensão do leitor ou do ouvinte é diferente. Mas isso não faz com que uma seja mais “nobre” do que a outra. Não se pode esquecer que em sua origem a poesia era falada.”
(Jornal do Commercio, Recife/PE, 26 de outubro de 2005)
Marcelo Pereira
A poesia tem em si uma musicalidade própria. A mais nobre arte da palavra, anterior à escrita, surgiu desde os primórdios da existência humana na Terra, quando o Homo Sapiens procurou transmitir sua história, suas emoções, seus pensamentos. Todavia, o culto à poesia é cada vez mais minguado nos dias de hoje, principalmente no Brasil de João Cabral, Drummond e Ferreira Gullar, para ficar restrito aos contemporâneos.
O paulista Ademir Assunção é um dos grandes nomes da geração 80, marcada pela inquietude, pesquisa e busca de novas linguagens, que extrapolam a palavra impressa, e forte temática urbana. No mais novo trabalho – Rebelião na Zona Fantasma, lançado em CDm ele põe a música em função da poesia, fala mais do que recita os textos, com auxílio de convidados como os compositores Zeca Baleiro, Edvaldo Santana, Madan e Ricardo Garcia, e um time de músicos de primeira.
MARCELO PEREIRA – Como surgiu o interesse em por a música em função da poesia? Você já tinha experimentado fazer algo neste sentido antes?
Ademir Assunção – Venho buscando essa linguagem há mais de 10 anos. Foram várias tentativas e uma longa maturação. Desde o início eu percebi que meus poemas funcionam bem quando oralizados. Só que eu não queria simplesmente ler os poemas com um fundo musical. Queria mais. Queria um verdadeira fusão entre poesia e música. Foi o que busquei desde o início.
MARCELO – Você faz distinção entre os poemas que escreve e as letras das músicas que você faz? Dá para fazer uma separação ou isto é uma discussão bizantina?
Ademir – Há diferenças, sim, entre a linguagem poética escrita e a falada ou cantada. São evoluções, histórias e recursos diferentes. Até o modo de apreensão do leitor ou do ouvinte é diferente. Mas isso não faz com que uma seja mais “nobre” do que a outra. Não se pode esquecer que em sua origem a poesia era falada. A voz é uma “tecnologia” muito mais antiga do que a escrita. E quem vai me convencer que Chico Buarque, Bob Dylan ou Tom Waits não são grandes poetas? O erro é tirar o poema cantado do seu ambiente, da melodia, da instrumentação, e passá-lo para o papel, como se essa fosse a prova de fogo. O poema cantado precisa ser apreendido em seu próprio ambiente.
MARCELO – Por que buscar outro suporte para a poesia? Além de você, outros poetas, que inclusive tiveram trabalhos publicados na revista Coyote, também utilizam de recursos audiovisuais e gráficos. A palavra apenas impressa perdeu o seu impacto?
Ademir – Não se trata de “outro suporte”, mas de outra linguagem. Quando faço a passagem do poema originalmente publicado em livro para o espaço e o tempo da voz, posso acrescentar outras camadas de significados e utilizar outros recursos. Como disse, durante muito tempo busquei essa linguagem. Não penso que a palavra impressa perdeu o impacto. De maneira alguma. A cada releitura de Cruz e Souza, Allen Ginsberg, Roberto Piva ou Paulo Leminski, por exemplo, o impacto é o mesmo. Senão, mais intenso. Isso depende do poeta e não da “natureza” da linguagem.
MARCELO – Ouvindo o CD, me veio à cabeça os trabalhos de Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção (de quem você foi parceiro) nos anos 80. De que maneira eles influenciaram seu trabalho, se é que influenciaram? Outra referência que vem à cabeça são os poemas que os beatniks gravaram.
Ademir – A oralidade explorada pelos poetas beats é uma forte referência para mim. Tenho uma gravação do Ginsberg lendo o poema “América” ao som do piano do Tom Waits, que é de arrepiar. Tenho também uma rádio-novela fantástica do William Burroughs, Dead City Radio. Adoro o timbre junkie dele, emitindo ladainhas como se fosse um padre drogado. Arrigo e Itamar, por outro lado, me influenciaram e influenciam muito. Não diretamente na minha linguagem, mas nas possibilidades que ambos abriram. A música do Arrigo é incrível, um negócio realmente novo. Adoro as narrativas dele, com aquele ambiente urbano, futurista e com técnicas de quadrinhos, cinema e programas policiais. O Itamar é um dos grandes poetas contemporâneos. Dos maiores. Poeta e músico refinadíssimo. Arrigo e Itamar deram um verdadeiro tranco na música brasileira (depois deles quem mais me chamou a atenção, de outra forma, foi Chico Science & Nação Zumbi). É um crime que Arrigo e Itamar sejam colocados pra escanteio. Vivem dizendo que há espaços para todos, não é? Puta mentira deslavada. Na big mídia o espaço hoje está dominado pela pasmaceira, o entorpecimento, a anestesia.
MARCELO – A sua intenção era fazer uma espécie de rap à brasileira? Ou seja, colocar o ritmo e a poesia em primeiro plano, e a música como pano de fundo ou de forma secundária?
Ademir – De jeito nenhum. Eu queria que poesia e música estivessem no mesmo plano ou, mais que isso, uma dentro da outra, como o esqueleto e a carne em um corpo. Quero que um músico ouça meu CD e diga: caramba, esses caras não estão brincando.
MARCELO – A oralidade é uma característica ancestral da poesia, anterior mesmo à forma escrita. Porque a forma oral, no entanto, tem divulgação tão restrita?
Ademir – Porque ela ainda é pouco explorada. Imagine a ousadia de gravar um CD de poesia e montar um show e tentar colocar isso pra tocar no rádio. Estamos abrindo um novo caminho. Tenho consciência disso. Há outros poetas buscando isso também, como o paranaense Rodrigo Garcia Lopes, o maranhense Celso Borges, o mineiro Ricardo Aleixo e o carioca Chacal, há muito tempo na estrada. No meu caso, acho que consegui criar um show com uma dinâmica que pode ser apresentado em qualquer lugar. Está muito forte.
MARCELO – Você escreveu algum poema pensando em uma harmonia, em uma melodia correspondente?
Ademir – No momento da escrita, não. Mas no momento de criação do repertório do CD, sim. Não pensava exatamente na harmonia, porque não sou um músico. Pensava na divisão, na intensidade da emissão dos versos e no clima musical. A partir daí os músicos iam desenvolvendo junto comigo. Agora, muitas vezes eu escrevo ouvindo Frank Zappa, James Cotton, Miles Davis. De algum modo, acho que acaba influenciando.
MARCELO – Você propositalmente prefere a palavra dita, falada, deixando para os parceiros a palavra cantada. Esta escolha é para definir bem qual a voz (a função da voz) do poeta?
Ademir – Sim. E também porque não sou um cantor. Rebelião na Zona Fantasma não é um disco de cantor. É um disco de um poeta. Mas um poeta apaixonado apaixonado pelas possibilidades de fusão de poesia e música. Talvez eu possa me encaixar na tradição dos menestréis, onde estariam, por exemplo, Bob Dylan e Zé Ramalho. Não estou querendo, de jeito nenhum, me comparar a eles, até porque ambos compõem suas canções, eu não. Mas, se a gente perceber, tanto Dylan quanto Zé Ramalho são muito mais poetas do que cantores. Zé Ramalho mais ainda. Eles praticamente falam suas músicas, ficam ali na fronteira do cantofalado. Cantor mesmo é Milton Nascimento (dos velhos tempos), Nina Simone, Chet Baker, com aquela voz aveludada, invejável.
MARCELO – Como se deu o processo de parceria com Zeca Baleiro, Edvaldo Santana e Madan, principalmente?
Ademir – O embrião de Rebelião na Zona Fantasma saiu do violonista e compositor Madan, o percussionista Ricardo Garcia e eu. Os arranjos de base, a concepção, foi feita por esse núcleo. Madan e Ricardo são fundamentais nesse trampo. Depois, na gravação do CD, o guitarrista Luiz Waack, que produziu junto comigo, também teve uma atuação fundamental nos arranjos, na costura sonora. Tudo foi muito burilado o tempo todo. Com o Edvaldo eu tenho uma ligação de mais de 20 anos de parcerias e de amizade. Eu queria aquele timbre rouco, de bluzeiro, no poema “Nada Demais”. Ele gravou num dia em que estava com uma gripe fortíssima. Gostei do resultado. Ele também. Ficou. Com o Zeca foi a mesma coisa. Eu gosto muito do timbre dele. Achei que ficaria bem em Câmera Indiscreta, que é um soneto urbano, extremamente cinematográfico e muito melancólico, com uma harmonia que lembra música medieval.
MARCELO – Falando em termos musicais, o disco apresenta uma variedade de estilos, indo do blues ao funk, passando pela psicodelia e pelo rock. Em contrapartida não há referência à música brasileira (samba, baião, xote, choro, o que for). Como foi o processo de composição das músicas? Quem escolheu os estilos musicais?
Ademir – Eu gosto muito de blues e rock’n’roll. E dos seus derivados. Não me importo de que país vêm esses estilos. No fundo, se formos puxando o cordão, vem tudo do mesmo lugar: da grande mãe geradora chamada música. Vem dos africanos, vem dos árabes, vem dos orientais. E vão se metamorfoseando em outras coisas. Veja: não há nada “puro” no CD, penso eu. Há um blues (“E então?”) com escalas flamencas no meio, que remetem imediatamente aos árabes. Há um funk todo quebrado (“O Coisa Ruim”) com uma bateria, uma pulsação de samba. Há uma bossa-nova (“O Espinho no Dedo de Deus”) com um poema bem áspero, diferente daquele lirismo carioca dos anos 50. Isso tudo é intencional. Quem foi definindo as estruturas musicais foi esse núcleo inicial: eu, Madan e Ricardo Garcia.
MARCELO – Em “A Lira no Lixo”, você não apenas recita o poema, mas também canta, à maneira de Arrigo, o poema incidental “Rupestre”.
Ademir – Eu tinha mais em mente uma emissão vocal no estilo heavy metal, algo como a banda Sepultura. Achei que a mudança brusca, de um longo solo de guitarra, viajante, para um vocal mais agressivo, funcionaria bem. A idéia era contrastar a primeira parte do poema, meio enigmática (“tudo que cala / sutil caqui cabala / trinos de tons no poente / espelho serpente pente”) com a segunda, mais direta, mais impaciente (“vê se vê cara-pálida / nessa pele de aparas / meu código morse / meu corte rente”). Como uma lâmina sonora que fizesse o corte na própria pele do poema. E do ouvinte, por extenção.
MARCELO – Ao colocar melodia num poema o que você deseja? Embrulhá-lo para presente?
Ademir – Jamais penso em embrulhar nada para presente. Não quero “entreter” ninguém. Quero é provocar um estado de tensão, às vezes de melancolia, ou de transe. Acho que tenho algumas coisas para dizer e procuro dizê-las com o máximo de força e intensidade. Mesmo quando são mais suaves, líricas, até.
MARCELO – Em alguns poemas, como “Noite & Dia” e “Câmara Indiscreta”, percebe-se bem o prazer em pronunciar as palavras, as aliterações, o jogo metafórico.
Ademir – É verdade. São dois poemas com uma trama sonora muito trabalhada. Isso, inclusive, facilitou para que o Madan os transformasse em música, cantada mesmo, com melodia. Ele inclusive gravou nos CDs dele, apenas cantadas. No meu CD, há o canto nessas faixas, mas há também o poema falado, um dentro do outro.
MARCELO – Como você chegou a conclusão que o blues era o melhor estilo para pontuar o poema de abertura “Homem Só” e também “Escrito a Sangue”?
Ademir – Pelo tom melancólico e pela divisão rítmica de ambos. Eu queria uma estrutura musical que acentuasse o clima de noite, de estrada, de alguém a caminho, em movimento, sem saber direito para onde. Como nos filmes de Wim Wenders. O solo de guitarra do Luiz Waack, em “Escrito a Sangue”, belíssimo, foi criado assim: eu disse a ele: “Luiz, toque como se fosse o seu último solo de guitarra. Imagine que eu estou com uma automática apontada para sua cabeça e quando você terminar, não tenha dúvidas, eu vou puxar o gatilho”.
MARCELO – Em “Pó”, por exemplo, você fala quase cantando, no início, e depois faz dueto com Madan. Nesta faixa você se assume também como cantor? E aí joga o poema para o segundo plano. Você interpreta dessa forma também?
Ademir – Não sou nem pretendo ser cantor. Estou o tempo todo falando os poemas. Só que a divisão dos versos e o encaixe dentro dos compassos da música, muitas vezes, dá a impressão de canto. É só impressão. A poesia nunca está em segundo plano este trabalho. Há sempre a integração poesia e música.
MARCELO – Este projeto prevê também um complemento visual, em forma de vídeo ou cinema?
Ademir – Sim, nos shows utilizamos um cenário virtual, criado pelo videomaker Robson Timóteo. São projeções de imagens inspiradas nas linguagens de quadrinhos, cinema, pintura e da própria poesia. Essas imagens acrescentam interessantes camadas de significados ao espetáculo. Seria ótimo se conseguisse gravar um DVD. Mas, cadê a grana?
MARCELO – Por que este estereótipo do poeta negro, bicha e louco. Poesia é coisa para malditos e marginais?
Ademir – Não se trata de um “estereótipo”, mas de uma provocação. No poema há um diálogo entre os “homens de negócio”, que raciocinam conforme a lógica do lucro, e o poeta, que produz inutilidades. Afinal, qual é o valor de mercado da poesia? Nenhum. Os “homens de negócio” não aceitam o que o poeta tem a oferecer: o “pó de estrela / pó de mico / pó de poesia”. Eles querem grana. Por isso, quando o poeta diz “fiquem vocês com este pó”, eles retrucam: “não, é pouco / prendam o poeta / é negro / bicha / e louco”. Este poema é um diálogo subliminar com “Conversa com o fiscal de rendas”, de Maiakóvski. Não creio que a poesia seja para malditos e marginais. Malditos e marginais são os caras que subestimam a inteligência das pessoas programando um monte de merdas nas rádios e televisões, por exemplo. Esses estão à margem do conhecimento, da arte e da cultura.
“Eu não tenho nenhuma dificuldade em ler Nietzsche e depois ouvir um blues de Robert Johnson. São manifestações culturais diferentes. Mas ambos foram fundo no pensamento e na vida. Talvez os acadêmicos tenham essa dificuldade. Eu não. Eu vivo na era da reprodutibilidade técnica, como já avisou Walter Benjamim, há mais de meio século.”
(Tribuna Impressa, Araraquara/SP, 6 de abril de 2004)
Márcio Scheel
Ademir Assunção, jornalista, poeta, e escritor araraquarense, acaba de publicar, pela Ateliê Editorial, Adorável Criatura Frankenstein, seu quinto livro e primeiro romance. Aos quarenta e três anos, o escritor chega a uma invejável maturidade literária, lançando um livro desafiador, que rompe com todas as estruturas da representação e transforma a narrativa em um mosaico de imagens, fragmentos e referências que vão do pensamento zen oriental às formas e modelos discursivos da indústria cultural, da arte pop e da propaganda.
Tendo publicado LSD Nô (poesia, ed. Iluminuras, 1994), A Máquina Peluda (prosa, Ateliê Editorial, 1997), Cinemitologias (prosa poética, Ciência do Acidente, 1998) e Zona Branca (poesia, ed. Altana, 2001), além de editar, juntamente com os poetas paranaenses Marcos Losnak e Rodrigo Garcia Lopes, a revista Coyote, Ademir Assunção faz parte de uma geração de autores surgida na última década do século passado.
Livre de propostas ou conteúdos programáticos, que caracterizam os grandes movimentos literários, essa geração representa um ponto alto na produção literária contemporânea, cujo traço distintivo é a extrema originalidade com a qual transita entre os mais diferentes gêneros, temas, formas ou estruturas, rompendo com os limites da linguagem.
Na entrevista que segue, concedida por e-mail, o escritor fala de seu novo romance, da vida fora de Araraquara, de literatura, música e cinema, das influências que determinaram sua própria obra, de jornalismo e criação, além de como se vê dentro dessa nova geração surgida em fins do século passado e que já deixa suas marcas características na literatura brasileira.
MÁRCIO SCHEEL – Você nasceu em Araraquara, passou alguns anos em Londrina e agora está radicado em São Paulo. Como se deu essa saída, ainda bastante jovem, quando decidiu ir embora? Quer dizer, o que o motivou a partir? A literatura teve alguma coisa a ver com isso?
Ademir Assunção – Eu me mudei de Araraquara para Londrina aos 18 anos e a literatura teve tudo a ver com isso. Mais do que uma mudança de cidade, foi uma mudança radical na minha vida. Eu ia fazer engenharia elétrica em Uberlândia. Na hora h, decidi mudar tudo e prestar vestibular para jornalismo em Londrina. Isso porque conheci um cara que era poeta, o Anael Aquino, e ele começou a me mostrar uns livros de poesia: Robert Frost, Drummond, Bandeira, o de praxe. Um dia ele me falou de um lançamento de vários livros da editora Pindaíba, em Ribeirão Preto, e resolvemos ir até lá. Fiquei impressionadíssimo com aqueles caras cabeludos, subindo nas mesas do bar, falando poesia e encarando as pessoas. Um dos livros era uma antologia chamada Tempos, com cinco poetas, dois de Londrina: o Nilson Monteiro e o Domingos Pellegrini Jr. Naquele momento despertou a fagulha. De repente, três coisas se juntaram na minha cabeça: descobri que havia o curso de jornalismo em Londrina. Uma irmã da minha mãe, minha Tia Nica, morava lá. E ainda existiam poetas na cidade! Pensei: é pra lá que eu vou. O que é curioso é que até os 15 anos eu não me interessava por literatura. Gostava de gibi, filme de terror e futebol. A poesia surgiu por acaso na minha vida. Não fui eu que fui atrás dela. Ela que veio atrás de mim.
MÁRCIO – Além de escritor e poeta, você também é jornalista, trabalhou na Folha de Londrina e chegou a publicar alguns autores da geração beat norte-americana, como Ginsberg, por exemplo, que tem uma poesia forte, que contraria o tom ameno dos grandes veículos de imprensa; alguns poetas e escritores locais, um pessoal que ficou conhecido como a vanguarda poética de Londrina; assim como Gregório de Mattos, Augusto de Campos, entre outros. Assim, quais são suas referências diretas, Ademir, que autores fizeram a sua cabeça, qual a importância e a influência do jornalismo em sua literatura – ou da sua literatura no jornalismo?
Ademir – São tantos os criadores que fizeram e continuam fazendo a minha cabeça. Posso listar aqui aqueles que apareceram em momentos decisivos e me jogaram de vez para a poesia: Jimi Hendrix, Paulo Leminski, Torquato Neto, Friedrich Nietzsche, Jorge Luis Borges, Ezra Pound, James Joyce, Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção, Samuel Beckett, Franz Kafka, Anton Tchecov, Augusto de Campos, Frank Zappa, John Fante, William Burroughs, Arthur Rimbaud, Antonin Artaud, Van Gogh, Akira Kurosawa. Cada um teve um impacto diferente no momento em que estava formando minhas percepções, minhas preferências. Mas a lista é muito maior. Vai de histórias em quadrinhos ao zen, outra influência muito forte na minha vida. E o jornalismo foi uma paixão fulminante. Eu adorava pensar a totalidade de uma página de jornal, com texto, foto, projeto gráfico. Pra mim, era uma tela de cinema, onde eu podia experimentar as maiores maluquices, uma explosão de significados juntando todas essas linguagens. O jornalismo foi muito importante para eu desenvolver uma disciplina de escrita. Testei muitas idéias nas páginas dos jornais, antes de levá-las para meus livros.
MÁRCIO – A sua poesia, desde LSD NÔ, de 1994, até Zona Branca, de 2001, vive sobre o fio da navalha de uma poética que transita livremente entre os signos da comunicação de massa, da indústria cultural e um certo espiritualismo de matiz oriental, tomado ao zen-budismo, à poesia japonesa, como o haikai, por exemplo, ou aos ideogramas poéticos da China. Como você chegou a esse equilíbrio difícil e delicado entre a arte pop, que alguns caracterizam como resultado direto dessa sociedade de consumo, massificada, em que vivemos, e o ideal transcendente de uma poesia que, muitas vezes, se aproxima do pensamento filosófico-religioso, da antiga busca da verdade pelo espírito?
Ademir – Não é uma questão de equilíbrio, é formação, mesmo. O rock’n roll foi tão importante na minha formação quanto as traduções do poeta chinês Wang Wei, feitas por Haroldo de Campos. Veja bem: estou falando de rock’n’roll, não das merdas que fazem por aí e os garotos pensam que é rock’n’roll. Há uma passagem reveladora naquele filme do Bertolucci sobre o Buda (não lembro o nome do filme). Quando o budismo começa a se espalhar pela Índia, o próprio Buda encontra um grupo de discípulos magricelas, ascetas, que passam o tempo todo meditando e não fazem mais nada. Então ele diz: como vocês querem atingir a iluminação se estão renunciando à própria vida? Eu não tenho nenhuma dificuldade em ler Nietzsche e depois ouvir um blues de Robert Johnson. São manifestações culturais diferentes. Mas ambos foram fundo no pensamento e na vida. Talvez os acadêmicos tenham essa dificuldade. Eu não. Eu vivo na era da reprodutibilidade técnica, como já avisou Walter Benjamim, há mais de meio século.
MÁRCIO – Você acaba de lançar seu primeiro romance, Adorável Criatura Frankenstein, um livro radicalmente novo, fragmentário, em que esse universo da comunicação de massa, da indústria cultural, da arte pop e da sociedade de consumo, esvaziada de sentidos, valores ou conteúdos, transparece numa crítica irônica, ácida e mordaz. Como você classificaria Adorável Criatura Frankenstein: uma fábula cínica e realista ou uma fantasmagoria assustadora, um pesadelo que se confirma diariamente quando saímos à rua ou ligamos a TV?
Ademir – Penso que o Frankenstein é uma fábula muito mais realista do que a literatura que se diz “realista” e ainda utiliza um modelo narrativo do século retrasado. O livro ironiza não apenas a idéia de “realidade”, mas a própria representação da “realidade” através da literatura. Quem é o narrador dessa história toda? Quem é o chefão que sabe tudo o que vai acontecer e manipula o destino dos personagens? O que é mais real, Caetano Veloso beijando a Sandy num show do Pacaembu transmitido pela TV ou a barata sendo devorada pelas formigas no meu quintal? Eu simplesmente explicitei, através de uma narrativa fragmentária, caótica e desnorteante, as estranhas dessa máquina de manipulação da realidade que é o mundo da comunicação de massas. Tudo se transforma numa grande alucinação, na qual o senador Antonio Carlos Magalhães é tão real ou tão fictício quanto Pernalonga. Juntando as duas idéias que você mencionou, pode-se dizer que o livro é uma fábula cínica sobre uma fantasmagoria assustadora.
MÁRCIO – A crítica contemporânea, dos últimos vinte anos, afirma que toda a obra literária que lança mão dos modelos discursivos da comunicação de massa para enfeixar uma crítica a essa mesma sociedade pode ser situada dentro dos limites da pós-modernidade, que tem como característica marcante a descrença absoluta nos grandes modelos discursivos. Em que medida Adorável Criatura Frankenstein pode ser entendida como uma obra tipicamente pós-moderna?
Ademir – Dante Alighieri escreveu com as ferramentas do seu tempo. Homero, Goethe, Joyce, idem. Não estou me comparando a eles, só quero dizer que escrevo com as ferramentas do meu tempo. Viajo de avião (de vez em quando), subo e desço de elevador, vejo televisão (muito pouco), enfrento trânsito engarrafado, encho a cara em botecos com travestis enfiando fichinhas na jukebox. É o meu tempo. É no meio dessa balbúrdia que eu vivo. É claro que sou crítico dessa babel, desse esvaziamento de significados, dessa lavagem cerebral promovida pela comunicação de massas, pela publicidade. Se pós-modernidade é trabalhar com a intertextualidade, com a fragmentação esquizofrênica, com o questionamento da sociedade de simulacros, com o esgotamento dos próprios modelos de representação, então, Frankenstein é um produto típico da pós-modernidade. De alguma forma, hoje em dia, somos todos Criaturas Frankensteins. Agora, eu me pergunto: depois da pós-modernidade o que vem pela frente? O pré-apocalipse?
MÁRCIO – É possível pensar que Adorável Criatura Frankenstein seja, de alguma forma, o resultado de uma literatura, de um tipo de literatura, de escrita e de estilo que você já ensaiara, com sucesso, em seu livro de contos A Máquina Peluda, de 1997?
Ademir – Sem dúvida. Narrativas como “15 minutos”, em que o Unabomber executa um ataque terrorista pela internet, enquanto o sistema de defesa tenta impedí-lo, ou “Zanzando com Zazie no Metrô”, em que os piratas do Capitão Gancho invadem o estúdio e seqüestram o diretor Roberto Marinho, ambas do livro A Máquina Peluda, têm tudo a ver com o Frankenstein.
MÁRCIO – Você é um dos autores presentes no livro Geração 90: os transgressores, coletânea de contos organizada por Nelson de Oliveira e que é representativa, ou assim se quer, da produção literária brasileira da última década do século passado. Nelson de Oliveira se envolveu numa polêmica acirrada com o escritor Bernardo Carvalho, que acusou a iniciativa de Nelson e dos autores presentes na antologia, de propagandística e auto-promocional. Você acredita, Ademir, que ainda seja possível falar em gerações, grupos, tendências ou movimentos, como as histórias da literatura nos habituaram a pensar?
Ademir – Bernardo Carvalho não precisa se “auto-promover” porque tem a Folha de São Paulo para fazer isso por ele. A posição dele é típica daqueles caras fominhas que querem jogar sozinhos. O Nelson de Oliveira, que também é escritor, e dos bons, teve a grandeza de mostrar que há outros escritores com linguagem poderosa, crítica, criativa. É um cara curioso, que lê seus contemporâneos, pesquisa, descobre. Isso é auto-promoção? Não creio que ele teve a intenção de mostrar os autores das duas antologias Geração 90 como os únicos do nosso tempo, ou como uma coisa homogênea, programática. Não existe isso. Mas é fato que ele chamou a atenção para um conjunto de criadores que estavam dispersos, muitas vezes sendo jogados para escanteio pela crítica e pela imprensa. Mostrou que a prosa brasileira vive um momento fértil. E o que há de ruim nisso? Quanto aos movimentos, pode ser que surjam, sim. Por que não? Quem disse que eles estão proibidos? A vida não é tão previsível assim.
MÁRCIO – Como você se situaria no contexto da produção literária contemporânea?
Ademir – Como aquele cachorro do poema do Fernando Pessoa: “Deitei fora a máscara e dormi no vestiário/ Como um cão tolerado pela gerência”. Mas não me sinto sozinho, não. Há alguns outros viralatas uivando comigo. Aliás, a matilha está crescendo a olhos vistos.
MÁRCIO – Dos autores em circulação, evidenciados ou não pelos grandes veículos de imprensa, quais você apontaria como verdadeiros transgressores, isto é, responsáveis por uma literatura radicalmente nova, desafiadora?
Ademir – A transgressão, muitas vezes, pode estar num haicai do Bashô, escrito há quatro séculos. Em três linhas ele pode colocar abaixo todo o sistema de percepção calcado no racionalismo aristotélico. Isso muda tudo. Mas vamos falar dos autores que estão despontando cada vez mais e que são desafiadores para mim: Douglas Diegues, Rodrigo Garcia Lopes, Marcos Losnak, Cláudio Daniel, Ricardo Aleixo, Mário Bortolotto, Marcelo Mirisola, Nelson de Oliveira, Joca Terron, Maurício Arruda Mendonça, Micheliny Verunschk. Há muitos outros. Tem gente que está aparecendo e já está dando sinais vigorosos. É chato citar assim porque sempre acaba ficando gente de fora. Mas quem sabe que está fazendo uma literatura desafiadora, pode se sentir incluído.
MÁRCIO – Sendo de Araraquara, Ademir, como você percebe a produção literária de dois conterrâneos seus – Ignácio de Loyola Brandão e Zé Celso Martinez Corrêa? Como você vê os dois? Em alguma medida, eles também serviram de influência em sua produção literária?
Ademir – Zé Celso é uma mente vulcânica, daqueles da mesma raça de um Glauber Rocha, Paulo Leminski, Waly Salomão, Roberto Piva. Há poucos espíritos assim no mundo. Ele pensa o teatro como uma coisa dionisíaca, genial. Às vezes me cansa um pouco toda aquela vertigem e a paparicação que existe em torno dele. O Loyola é um puta escritor. Tem livros muito bons, como Dentes ao Sol, Não verás país nenhum. Não li os mais recentes. Não sei o que ele está escrevendo. Preciso ler, pois é um autor que me interessa muito. Mas nenhum dos dois me influenciou diretamente, não.
MÁRCIO – Hoje, a internet é uma forma de mídia largamente discutida e cada vez mais presente na vida das pessoas. Você mesmo é autor de um blog bastante visitado, o zonabranca.blog.uol.com.br. Qual é ou ainda pode ser o papel da internet na criação e no desenvolvimento dessa nova produção literária brasileira, já que autores como Mário Bortolotto, Fabrício Carpinejar, Joca Reiners Terron, Ronaldo Bressane, João Paulo Cuenca, entre outros, parecem ter elegido a internet como uma forma possível de veicular, constantemente, uma literatura e um pensamento de resistência, que não se rende à completa anulação promovida pela comunicação de massa, pela sociedade de consumo, pela linguagem cada vez mais manipuladora da propaganda.
Ademir – Televisões, rádios, jornais, são espaços controlados. A internet não. Pelo menos, não aparentemente. Quem é curioso, pode encontrar muitas coisas instigantes. Muitas pessoas estão se aproximando, afinando idéias pela internet, como aconteceu conosco. Seus textos críticos, publicados no seu blog, são de uma vitalidade, de uma clareza, e de uma radicalidade crítica impressionantes. Não vejo intervenções assim nos jornais. E como eu poderia conhecê-los, se não fosse a internet? Informações preciosas estão circulando nesse fantástico campo de guerrilha. Agora, não gosto de ficar viciado nesse mundo virtual. Os encontros, as conversas, as ações, continuam sendo fundamentais. E não vamos nos iludir em demasia. Tenho uma parceria com o grande Edvaldo Santana, uma canção, que diz assim: “Bill Gates anuncia/ Quem não tem computador não tem sintonia/ Global/ Mas o profeta já dizia/ Que vai faltar energia/ Na noite do Juízo Final”.
MÁRCIO – Para terminar, Ademir, com uma dessas perguntas bastante óbvias, mas inevitáveis, o que significa a literatura para você, em sua vida, na forma como você vê, percebe e compreende o mundo?
Ademir – Acho que o mesmo papel que as seis patas têm para uma barata. Se arrancar uma delas, a pobre coitada vai continuar sobrevivendo, mas aleijada.
“O centro para onde converge Adorável Criatura Frankenstein, se é que existe um centro, é o mergulho na fronteira entre o que é real e o que é ilusão. Tudo ali parece uma grande alucinação. Ninguém sabe direito se as coisas estão acontecendo de fato ou não. Não existe um personagem Frankenstein em toda a narrativa. O próprio livro é um Frankenstein.”
(entrevista para J. Roberto e Marcelo Ariel, março 2004 – sem referência de publicação)
J. ROBERTO – Qual é o papel da poesia, do poeta e das revistas de poesia como a Coyote numa sociedade capitalista do terceiro mundo?
Ademir Assunção – Poesia é arte da palavra, não é? E a palavra está sendo cada vez mais esvaziada pelo discurso chavequeiro da publicidade, da política, da comunicação de massa. Não estou neste mundo para cagar regras, nem para convencer ninguém de que vai ascender ao paraíso comprando um duplex novinho em folha ou uma marca de sabonete que deixa a pele mais macia e mastigável. Então, o mínimo que a poesia pode fazer é manter a linguagem viva. Isso em qualquer sociedade. A linguagem pra mim é algo muito forte, capaz de revelar percepções que ninguém está notando. Pode ser tanto a percepção do salto de um grilo na grama — e o entendimento de que aquilo é uma expressão plena do direito de existir, basta tomar um chá de cogumelo para entender isso — quanto uma afronta a um banqueiro sanguessuga. Gosto muito de uma frase do Nietzsche (que vivo repetindo): “De tudo o que se escreve, aprecio somente aquilo que é escrito com o próprio sangue”.
MARCELO ARIEL – Lendo seu último livro, o Adorável Criatura Frankenstein me lembrei de uma frase de Paul Valéry onde ele afirma que a poesia é uma linguagem carregada de significados em seu mais alto grau. Acho que esse livro de certa forma aponta para um horizonte saturado de mitos coletivos vazios que ajudam a construir e manter uma visão redutora, alienada, sufocante e sem esperança no mar de merda que nos cerca, apesar de suas significativas ilhas de poesia incrustradas no caos. As duas perguntas-clichês são as seguintes: Qual é o centro para o qual converge sua obra? Por que você escreve?
Ademir – É, Adorável Criatura Frankenstein mexe nesse “horizonte de mitos vazios” que você mencionou. Existe o vazio zen, o vazio da própria existência humana e o vazio gerado pela lavagem cerebral, pela anestesia geral, que, no fundo, preserva os interesses milionários dos chefões que querem manter a maior parte das pessoas sob controle. E quem são esses chefões? Como diria Raul Seixas, em Metrô Linha 743: “Quem será esse desgraçado, dono dessa zorra toda?”. O centro para onde converge Adorável Criatura Frankenstein, se é que existe um centro, é o mergulho na fronteira entre o que é real e o que é ilusão. Tudo ali parece uma grande alucinação. Ninguém sabe direito se as coisas estão acontecendo de fato ou não. Não existe um personagem Frankenstein em toda a narrativa. O próprio livro é um Frankenstein. A outra parte da pergunta: por que escrevo? Para manter minha loucura num nível razoável.
MARCELO – Agora uma pergunta óbvia e uma esotérica: quem é o narrador de Adorável Criatura Frankstein? Existe alguma relação entre esse livro e o poema Esquizonauta do livro Lsd Nô?
Ademir – Pois é: quem é o narrador? Quem é que está narrando a história? Ao colocar essa dúvida, o livro ironiza com a própria linguagem da narrativa realista. Ou daquilo que chamam de “narrativa realista”. A todo momento, o chão debaixo dos pés do leitor é retirado. Não sei se todo mundo percebe com nitidez, mas há um plano mitológico percorrendo as páginas da Adorável Criatura. O narrador é uma espécie de Deus, dono dos destinos dos personagens, onisciente de tudo? Ou é também um simples personagem? Quem é o arquiteto Nós? E quem é a loira misteriosa Você? E Ele, quem é Ele? Parece que tudo está ficando meio confuso, não? Quanto ao poema Esquizonauta deve haver alguma conexão, afinal foi escrito pela mesma pessoa. Mas eu vejo Esquizonauta como um poema meio impressionista, meio cubista. Adorável Criatura Frankenstein é algo inclassificável.
MARCELO – Fale sobre seus próximos projetos.
Ademir – Estou gravando um cd de poesia e escrevendo um novo livro. O repertório do cd vem de um show que montei há sete anos com o violonista, cantor e compositor Madan e o percussionista Ricardo Garcia. Nesses anos todos fizemos várias apresentações, com formações diferentes, às vezes violão e guitarra, outras piano e guitarra, violão e percussão, violão, percussão e baixo. Nos divertimos bastante e aperfeiçoamos a ligação da linguagem falada e da linguagem musical. Não é um cd de poemas falados com uma trilha musical ao fundo. É algo muito mais orgânico. É linguagem falada colocada em estruturas de blues, rock e balada. Não sou cantor. Não é um disco de cantor. É um disco de poeta, com uma preocupação de que poesia e som funcionem com toda a força possível. Estou gravando com o Luiz Waack, um puta de um guitarrista (foi da banda Isca de Polícia, do Itamar Assumpção, é atualmente da banda do Edvaldo Santana, além de compositor). Estamos começando a mixagem. Acho que no segundo semestre vai dar pra lançar. E o livro que estou escrevendo é o segundo volume de uma trilogia que iniciei com Cinemitologias. São poemas em prosa, saturados de imagens, espécies de pequenos curta-metragens, num cenário claustrofóbico, urbano, desolado. Um mundo abandonado pelos deuses, que se encheram da raça humana e a abandonaram à própria sorte. Algo assim: beleza, levamos um pé na bunda. E agora?
“Gosto muito de autores “realistas” como João Antonio, John Fante ou Marçal Aquino, excelentes escritores, exímios contadores de história, mas minha linguagem é outra coisa. Acho que minha prosa é uma prosa de poeta, de alguém que desconfia da palavra e arranha sua epiderme com as unhas até chegar na carne viva.”
(entrevista para a Folha de São Paulo/SP, não publicada, fevereiro de 2004)
ROGÉRIO EDUARDO ALVES – Assim como em Zona Branca, leio esse seu Adorável Criatura Frankenstein como uma expressão de contracultura, na mesma linha aberta pelo PanAmérica de José Agrippino. Estou muito errado? Como você classificaria sua prosa? Como você entende essa sua ascendência? Quem mais você citaria?
Ademir Assunção – PanAmérica, do Agrippino, Serafim Ponte Grande, do Oswald de Andrade e Agora é que são elas, do Paulo Leminski, são livros que me surpreendem pela explosão anárquica de criatividade e de sarcasmo diante da idéia da prosa realista como representação da própria realidade. São livros que fundam uma outra linguagem, extremamente contemporânea e pouquíssimo abordada ainda em nossos dias. Acho que Adorável Criatura Frankenstein pertence a essa linhagem, na qual acrescentaria também a prosa e a poesia de Sebastião Nunes, principalmente de Somos Todos Assassinos e das duas Antologias Mamalucas. A música de Arrigo Barnabé (especialmente Clara Crocodilo) de Frank Zappa, o humor negro de Samuel Beckett, as desconcertantes colagens de William Burroughs e as parábolas fantásticas de Borges são outras referências fundamentais na minha escrita e na minha visão de mundo. Cada um a seu modo mostra o quanto esse conceito abstrato e duvidoso a que alguns chamam de realidade não passa de manipulação. Quando não, de mera ilusão, como alertam os mestres zen-budistas.
ROGÉRIO – Você não acha que a contracultura, assim como a vanguarda, está rotinizada, representando um formato literário esvaziado como qualquer outro, parte de uma engrenagem programada da indústria cultural, a mesma que paradoxalmente alimenta sua história?
Ademir – É evidente que grande parte da mídia, da indústria cultural e do mundo acadêmico tem interesse em esvaziar as idéias e posturas que as colocam em xeque. E muitos daqueles que se dizem artistas também acabam banalizando procedimentos que eram radicais em sua origem. O que era ousadia, vira repetição. Mas o que é conhecimento, inquietação, inventividade, permanece intacto; basta ir direto à fonte e não perder tempo com diluições. A maioria dos que defendem com unhas e dentes o esvaziamento da contracultura e das vanguardas do século 20 simplesmente repetem os procedimentos artísticos mais conservadores dos séculos anteriores. O conhecimento, as idéias, estão aí. Cada um que as utilize ou as rejeite como quiser, que faça suas releituras, que encontre novas maneiras de manter a linguagem viva e provocante. Não sou daqueles que caem no conto do vigário do “fim da história” ou do “fim das ideologias”. Por trás desta vigarice há uma ideologia fortíssima, que justifica a transformação do planeta em um grande bingo regido pelas falcatruas do sistema financeiro. Se eu acreditasse que tudo foi esvaziado, banalizado, rotinizado, não estaria escrevendo. Daria um teco na cabeça. Ou ficaria diante da televisão como um chimpanzé amestrado, assistindo Big Brother Brasil, Hebe Camargo e Luciana Jimenez.
ROGÉRIO – Seria possível hoje um livro que questionasse todas as bases culturais e as abalasse? Como seria? Seu Adorável Criatura procura isso? De que forma?
Ademir – Abalar todas as estruturas, eu não sei. Mas dá para se divertir um bocado ridicularizando os símbolos máximos da sociedade atual: o consumismo desvairado, o hedonismo das “celebridades”, a burrice propagada pelas mídias eletrônicas, a vigarice publicitária. Gosto de pensar como Frank Zappa que, ao falar sobre sua arte, disse: “Eu uso as armas de uma sociedade doente e desorientada contra ela mesma”.
ROGÉRIO – Você diria que alcançou o que procurava com a Adorável Criatura? Mas o que você procurava?
Ademir – O que procurei com minha Criatura Frankenstein foi trabalhar o limite entre a ficção e a realidade num mundo bombardeado por um excesso desnorteante de informações. Por isso, muitos dos personagens são políticos, artistas, celebridades, figuras do desenho animado ou de outros livros, como Antonio Carlos Magalhães, Caetano Veloso, Carla Peres, Pernalonga e Clara Crocodilo. Os outros, são apenas pronomes. Alguns correspondem a entidades míticas, Deus, Lúcifer, Lilith, mas não aparecem nomeados desta forma. Suas identidades são ocultas, algo a ser desvendado. Há ainda o moleque de rua, fugitivo da Febem, a jornalista da grande imprensa, o mendigo que lê Machado de Assis, o mestre zen, o playboy globalizado. O único que não sabe quem é e muito menos o que está fazendo no meio da história é justamente o personagem central. Ele vive cercado de “celebridades” e não consegue mais distinguir se Caetano Veloso é um personagem de ficção e Pernalonga um personagem real ou vice-versa. Tudo se mistura e ninguém mais sabe sua própria identidade. O próprio autor do livro se torna um personagem. Ele é o dono da pelota, o que controla todo mundo, o todo-poderoso. Quem é esse desgraçado que me meteu nessa encrenca? — é o que o personagem central quer descobrir, quando percebe que não passa de um mero personagem, que está sendo manipulado por alguém, aparentemente invisível. Não é difícil perceber que tentei criar uma fábula contemporânea. Pelo retorno que estou recebendo dos primeiros leitores, acho que consegui.
ROGÉRIO – Mantendo o paralelo entre seus livros, percebo que em Criatura você consegue criar um espaço semelhante ao Zona Branca, através das milhões de informações a que estamos sujeitos, nós contemporâneos sendo bombardeados pela mídia e vivendo nesse labirinto virtual. De que maneira essa narrativa aproxima-se da natureza poética? Ou ainda, até que ponto seu romance pode ser considerado naturalista?
Ademir – Nem minha poesia nem minha prosa são naturalistas. Ao contrário: deixam claro que são signos, são construção, são linguagem. Adorável Criatura Frankenstein sequer se enquadraria no conceito de “romance”, uma fórmula do século 19, que pressupõe um “retrato da realidade”. Gosto muito de autores “realistas” como João Antonio, John Fante ou Marçal Aquino, excelentes escritores, exímios contadores de história, mas minha linguagem é outra coisa. Acho que minha prosa é uma prosa de poeta, de alguém que desconfia da palavra e arranha sua epiderme com as unhas até chegar na carne viva.
ROGÉRIO – Como devo entender sua passagem do verso para a prosa? Por quê?
Ademir – Há idéias e intenções criativas que simplesmente não consigo encaixar na poesia. Então, parto para a prosa. Não há nenhum mistério nessa passagem. Tudo utiliza a mesma matéria: a linguagem. Mas nunca deixei de escrever poesia, mesmo quando estou me dedicando à prosa.
ROGÉRIO – Quanto tempo você levou para terminar seu livro?
Ademir – Escrevi o livro em apenas três meses. Diariamente. Depois, deixei-o dois anos na gaveta. Não sou daqueles que reescreve interminavelmente um texto. Burilo muito antes de escrever, rabisco, faço anotações, desenvolvo trechos. Quando vou para o computador, as palavras aparecem como um jorro.
ROGÉRIO – Como é publicar um texto como esse no Brasil? Quais as dificuldades que você enfrentou? Foi mais fácil que publicar Zona Branca?
Ademir – É sempre difícil publicar um texto crítico, que ironiza com as estruturas de poder e ao mesmo tempo busca uma linguagem inovadora. Veja o caso de Sebastião Nunes, um dos escritores mais instigantes da atualidade, e que tem quase que toda a sua obra bancada pelo próprio bolso. O que se pode esperar de uma época em que pastores evangélicos, peruinhas siliconadas e pagodeiros xaropes se tornam “grandes comunicadores”, ocupando o espaço da circulação de idéias? Por que não se tem programas inteligentes de cultura na televisão? A resposta é simples: porque no atual estágio do mercantilismo predatório, a ordem é: emburreça o máximo de pessoas e ganhe muito dinheiro. Como diria Marlon Brando, no papel do coronel Kurtz, em Apocalipse Now: o horror, o horror.
ROGÉRIO – Quais as suas atividades hoje?
Ademir – Estou trabalhando em um novo livro de poesia e em um CD de poesia e música. Sou também um dos editores da revista Coyote, junto com os poetas Rodrigo Garcia Lopes e Marcos Losnak. A atividade central da minha vida é a escrita, a arte, a criação. Procuro organizar meu dia a dia em função disso. Como não sou filho de milionário — ao contrário, meu pai era ferroviário — tenho que me equilibrar entre o trabalho criativo e a sobrevivência. Quando não consigo esse equilíbrio, ou caio numa dureza total ou fico num mau-humor insuportável.
ROGÉRIO – Como você vê essa chamada Geração 90 da literatura nacional? Você costuma ler quem?
Ademir – A desinformação e a arrogância da crítica e da imprensa em relação aos autores atuais acabaram contribuindo para o surgimento do rótulo de Geração 90. Durante os últimos dez anos cansamos de ler textos afirmando que não havia nada de significativo na cultura brasileira. Quem estava informado, acompanhando os criadores que estavam surgindo, sabia que era mentira. E isso não aconteceu somente com a literatura, mas com a música, o teatro, as artes plásticas, os quadrinhos. Essa ebulição criativa foi abafada até o ponto em que não havia mais como escondê-la. De qualquer modo, gostaria que o rótulo de Geração 90 se dissolvesse o mais rápido possível. O que há são ótimos autores contemporâneos, na poesia, na prosa, no teatro, na música. Nomes? Cláudio Daniel, Douglas Diegues, Rodrigo Garcia Lopes, Joca Reiners Terron, Micheliny Verunschk (poesia), Mário Bortolotto, Maurício Arruda Mendonça (teatro), Marcelo Mirisola, Nelson de Oliveira, Marçal Aquino (prosa), Edvaldo Santana, Bêbados Habilidosos, Bernardo Pellegrini, Madan (música popular). Há muitos outros, em vários cantos do Brasil, de gerações diferentes, em plena atividade. Costumo dizer que a produção artística atual é bem interessante. A mídia é que é medíocre. Mas há sinais também do surgimento de uma outra geração de jornalistas e críticos, mais vivos, com mais tesão, e mais informados. Quem sabe, o quadro mude.
“Meu pai era ferroviário. Eu tinha passe livre, viajava de graça. Lembro nitidamente daquele murmúrio provocado pelas rodas de ferro nos trilhos: telék-telék. Era delicioso. Mas o que me fez tomar a decisão de escrever poesia mesmo foi a guitarra de Jimi Hendrix. Quando ouvi Hey Joe, deu um estalo. Pensei: quero uma linguagem escrita que tenha essa mesma eletricidade.”
(Site Capitu, São Paulo/SP 2003)
CAPITU – Quando começou a escrever?
Ademir Assunção – Aos 16 anos. Foi puro acaso. Eu não era um leitor. Ao contrário, detestava poesia. Os professores, no colégio, conseguiram me afastar da poesia. Não tinham a menor paixão. Empurravam alexandrinos e decassílabos goela abaixo da garotada. Nem os cus-de-ferro aguentavam. A maioria não se recuperou jamais do trauma.
CAPITU – Houve algum livro, texto, ou poema que tenha incitado essa vontade de escrever?
Ademir – Antes de aprender a ler, eu adorava ouvir as histórias contadas pelas minhas tias e pela minha mãe, que tinham origem rural. Eram normalmente histórias de assombração. Eu adorava o ritmo da fala. Havia uma musicalidade naquilo que me embalava. E me enchia de pavor, claro. Outra coisa que me marcou muito foi o ritmo do trem. Meu pai era ferroviário. Eu tinha passe livre, viajava de graça. Lembro nitidamente ainda hoje daquele murmúrio provocado pelas rodas de ferro nos trilhos: telék-telék. Era delicioso. Mas o que me fez tomar a decisão de escrever poesia mesmo foi a guitarra de Jimi Hendrix. Quando ouvi Hey Joe, deu um estalo. Eu pensei: quero uma linguagem escrita que tenha essa mesma eletricidade.
CAPITU – Por que começou pela poesia?
Ademir – Nunca tive saco para contar histórias. Adorava ouvir boas histórias. Gosto ainda hoje. Mas não sou bom para contar histórias. Eu me distraio, começo a prestar mais atenção no ritmo das frases, nos sons das palavras e, quando percebo, nem sei mais o que estava contando.
CAPITU – Acredita que sua prosa tem muita influencia da poesia?
Ademir – Sim. Eu não me interesso em contar histórias, como disse. Meu interesse é pelos limites da linguagem. Minha prosa é prosa de poeta. É uma prosa cheia de segundas e terceiras intenções.
CAPITU – Como nascem os poemas?
Ademir – De todos os modos possíveis: alguns nascem de cabeça para baixo, outros esperneiam e não querem sair, outros surgem repentinamente no meio da sala e logo começam a desarrumar tudo na minha vida. Os meus preferidos são aqueles que permanecem imóveis durante alguns segundos ou semanas inteiras, me desafiando, me olhando de dentro do aquário cheio não de água, mas de sangue.
CAPITU – No livro “Cinemitologias” os desenhos de símbolos têm presença forte. Como você vê esse diálogo direto do texto com a imagem?
Ademir – São desenhos indígenas. São grafismos que habitam uma memória ancestral. Eu pensei Cinemitologias como um filminho super-8, onde texto e grafismo criassem uma superposição. O livro é um diário do sonho, do tempo dormido. É um mergulho no inconsciente. Por isso a associação com cinema e desenhos indígenas.
CAPITU – Gostaria que você comentasse cada um de seus livros, como foi o processo de feitura e o que você pensa hoje deles.
Ademir – Livros são feitos para mudar a vida das pessoas. É assim que penso. É assim que escrevo. Cada um dos meus livros mudou, ao menos, a minha vida. Não sou um entertainment. Isso eu deixo para o Jô Soares. Então, o que posso dizer de cada um dos meus livros é que eles me colocaram cada vez mais diante do abismo.
CAPITU – Você participou da antologia “Geração 90 – Os trangressores”, o que pensa da participação em antologias?
Ademir – Acho legal perfilar um autor ao lado do outro em um mesmo espaço físico. Assim, o leitor pode comparar a força, a profundidade, a fagulha que se desprende de cada autor, de cada texto.
CAPITU – Você é um dos editores da revista “Coyote”. Como vê o surgimento de tantas revistas nos últimos meses?
Ademir – O surgimento de tantas revistas desmente a idéia de que não há atrito de idéias, correntes divergentes, maneiras diferentes de reagir ao mundo contemporâneo. Cada uma das revistas procura mostrar sua visão, seu elenco de autores preferidos. Acho isso ótimo. Há muitas coincidências e muitas divergências. Espero que os leitores estejam percebendo isso.
CAPITU – Como vê a cena literária hoje?
Ademir – Eu não estou preocupado com a cena literária. Estou interessado nas respostas que poetas, escritores, artistas em geral, conseguem dar às perguntas do mundo. Pessoas como Douglas Diegues, Marcelo Mirisola, Micheliny Verunsck, Mário Bortolotto, Rodrigo Garcia Lopes, Fernanda D’Umbra, Cláudio Daniel, Nelson de Oliveira, Edvaldo Santana (há muitos outros) me desafiam o tempo todo para continuar radicalizando cada vez mais, na vida e na arte. A cena que eu vejo e que participo é muito intensa.
CAPITU – E o novo livro? Como foi fazer e quais expectativas tem em relação a ele?
Ademir – Escrevi o livro em três meses e o deixei na gaveta durante quase três anos. Adorável Criatura Frankenstein, no entanto, parece um livro premonitório. Os personagens centrais são anônimos. Os coadjuvantes são celebridades de toda espécie: ídolos pop, atores de telenovela, políticos, personagens de desenho animado. Não se espante se você se deparar, em um dos capítulos, com um diálogo sobre a política nacional entre o senador Antônio Carlos Magalhães e o Patolino. No fundo, o livro ironiza e questiona a Grande Máquina de Montagem da Realidade. Mas há outras camadas, metalingüisticas e mitológicas. Espero que os leitores percebam. E riam da própria loucura em que estamos metidos.
“Não sou nem um poeta nem uma pessoa mística. Apenas tenho convicção de que há muitas maneiras de perceber a realidade. Ou melhor: que existem muitas camadas de realidade. Descobri isso por experiência própria, experimentando cogumelos alucinógenos e praticando técnicas de meditação zen.”
(Site Weblivros, São Paulo/SP, junho de 2002)
REYNALDO DAMAZIO – O título de seu novo livro de poemas, Zona Branca, foi retirado de uma ópera rock do músico norte-americano Frank Zappa. Qual é a relação de sua poesia com a cultura pop? Que outras referências dialogam em seu trabalho?
Ademir Assunção – Na verdade eu não me interesso muito por aquilo que a indústria do entretenimento passou a chamar de “cultura pop”. Esse conceito se transformou em um guarda-chuva para abrigar celebridades instantâneas, com os bolsos cheios de dinheiro e a cabeça cheia de merda. Zappa não é “pop”. Ao contrário: sua obra toda é uma crítica demolidora da babaquice “pop” norte-americana. A própria ópera-rock Joe’s Garage, da qual decalquei a idéia da “zona branca”, é uma sátira corrosiva dessa indústria de clones descartáveis. É uma sátira também da mediocridade da imprensa, da truculência bélica do Pentágono, do pedantismo universitário pseudo-erudito, do exibicionismo sexual, do catolicismo repressor. A obra de Frank Zappa é extremamente complexa. Discos como Hot Rats, Them or us, Shut up ‘n’ play yer guitar, The man from Utopia e Joe’s Garage, por exemplo, são obras-primas. Zappa ampliou tanto as fronteiras do rock’n’roll quanto da música de concerto contemporânea. Compôs para a Orquestra Sinfônica de Londres, cujo concerto foi regido por ninguém menos que Pierre Boulez. Seus últimos trabalhos, inclusive, foram escritos para orquestra: Civilization Phaze III e Yellow Shark. São obras contemporâneas que podem ser colocadas ao lado das composições de Varése, Stockhausen, Ligeti, Bério, Bartók e Webern. Com uma diferença: em vez de estar ancorado em uma tradição européia, ele traz toda a irreverência e o frescor de uma nova cultura. Há muita confusão em torno da cultura ou das culturas produzidas pelo mundo contemporâneo. E um pouco de desinformação. Muitos desconhecem que há verdadeiras obras-primas nas histórias em quadrinhos, por exemplo. V de Vingança, Moonshadow, Orquídea Negra, Sandman são fantásticos. Essas manifestações artísticas todas me interessam, tanto quanto me interesso por Kafka, Pound, Dante, Borges e Rimbaud. Portanto, são muitas as referências na minha poesia, na minha escrita e na minha visão de mundo. Sou um ser híbrido. Uma espécie de Frankenstein. Mas meu critério seletivo se assemelha ao que Nietzsche escreveu, e que usei como epígrafe em uma das sessões do Zona Branca: “De tudo o que se escreve aprecio somente aquilo que é escrito com o próprio sangue”.
REYNALDO – Como você explica no livro, “zona branca” é um tipo de presídio de segurança máxima, localizado fora do espaço-tempo para abrigar rebeldes e dissidentes. Isso seria uma metáfora para a poesia? Na sua opinião, qual o espaço ocupado pela poesia hoje, num ambiente cultural bárbaro e caótico?
Ademir – É uma metáfora não só para a poesia mas para a arte em geral. Não devemos nos iludir: as esferas de poder político e social não gostam dos artistas. Artistas causam muitos problemas. Questionam, criticam, ironizam, desequilibram os jogos de poder. Como poeta, tenho nas mãos uma ferramenta capaz de causar alterações perceptivas. Primeiro, em mim mesmo. Então, batalho para que a poesia contamine mais pessoas. O espaço que a poesia ocupa é exatamente aquele que os poetas conseguem fazer com que ela ocupe. Se a poesia está circulando em meios muito restritos, há uma parcela de culpa dos próprios poetas. Tenho muitos amigos e amigas mais jovens, que desconheciam poesia. Quando leram Rimbaud, Ginsberg, Cruz e Souza, Leminski, Augusto dos Anjos, Fernando Pessoa, enlouqueceram, se apaixonaram por poesia. Qualquer pessoa que tenha sangue quente correndo nas veias cai de quatro ao ler um poema como “O Assinalado”, de Cruz e Souza. Penso que os poetas devem abandonar os presídios, a “zona branca”, e invadir as cidades, difundir a poesia. Ou ficaremos nos cantos, chorando como viúvas, lamentando eternamente a falta de leitores.
REYNALDO – Nota-se nos poemas de Zona Branca uma grande variedade de construção, indo da forma mais compacta e fragmentada (como nas seções “Cosmorama” e “O lótus nasce na lama”) ao texto mais discursivo (como em “Jazz kamaiurá” e “Descida aos inferninhos”), de extração beat. Esse percurso é parte de uma experimentação programada ou nasce de uma inquietação pessoal?
Ademir – Posso estar redondamente enganado, mas não concordo que os poemas das sessões “Jazz Kamaiurá” e “Descida aos Inferninhos” sejam discursivos e de extração “beat”. Prefiro acreditar que são poemas construídos de olho (e ouvido) na oralidade. Na construção desses poemas me preocupei bastante com a musicalidade das palavras, com o ritmo dos versos, de forma que pudessem ser lidos, com certa fluência, em voz alta. Utilizei muitas aliterações, assonâncias, paronomásias, espelhismos, rimas toantes e outros recursos. São poemas que me deram um trabalho danado. Não surgiram num jorro. Sem dúvida, são diferentes, por exemplo, dos da sessão “Cosmorama”, na qual estava buscando aproximações possíveis com a linguagem cinematográfica. Penso que todo o percurso da minha poesia surge tanto da inquietação pessoal quanto da experimentação programada. Digamos que já tenho um certo software instalado na minha sensibilidade poética, que determina certos critérios no momento da criação. Mas a composição de cada poema não se trata de algo inteiramente programado. Senão deixaria de ser criação. O processo criativo, ao menos no meu caso, tem muito de imprevisto, de improviso, de indeterminação. Como a própria vida. Programamos muitas metas para nossas vidas. Algumas alcançamos, outras abandonamos. E, de repente, surgem fatos que alteram totalmente os rumos que havíamos traçado. Uma vida programada em detalhes, do começo ao fim, seria algo impossível. E se fosse possível, seria um tédio terrível.
REYNALDO – Como você situa seu novo livro, não em termos evolutivos, mas numa perspectiva de conjunto, no contexto de sua obra? Qual a relação de Zona Branca com A Máquina Peluda, de 1997, por exemplo?
Ademir – É muito difícil, para mim, ter uma visão total da minha própria criação. Sei das intenções, dos critérios, dos impulsos, das pesquisas que norteiam cada livro. Talvez A Máquina Peluda seja um livro mais irônico e Zona Branca mais brutal. Por outro lado, há uma certa delicadeza em alguns poemas de Zona Branca e altas doses de “brutalismo” em muitos textos de A Máquina Peluda. Se compararmos com um ritual antropófago, eu diria que A Máquina Peluda é o momento da ironia ao inimigo capturado e Zona Branca é o momento da ritualização da carne devorada.
REYNALDO – Levando em consideração as críticas a seu livro, na revista Cult e no Suplemento Literário de Minas Gerais, você concorda que existe um hiato entre criação e reflexão na literatura brasileira contemporânea, como muitos poetas apontam, ou a tensão existente é reflexo do próprio cenário desarticulado e mesquinho?
Ademir – Concordo que há um hiato entre criação e reflexão. As novas gerações de poetas ainda estão sendo analisadas com critérios desatualizados. Até certo ponto, isso é natural. Um crítico parnasiano não poderia compreender um poema modernista. Cada geração de artistas forma sua própria geração de críticos e de leitores. Sabemos também que há muita mesquinharia, muito maucaratismo e muitos jogos de poder no meio artístico. É natural que idéias e visões artísticas se confrontem, entrem em atrito. Isso evita a estagnação, gera movimento. Mas tentar esconder o trabalho dos outros para ressaltar o seu, como alguns fazem, isso é uma lástima. É um esforço em vão. No fim das contas, aquilo que é forte, denso, perturbador, acaba vindo à tona.
REYNALDO – O crítico Alfredo Bosi afirmou que a literatura brasileira mais recente estaria dividida em dois extremos: de um lado o mimetismo rasteiro e brutal da realidade pós-moderna e de outro a pesquisa erudita, com os cacoetes de um hermetismo acadêmico. É claro que a observação do crítico tem uma dimensão panorâmica, generalizante. Ainda assim, você acha que os escritores brasileiros de agora patinam entre o imediatismo e a erudição? Que resposta a poesia pode dar à realidade virtual do ciberespaço, à brutalidade do mercado hipermidiático, da economia globalizada, da cruzada internacional contra o terrorismo?
Ademir – Atualmente, como em qualquer outra época, há poetas instigantes, criativos, informados, inventivos, sintonizados com as mudanças do mundo, e há poetas que correm em um terreno já pavimentado, dentro de uma presumível faixa de segurança. Os poetas que mais admiro não estão patinando entre o imediatismo e a erudição. Estão fazendo poesia vigorosa. Essa é a melhor resposta que os poetas podem dar à realidade contemporânea: criar uma poesia tão vigorosa que seja capaz de se contrapor ao barbarismo da ignorância.
REYNALDO – Ainda que haja muita queixa de poetas sobre os espaços para criação e de crítica da poesia, muitas revistas literárias têm surgido, como Babel, Sebastião, Sibila, Rodapé. A revista Inimigo Rumor chegou à 11ª edição, firmando uma importante parceria com Portugal. A revista Medusa, à qual você está ligado, também mantém uma atuação relevante a partir de Curitiba. Na Argentina, a revista tsé-tsé vem realizando um belo trabalho de convergência de poéticas latino-americanas. Que funções desempenham essas revistas, em sua opinião, no intercâmbio entre poetas, críticos e leitores?
Ademir – Há também uma revista de Teresina, muito interessante, a Pulsar. Essas revistas todas estão compondo um painel da poesia contemporânea e mostrando que, ao contrário do que alguns críticos afirmam, há muita riqueza poética nos dias de hoje. A própria Cult, com uma tiragem de 30 mil exemplares, tem prestado um serviço importante na difusão e na reflexão sobre a poesia atual. Seria fundamental também um trabalho com as escolas de primeiro e segundo grau. O Ministério da Cultura ou mesmo os professores, por iniciativa própria, poderiam levar mais poesia e mais poetas vivos para dentro das escolas. É preciso perder o medo da insurreição da poesia.
REYNALDO – Há elementos xamânicos e budistas em seus poemas. Você se considera um poeta místico? A poesia fala mais ao espírito ou ao pensamento?
Ademir – Não sou nem um poeta nem uma pessoa mística. Apenas tenho convicção de que há muitas maneiras de perceber a realidade. Ou melhor: que existem muitas camadas de realidade. Descobri isso por experiência própria, experimentando cogumelos alucinógenos e praticando técnicas de meditação zen. Há muitos povos no planeta, muitas culturas, muitas linguagens. Os xamãs dominam uma linguagem que os “civilizados” perderam. Através dos meus estudos estou tentando despertar esta memória ancestral em minha própria mente. Um livro como Technicians of the Sacred, de Jerome Rothenberg, é um oráculo que deveria ser consultado por todos aqueles que se empenham em descobrir outras possibilidades perceptivas. Neste livro, Rothenberg expande a idéia de poesia ao buscar as tradições poéticas de povos ancestrais, como os aborígenes australianos, os pigmeus, os esquimós, os indígenas americanos. Para esses povos, a poesia é uma linguagem tão poderosa que se torna capaz até de curar um enfermo.
“Cinema é poesia em movimento. Ran, de Akira Kurosawa, ou O Livro de Cabeceira, de Peter Greenaway, são tão impressionantes quanto O Barco Bêbado, de Rimbaud ou a Divina Comédia, de Dante. Acredito que o imaginário contemporâneo está contaminado pela cultura cinematográfica, assim como os povos ancestrais se nutriam das mitologias.”
(O Tempo, Belo Horizonte/MG, 23 de junho de 2001)
Ricardo Aleixo
Mesmo que deformadores de opinião — como alguns membros do baixo clero acadêmico e certos resenhadores reincidentes nos grandes jornais — continuem a diagnosticar o “estágio terminal” da poesia brasileira, ela dá, aqui e ali, sinais de que vai bem, resistindo, inventando moda e botando banca, toda prosa. Ademir Assunção, paranaense de Londrina, da safra de 1961, radicado em São Paulo, é um dos nomes que não se pode deixar de citar quando se fala da produção atual de poesia no Brasil. Não bastasse o impacto de sua arte engenhosa, cheia de som, imagens vertiginosas (“sim, chegamos à beira do penhasco/ cego sem asa-delta”) e fúria, Ademir tem tentado botar lenha na fogueira do débil debate estético-cultural brasileiro, através de artigos esparsos — não raro, propensos à polêmica —, e principalmente, da excelente revista “Medusa”, do Paraná, que edita, ao lado dos poetas Ricardo Corona e Rodrigo Garcia Lopes.*
Como poeta, Ademir Assunção situa-se entre os que, sem renegar as conquistas das vanguardas, dedicam-se à exploração de possibilidades ainda não esgotadas da escrita em versos e à utilização criativa do patrimônio textual das culturas extra-européias — com sua rítmica e sua imagética exuberantes. Na prosa, ele é autor de “A Máquina Peluda”, que define como um livro “radicalmente antropófago” (que “come o que vê e devolve uma imagem às vezes zombeteira, às vezes apavorante, de uma sociedade alucinada”), e “Cinemitologias”, no qual se apropria da mitopoética de diversas culturas e de “imagens de sonhos, através de uma linguagem cinematográfica”. O procedimento utilizado na composição de “Cinemitologias” serviu, também, como base para a elaboração de muitos dos poemas do recém-lançado “Zona Branca” (Ed. Altana), que tem programação visual assinada por Sebastião Nunes.
Esse fato, que nada tem a ver com “apadrinhamento”, como é tão comum por aqui, já diz muito de um livro e de seu criador, nessa terra onde todos os dias se vê, em plena ação predatória, “tanto negócio e tanto negociante”, como diz o verso de Gregório de Mattos usado como epígrafe do belo “Anti-Ode Aos Publicitários (De Um Guerrilheiro Morto Em Combate)”, poema que começa assim: “querer eu quero/ que vocês morram// sufocados em nuvens/ de inseticidas// talvez limpóis, bombris/ e bemdefuntos”.
A pretexto do lançamento de “Zona Branca” — título extraído da ópera-rock “Joe’s Garage”, de Frank Zappa — conversei por email com o poeta. Confira.
RICARDO ALEIXO – Ademir, como você situa “Zona Branca” em relação a “LSD Nô”, seu primeiro livro de poesia?
Ademir Assunção – “Zona Branca” representa um adensamento da minha linguagem e um mergulho no inconsciente coletivo. O livro está cheio de imagens estranhas, mitológicas, trazidas dos sonhos e do cinema. O que chamamos de “realidade” acaba limitando demais a nossa percepção. Estou interessado em explorar outros níveis de consciência e penso que isto está bem evidente no livro. No “LSD Nô” essa atmosfera onírica e cinematográfica já aparecia, mas ainda um tanto tênue. O que saltava mais aos olhos era a musicalidade das palavras e dos versos. É que minha poesia, em suas origens, está mais ligada à guitarra elétrica de Jimi Hendrix, ao silêncio zen e aos tambores dos terreiros negros do que aos versos de Drummond, Bandeira e Mário de Andrade.
RICARDO – Fale um pouco sobre suas incursões pela narrativa, com “A Máquina Peluda” e “Cinemitologias”.
Ademir – Em “A Máquina Peluda” tentei explorar os limites da ficção e da realidade na era da comunicação de massas. Resolvi fazer uma mixagem de personagens reais, como Pero Vaz de Caminha, Roberto Marinho ou Caetano Veloso, com personagens de outros livros e de desenhos animados, como a Escrava Isaura, Pernalonga e os Piratas do Capitão Gancho. Não é assim que vemos o mundo através da televisão? No grande processo de manipulação criado diariamente pela comunicação de massas, Delfim Neto passa a ser tão fictício quanto Mickey Mouse e Pernalonga tão real quanto Caetano Veloso. Penso que “A Máquina Peluda” é um livro radicalmente antropófago: come o que vê pela frente e devolve uma imagem às vezes zombeteira, às vezes apavorante, de uma sociedade alucinada. “Cinemitologias” é outra coisa: trabalhei com mitos de várias culturas, inclusive indígenas, e imagens de sonhos, através de uma linguagem cinematográfica. De certa forma, o livro é um laboratório para muitos poemas do “Zona Branca”.
RICARDO – Você é dos poucos, na nossa geração, que propõe um debate que vai além do estético, ou que, por outra visada, tenta ampliar o campo de significados do “estético”. Como você avalia o momento atual da poesia e da cultura no país? Estamos, mais uma vez, perdendo “o bonde e a esperança”?
Ademir – Não penso que estamos vivendo um vazio cultural. Não concordo com a idéia de que tudo aconteceu no passado. Há excelentes poetas, compositores, dramaturgos, atores, produzindo hoje. O caldo artístico é rico e diversificado. A difusão é que é medíocre. Não existe uma política séria de formação de leitores nas universidades, nas escolas de segundo grau, nos canais de comunicação. Imagine se tivéssemos um ótimo programa de poesia e literatura na televisão, se os jornais realmente se interessassem em se abrir para a cultura viva, inquieta, instigante que vem sendo produzida. Mas a grande indústria está mais interessada na vulgaridade, na burrice e no conformismo do baixo consumo. É a lógica do capitalismo selvagem que estamos vivendo: emburrecer as pessoas e ganhar muito dinheiro.
RICARDO – Falemos da “Medusa”. Qual é o saldo da experiência da revista, depois de 10 números publicados?
Ademir – O saldo foi mostrar que havia muito mais arte, poesia e cultura entre o norte e o sul, o leste e o oeste, do que supunha a vã filosofia dos lobbies universitários e jornalísticos. Pautamos o trabalho na “Medusa” por dois eixos principais: mostrar riqueza e densidade cultural e lutar contra o conformismo.
RICARDO – A experiência de edição da revista te colocou em contato com poetas do Brasil inteiro. São Paulo e Rio continuam a dominar a cena (em termos tanto de concentração de “vocações poéticas” quanto de política literária), ou a grande mídia continua a comer mosca quanto ao que se passa nos demais centros?
Ademir – A grande imprensa do eixo Rio-São Paulo ou está totalmente desinformada ou pratica uma espécie de censura branca. Mas existem jornalistas que estão começando a perceber que a cultura brasileira é muito maior do que a sopinha rala que aparece nos cadernos culturais.
RICARDO – Voltando à sua poesia, seus textos sempre remetem à música, enquanto tema e também enquanto meta, parece. Procede?
Ademir – Sim. Procuro manter sempre na mira o pensamento de Nietzsche em relação à poesia: “A música mágica e a conjuração parecem ter sido a forma primitiva e a origem de toda a poesia. O homem acostumou-se durante milênios com a conexão do idioma com o ritmo da música. O poder mágico da dicção rítmica tem sido paulatinamente esquecido. Distanciamo-nos cada vez mais de nossas origens”. Eu tento resgatar essa dicção rítmica. Quero uma poesia que seja capaz de “chamar o santo”.
RICARDO – Você toca algum instrumento ou canta? Nas parcerias com Itamar Assumpção, Edvaldo Santana, Madan e outros, você cria textos especialmente para serem musicados ou eles trabalham a partir de material já pronto?
Ademir – Sei tocar meia dúzia de canções no violão, e muito mal. Canto apenas no banheiro. Mas tenho um ouvido bastante musical. Gosto tanto da música dos pigmeus, quanto de Hermeto Pascoal, Miles Davis, Stravinski e Frank Zappa. Quanto às minhas parcerias, a maioria é de poemas que acabam se transformando em canções. Tenho uma parceria com Itamar Assumpção que é muito curiosa (“bem que você podia/ pintar na sala/ da minha tarde vazia”). Ele conseguiu transformar um haicai em música. Talvez seja uma das letras mais curtas da música popular brasileira.
RICARDO – O cinema também é um elemento bastante presente em seus trabalhos. Você tem muitos poemas que remetem a filmes, e a própria estrutura textual (a imagética, sobretudo) deve algo ao cinema. Comente isso.
Ademir – Cinema é poesia em movimento. “Ran”, de Akira Kurosawa, ou “O Livro de Cabeceira”, de Peter Greenaway são tão impressionantes quanto “O Barco Bêbado”, de Rimbaud ou a “Divina Comédia”, de Dante. Acredito que o imaginário contemporâneo está contaminado pela cultura cinematográfica, assim como os povos ancestrais se nutriam das mitologias. Na minha poesia, procuro ir além da referência aos filmes que mais gosto. Tento incorporar elementos da linguagem do cinema, como cortes bruscos, sequências, closes, panorâmicas. É claro que a escrita é bastante limitada neste sentido. Mas é possível conseguir resultados animadores.
RICARDO – No plano temático, você tem trabalhado com as mitopoéticas extra-européias. Dá para dizer que essa é uma tendência que se abre na poesia brasileira contemporânea, já que muitos outros poetas também vêm se dedicando a incorporar a seus projetos as textualidades e procedimentos africanos e ameríndios?
Ademir – Você e Antonio Risério fizeram um trabalho impressionante com os orikis africanos. Josely Vianna Baptista, no Paraná, e Douglas Diegues, no Mato Grosso do Sul, vêm trabalhando há anos com narrativas tupi-guaranis. Mas a grande maioria dos poetas brasileiros ainda não percebeu a riqueza das nossas culturas ancestrais. Oswald de Andrade, ao contrário, vivia repetindo no final da vida: “salvem os índios; eles são verdadeiras bibliotecas vivas.”
RICARDO – Uma velha pendenga: jornalismo e literatura. Uns dizem que o primeiro inibe a segunda. E há quem diga que o “jornalário” ensina a disciplina necessária à criação. De que lado você samba?
Ademir – O jornalismo contribuiu muito na minha disciplina criativa. Mas é que eu sou apaixonado pela escrita. Sempre encarei o jornalismo com paixão, e não apenas como profissão. Hoje, não tenho mais saco de trabalhar diariamente em uma redação. O jornalismo se burocratizou demais. Está muito chato. Se aparecesse algum caderno cultural em que se pudesse exercitar a criatividade e a ousadia, aí sim, acho que voltaria.
RICARDO – “Paulo Leminski é o poeta mais intenso que já conheci”, disse você a Toninho Vaz, em depoimento publicado no livro “Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim”. Queria que você falasse do impacto da presença do “cachorrolouco” na sua vida e no seu trabalho.
Ademir – Leminski não fazia poesia apenas. Ele era poeta. Em tempo integral. Vivia poesia. Na minha opinião, descendia da linhagem direta de Bashô e Rimbaud. Aprendi muito com ele. Cada conversa era uma aula viva de poesia. Com Leminski percebi definitivamente que a poesia é uma das brincadeiras mais sérias que um ser humano pode cultivar.
* A revista Medusa era editada também por Eliana Borges, responsável pelo projeto gráfico.
“William Burroughs dizia que a lógica aristotélica é um desastre na trajetória humana. Porque podemos entupir nossas cabeças de conceitos e aniquilar nossa percepção direta das coisas. Quando escrevi os poemas do LSD Nô eu estava interessado em fraturar as palavras, arrancar com as unhas as crostas que as encobrem. Queria a palavra em carne viva.”
ADEMIR ASSUNÇÃO – OU A PALAVRA EM CHAMAS CONTRA O CONFORMISMO NEOCOLONIAL
(Folha do Povo, Campo Grande/MS, 26 de agosto de 2001)
Douglas Diegues
Ademir Assunção é um dos novíssimos poetas brasileiros que estão incendiando a placidez da paisagem neocolonizada com um fogo novo — um fogo xamânico e erótico, indignado e zen, carinhoso e feroz ao mesmo tempo.
Isso é o que posso dizer agora com meus botões depois de conviver por quase um mês com Zona Branca (editora Altana, 2001), o novo livro de poemas de Ademir Assunção, que já circula como rocio subversivo de mão em mão & pelas boas livrarias do país.
A qualidade de fogo da palavra de Ademir Assunção situa-o entre os poetas mais diferentes de sua geração — uma geração de poetas muito parecidos em sua grande maioria.
Seu modo de tratar as palavras e as formas que inventa para conceber o poema são de uma saúde essencial para uma certa novíssima poesia contemporânea que resiste como água à neocolonização.
Ademir Assunção morou um tempo em Londrina (Pr), onde vinculou-se a uma certa vanguarda clandestina que, partindo da periferia, começava a ocupar seu próprio centro: Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção, Paulo Leminski, Alice Ruiz, Rodrigo Garcia Lopes, Nelson Capucho, Wilson Bueno, Maurício Arruda Mendonça e Marcos Losnak, o editor da esplêndida revista K’AN, entre outros. Alguns dos músicos mais confiáveis da cena contemporânea — os que não viraram mercadores do pop — como Itamar Assumpção, Edvaldo Santana ou Madan, são seus parceiros em algumas impagáveis canções de vanguarda.
Além de Zona Branca, Ademir Assunção já publicou LSD Nô (Ed. Iluminuras), seu primeiro livro de poemas; Cinemitologias (Ed. Ciência do Acidente), híbrido inclassificável; e A Máquina Peluda (Ateliê Editorial).
Conforme nos indica generosamente o autor na “Carta aos navegantes”, incorporada ao final do livro, Zona Branca é um “título inspirado na ópera-rock Joe’s Garage, do compositor norte-americano Frank Zappa. Em versão livre e imaginosa, White Zone seria uma espécie de presídio construído fora do espaçotempo para onde são enviados os rebeldes, dissidentes e arruaceiros”. A capa, o projeto gráfico e a arte-final são do poeta Sebastião Nunes, um dos ícones da resistência ao mal-estar da cultura neste País de almas que se vendem facilmente. Na contracapa, assim começa o poeta Glauco Mattoso a sua apresentação de Ademir Assunção: “Sei que um poeta nunca se completa, mas Ademir Assunção caracteriza o poeta que poderia ser chamado de completo, no sentido dos sentidos: tem olhar oswaldiano, ouvido de músico, tato psicossocial, faro jornalístico e paladar tipicamente brasileiro, embora globalmente antropofágico.”
Além de ser um poeta que usa o fogo da palavra com muita propriedade, Ademir Assunção também é um jornalista de vanguarda e um guerrilheiro cultural em permanente atividade no front de algumas das mais importantes revistas literárias do País, sempre contribuindo com a boa energia de seus textos para a libertação da mente de seus leitores dos dogmas e das travações literárias em geral…
Ademir foi um dos editores da revista Medusa, de Curitiba, e participou recentemente da antologia 30 poetas brasileiros organizada por Reynaldo Jimenéz, da revista tsé=tsé, de Buenos Aires, da qual é também um dos correspondentes em São Paulo.
Numa época em que a linguagem utilitária se degrada cada vez mais ao ser usada de modo abominavelmente egoísta e mercantilista, para confundir, entorpecer, embrutecer e enganar ingênuos consumidores de signos e de produtos, a fé de Ademir Assunção no fogo primitivo da palavra paralela à sua desconfiança zen da palavra, também o vincula mais estreitamente às poéticas xamanísticas e orientais, assim como o diferencia com maior clareza da maioria dos poetas de sua geração, que parecem não acreditar mais na força de rocio antigo da palavra e nem ter mais nada a dizer…
DOUGLAS DIEGUES – Seu primeiro livro é o LSD NÔ… e agora você está colocando na roda seu segundo livro de poemas, “ZONA BRANCA”… Gostaria que você falasse tudo o que pudesse de ambos…
Ademir Assunção – Uma das experiências fundamentais na minha vida foi ter conhecido os cogumelos alucinógenos. Com eles, percebi que o que chamamos de “realidade” é apenas uma medonha redução dos nossos canais perceptivos. Outra experiência fundamental foi conhecer o zen. Se os cogumelos me abriram as portas da percepção através do “desregramento dos sentidos”, como disse Rimbaud, o zen também me ensinou a perceber outras realidades, mas através da disciplina, da concentração. Essas duas experiências criaram em mim uma profunda desconfiança com as palavras. William Burroughs dizia que a lógica aristotélica é um desastre na trajetória humana. Porque podemos entupir nossas cabeças de conceitos e aniquilar nossa percepção direta das coisas. Quando escrevi os poemas do LSD Nô eu estava interessado em fraturar as palavras, arrancar com as unhas as crostas que as encobrem. Queria a palavra em carne viva. Como sempre fui muito ligado à música, tentei fazer com que as palavras soassem como sons de uma cítara indiana, como mantras imantados pela eletricidade de uma guitarra elétrica. Zona Branca é um desenvolvimento dessas mesmas idéias. Só que, neste livro, procurei trabalhar ao máximo as imagens, como se os poemas fossem pequenos filmes sonhados por um nômade cego e louco.
DOUGLAS – Você também me enviou A MÁQUINA PELUDA, livro de prosa experimental & antropophágica… Fale-me também tudo o que puder dessa curiosa máquina:
Ademir – A Máquina Peluda é um livro de prosa escrito por um poeta. De alguém que não tem uma visão passiva diante da linguagem. O livro expressa minha ancestral desconfiança com as palavras e com a narrativa linear. Expressa também meu desconforto de viver em uma sociedade doente e desritualizada. A maior parte do tempo me sinto como aquele cachorro do poema de Fernando Pessoa: “Deitei fora a máscara e dormi no vestiário/ Como um cão tolerado pela gerência”. Mas como não tenho vocação para abanar o rabo, acabo arrumando uma saída pelo humor. Com A Máquina Peluda procurei tirar um enorme sarro de tudo o que acho absurdo: o consumismo, a publicidade, o mundinho da literatura acadêmica e a manipulação política, religiosa, histórica e jornalística. Creio que o livro tem parentesco com a antropofagia de Oswald de Andrade, com o humor cético de Beckett e com a escrita anárquica de Leminski.
DOUGLAS – Você também escreveu o CINEMITOLOGIAS, que você ainda não me enviou, mas do qual eu já li três fragmentos na revista CIGARRA… e que parece um texto híbrido meio prosa e poesia ao mesmo tempo…
Ademir – Isso, é uma prosa-poética com ritmo de cinema americano. Trabalhei com imagens de sonhos e de mitologias ancestrais. Estou cada vez mais interessado em cavocar no subsolo da consciência humana. Já que vivemos numa época de alucinação coletiva, com uma incessante enxurrada de informações visuais, auditivas e verbais, procuro encontrar alguma essência no meio do excesso. Cinemitologias teve apenas 100 exemplares e está totalmente esgotado. Minha idéia era essa mesma: fazer um objeto que se tornasse raridade em pouco tempo. Apenas 100 pessoas possuem um exemplar.
DOUGLAS – O que é um bom poema para você…? e um poema ruim…?
Ademir – Há uma frase de Nietzsche que expressa o que penso sobre este assunto: “De tudo o que se escreve aprecio somente o que é escrito com o próprio sangue.” Você também escreveu algo belíssimo: “O fogo da palavra pode incendiar uma paisagem.” Os poemas que mais me impressionam são aqueles escritos com este espírito.
DOUGLAS – Itamar Assumpção e o Edvaldo Santana já musicaram seus poemas… Fale-me do que você pensa que seja a boa letra de música que sempre acaba compensando o lixo industrial… Gostaria de ouvir você falar dessa nova safra de músicos que começam a se fazer ouvir, como Madan e os outros…
Ademir – Na orelha do livro Zona Branca escrevi uma espécie de fábula contemporânea utilizando a idéia da White Zone, que encontrei no disco Joe’s Garage, de Frank Zappa. Zona Branca seria um presídio de segurança máxima para onde são enviados os rebeldes, dissidentes e arruaceiros. Menos que uma penitenciária convencional, com muros altos e grades de ferro, trata-se de uma área de exclusão localizada fora do espaçotempo. Aqueles que são enviados para lá e que conseguem sobreviver “testemunham a cooptação de muitos artistas, transformados em celebridades e burgueses decadentes. Percebem a grosseira manipulação de fatos e idéias, responsável pelo ostracismo de criadores brilhantes e pelo sucesso de clones descartáveis.” Com isso, quis criar uma metáfora da situação artística brasileira atual. Há criadores brilhantes em atividade no Brasil que estão sendo brutalmente empurrados para a margem, enquanto a indústria veicula clones medíocres e descartáveis. E o pior de tudo: com a condescendência de “antigos rebeldes”, que acabaram se tornando celebridades conformistas, totalmente enquadradas dentro do star sistem. Itamar Assumpção é hoje um dos mais vivos e criativos poetas da música popular brasileira. É de uma riqueza imensa. Edvaldo Santana, Madan, Titane, Lenine, Bernardo Pelegrini, são grandes artistas, que poucos conhecem. Por quê? Porque a indústria musical, incluindo as emissoras de rádio e televisão, prefere veicular o lixo, a mediocridade, a repetição, o conformismo. Isso é um crime que deve ser cobrado. Ou vamos nos conformar em viver num país cada vez mais idiota?
DOUGLAS – O que você me diz da poesia no Brasil hoje?
Ademir – A poesia vive uma situação semelhante. Há ótimos poetas produzindo. Posso citar alguns como Rodrigo Garcia Lopes, Maurício Arruda Mendonça, Ricardo Aleixo, Josely Vianna Baptista, Marcos Losnak, Dennis Radunz, Claudio Daniel, Mário Bortolotto, Joca Renners Terron, Marcelo Montenegro, Elson Fróes. Estes escrevem uma poesia vigorosa, rica, contemporânea, desafiadora. Mas os que os jornais veiculam com alarde são geralmente os mais conformistas, mais acadêmicos, mais chatos. Detesto aqueles poetas que vivem repavimentando os caminhos já trilhados por João Cabral, Drummond, Bandeira, Paul Valéry, etc. Bashô já disse há mais de 400 anos: “Não siga os mestres. Procure o que eles procuraram”.
DOUGLAS – Os espaços dignos para a poesia praticamente desapareceram nos grandes jornais do país… que antigamente publicavam poemas semanalmente… Como você percebe o espaço para a poesia na imprensa brasileira?
Ademir – Quem estiver interessado realmente em poesia que procure as revistas editadas por poetas: Medusa, Babel, Azougue, Pulsar, Carioca. Os grandes jornais só estão veiculando o mofo. Estão totalmente desinformados.
DOUGLAS – Fale de tua convivência com as mitologias outras, indígenas, orientais, o zen, etc., nutrientes de tua palavra-alma…
Ademir – Palavra-alma, veja que imagem fantástica. Você sabe que os guaranis utilizam a mesma palavra para designar “alma” e “palavra”. “Ayvu”. Ou “neeng”. “Ser” e “linguagem”, para eles, é uma coisa só. No livro “A Terra dos Mil Povos”, Kaká Werá Jecupé, um índio guarani, diz assim: “De acordo com nossa tradição, uma palavra pode proteger ou destruir uma pessoa. Uma palavra na boca é como uma flecha no arco”. Por aí, dá para perceber como grande parte dos povos indígenas encara a força da palavra. O zen, por outro lado, nutre grande desconfiança pela palavra. Os melhores livros sobre o zen advertem logo no início: “Se você quer realmente entender o zen, esqueça os livros e mergulhe diretamente na vida”. Mas esse aparente desprezo do zen pela palavra, na verdade, é um desprezo pelo discurso quando utilizado como anteparo da experiência direta. Porque o zen não é acessível pela via da lógica. Na vida, as coisas não acontecem de forma linear, com sujeito, verbo e predicado. A linguagem, como a utilizamos, é totalmente arbitrária. Por isso, o zen está muito mais próximo da poesia. O que os movimentos de vanguarda do ocidente procuram pode ser encontrado com facilidade nas culturas indígenas e orientais.
DOUGLAS – Gostaria de saber do teu processo de criação… Como nasce um poema seu… Etc…
Ademir – Sou movido à poesia. Estudo muito. Não para me tornar uma enciclopédia ambulante mas para manter a minha vida em constante movimento. Então, procuro me manter estimulado o tempo todo. Quando minha vida está muito paradona, sem grandes surpresas, aí não adianta forçar que não sai um poema que preste. Não consigo encarar a poesia apenas como um exercício de técnica. É preciso ter algo a dizer. Vejo muita poesia cheia de truques mirabolantes mas que não diz nada. Não basta apenas um “corpo bonito, perfeito”. Sem o sopro de vida incessante, tanto a arte como as pessoas são apenas esqueletos ambulantes.
DOUGLAS – Você também é jornalista… Jornalismo e poesia são inconciliáveis? Gostaria que me falasse do que pensa do jornalismo cultural hoje no país…
Ademir – Gosto muito do jornalismo, desta coisa imediata, de escrever para ser lido no dia seguinte. Quando praticado com paixão, envolvimento e criatividade, o jornalismo propicia uma rapidez de raciocínio que me interessa bastante. Gosto de ler jornalistas que pensam e escrevem bem. O que anda meio raro, principalmente no jornalismo cultural. Quando comecei no jornalismo, queria escrever com aquela eletricidade do Torquato Neto. Estava cheio de idéias de vanguarda, pensava uma página de jornal como um fotograma de cinema, que podia ser composta com texto, imagens, recursos gráficos, tudo em busca de uma informação total. É assim que penso o jornalismo cultural. Não essa obviedade mórbida que vemos nas páginas da imprensa atualmente. Falta tesão e curiosidade para a maioria dos jornalistas culturais.
DOUGLAS – Você editou com o Ricardo Corona, o Rodrigo Garcia Lopes, o Key Imaguire, a Jussara Salazar e a Eliana Borges a revista MEDUSA… Fale um pouco dessa experiência…
Ademir – Nós estávamos descontentes com o panorama da poesia brasileira que estava sendo mostrado, por isso criamos Medusa. Focalizamos autores contemporâneos que estavam meio na sombra, como Sebastião Nunes, Glauco Mattoso, Pedro Xisto, e abrimos espaço para um punhado de novos criadores. Buscamos o diálogo com outras tradições poéticas, como as indígenas, através de poetas como Jerome Rothemberg ou antropólogos como Betty Mindlin. Valorizamos as pesquisas de novos artistas plásticos e procuramos criar uma linguagem gráfica arrojada e instigante. Enfim, tentamos ampliar a discussão sobre poesia no Brasil e conectá-la com as pesquisas realizadas em outras áreas do conhecimento artístico. Penso que o grande mérito da Medusa foi comprovar que a poesia brasileira continua vivíssima, mesmo contra a vontade dos velhos e desinformados coveiros de plantão.
“Nunca me preocupei muito com unidade. Sou uma pessoa multifacetada. Minha curiosidade aponta para várias direções. Vivo num grande centro urbano. Talvez minha unidade (e a unidade das sociedades contemporâneas) esteja justamente nesta fragmentação. O cubismo e a bomba de Hiroshima já estilhaçaram tudo.”
(Site Balacobaco, Rio de Janeiro/RJ, 2001)
Rodrigo de Souza Leão
Zona Branca é o nome do mais recente livro de Ademir Assunção. Deve ser lido e festejado como um libelo à criatividade, como um canto ou uma ode à liberdade. Porque mesmo escrevendo dentro de um presídio ficcional (proposta do poeta, ao recriar o xilindró homônimo ao título do livro, inicialmente uma ópera rock de Frank Zappa), é a vontade de potência a mola propulsora da sua criação. A princípio o que pode parecer uma postura pós-moderna — a de “pastichizar” uma outra obra —, é algo que vai além da rotulagem. O poeta encara o artesanato poético como alguns dos grandes de sua geração que pretendem fazer uma renovação da linguagem; uma revolução eterna como a proposta modernista. Talvez por isso, neste momento, chamar Ademir Assunção de poeta pós-moderno seja um erro: também pelo fato de que nenhum rótulo abrange a multifacetada produção do escritor de A Máquina Peluda e LSD Nô. Ademir Assunção busca o horizonte e alça o maior dos vôos: o de encontro a si próprio. Um eu capaz de comportar os dias de hoje e os dias melhores que virão. Que nenhum alçapão nunca prenda Ademir e nunca cale a sua voz revolucionária. Que faça ecoar até no vácuo os seus versos polifônicos, supersônicos, antibióticos, antiatômicos.
Nesta entrevista ao Balacobaco, Ademir encara as questões de nossa época e mostra a força de quem enfrenta uma crítica que valoriza muito o beletrismo e a formatada estética/estática do que já se foi, e se posiciona sempre a espera de um grande escritor. Talvez o messias com a capacidade criadora de Drummond e a inventividade de Bandeira e o polimento de João Cabral e o
humor de Quintana; com pitadas de Mario de Andrade e Augusto dos Anjos. Quem sabe um dia, em 3054, um biólogo e clonador de espíritos consiga o que a crítica brasileira quer elogiar: o primeiro astronauta e Frankenstein brasileiro.
RODRIGO DE SOUZA LEÃO – Por que é tão difícil para um poeta da sua (nossa) geração admitir as influências da TV, cinema, pop art, rock? É mais fácil ser um intelectual superdotado?
Ademir Assunção – Ezra Pound quem disse: “Nunca se escreveu poesia de boa qualidade usando um estilo de vinte anos atrás, pois escrever dessa maneira revela que o escritor pensa através de livros, convenções e clichês, e não a partir da vida.” Os poetas que realmente contam geralmente estão com os dois
pés metidos na sua época. E com as antenas voltadas para várias direções e culturas e épocas. Adoro ver documentários e desenho animado na TV. Vou com frequência ao cinema. Decidi escrever poesia quando ouvi Jimi Hendrix tocando guitarra. Por que não trazer essas influências para os meus livros?
RODRIGO – ZONA BRANCA é um livro com versos escritos em diversas “tendências” ou “escolas” modernas. Por que o poeta deve ser um “camaleão” da poesia? A quem interessa um estilo estiloso, estilo único?
Ademir – Nunca me preocupei muito com unidade. Sou uma pessoa multifacetada. Minha curiosidade aponta para várias direções. Vivo num grande centro urbano. Talvez minha unidade (e a unidade das sociedades contemporâneas) esteja justamente nesta fragmentação. O cubismo e a bomba de Hiroshima já estilhaçaram tudo. As duas grandes guerras deixaram o corpus do homem moderno em frangalhos. De certa forma somos todos Adoráveis Criaturas Frankensteins.
RODRIGO – A linguagem é um vírus?
Ademir – Um vírus poderosíssimo. Por isso passa por tantos mecanismos de controle. Mesmo aqueles que querem colocar terno e gravata na linguagem acabam contaminados pelo vírus. Um dia adoecem e morrem. Não há como escapar.
RODRIGO – No poema “Anti-Ode aos Publicitários” você aponta um excesso da mídia. Qual deve ser a função da mídia? Em que deve se pautar a ética jornalística?
Ademir – Anti-Ode aos Publicitários é o meu manifesto de revolta contra a estupidez mercantilista da publicidade. Detesto gente que vive querendo convencer a todos que é preciso ter o carro do ano para se sentir o gostosão do pedaço. A publicidade está a serviço do consumo, não do engrandecimento da experiência temporária de viver neste planeta. E o jornalismo, cada vez mais, está indo para o mesmo caminho. Os grandes jornais vendem ideologias, manipulam, distorcem. O que o pensamento ocidental chama de realidade os hindus chamam de Maya (ilusão). As melhores mentes deste país estão sendo metodicamente afastadas das grandes redações. Aliás, estão sendo assassinadas culturalmente — expressão que Glauber Rocha costumava bradar aos quatro ventos.
RODRIGO – “me querem manso/cordeiro/imaculado”. Neste trecho inicial do poema “O Coisa Ruim” está um pouco do que a sociedade impõe ao cidadão. Ao mesmo tempo que mitifica exige respeito aos padrões vigentes. Em que o jovem deve acreditar hoje em dia? Quais promessas são uma “canoa furada”?
Ademir – Em que acreditar? No conhecimento. Informação não é o mesmo que conhecimento. Vivemos a mítica da era da informação, mas nunca as pessoas foram tão ignorantes. É o caso de se perguntar: precisamos realmente deste tipo de informação que estão nos vendendo?
RODRIGO – Qual influência tem do surrealismo? Por que a escrita automática é tão menosprezada?
Ademir – Nunca gostei muito do surrealismo na escrita. Gosto do cinema e da pintura surrealistas. “Escrita automática” é justamente o oposto do que procuro: desautomatizar a linguagem.
RODRIGO – Leminki vive como figura e como tradutor. Quando será dado ao poeta Leminski o que ele merece?
Ademir – Leminski já tem o que merece: uma legião de espíritos inquietos que perceberam a grandiosidade da sua obra. Leminski não era um burocrata de redação. Por isso causa tanta inveja.
RODRIGO – Foram lançadas antologias com os melhores poetas do século XX. Quem ficou de fora? Quem merecia um lugar no século antigo?
Ademir – Não li nenhuma das antologias que saíram. No momento, ando mergulhado em leituras sobre mitologias indígenas. Estou lendo agora um livro que o Roberto Piva me deu de presente: “O índio e as plantas alucinógenas”, de um cara chamado Sangirardi Jr. Mostra como diversos povos utilizam
cogumelos, peyote, ayahuasca, etc, de uma maneira ritual. Um livro fantástico. Depois dele, vou cair de boca no livro do Mircea Eliade chamado “O Xamanismo”.
RODRIGO – Qual o resultado cabal do imbróglio MEDUSA x Wilson Martins?
Ademir – Não me interesso por Wilson Martins. Meu interesse está voltado para gente como Rimbaud, Artaud, Torquato Neto, Pound, Sylvia Plath, Pagu, Maiakovski, Marcabru, Leminski, Subcomandante Marcos, Jim Morrison, Frank Zappa, Miles Davis, Mário Schenberg, Arnaut Daniel, Janis Joplin, William Burroughs, Oswald de Andrade, William Carlos Willians, Cruz e Souza, Bashô, Jaco Pastorius, Walter Benjamim, Billie Holliday, Allen Ginsberg, Noan Chomsky, Edvaldo Santana, Rodrigo Garcia Lopes, Mário Bortolotto, Marcos Losnak, Ricardo Aleixo, Glauco Mattoso, Sebastião Nunes, Fred Zero Quatro.
RODRIGO – Ademir Assunção está amadurecendo?
Ademir – Olha, fico muito desconfiado com esse papo de amadurecimento. Depois do amadurecimento, o próximo passo é o apodrecimento. Prefiro permanecer sempre verde. Em poesia, parece que poeta maduro é aquele que se cristaliza, que atinge um nível tal e passa a se repetir ad eternum. Tenho horror a isso. Até escrevi um poema sobre esse troço recentemente.
ARMADURA EM CARNE MOLE
deus me salve da idade madura,
e me sirva o que passa, a brisa
que perdura, gesto escrito com
brasa, pintura além da moldura,
deus me salve, não me serve, o
amarelo que logo apodrece, a boca
coberta de musgo, não é isso
que almejo, os cravos de Cristo, o fraco
pulso do amortecido, persigo
o que persiste, no ontem,
no quando, no não-sei-onde, um
texto-percevejo, traça que rói
a couraça, torre de onde avisto
e percebo, o não-visto que sempre
provo, quanto menos prosa
trovo, a língua que travo
trinca, recolho vida em verso, e
transmuto treva em rosa
“O problema é que utilizamos a palavra para tudo e quando a vemos em ‘estado de poesia’ não conseguimos entendê-la. O que é ‘racional’ para algumas culturas pode ser absurdamente insano para outras. É racional poluir os rios e entupir as cidades com automóveis? No entanto, as pessoas continuam fazendo isso em nome de uma ‘racionalidade produtiva’".
“O problema é que utilizamos a palavra para tudo e quando a vemos em ‘estado de poesia’ não conseguimos entendê-la. O que é absolutamente ‘racional’ para algumas culturas pode ser absurdamente insano para outras. É racional poluir os rios e entupir as cidades com automóveis? No entanto, as pessoas continuam fazendo isso em nome de uma ‘racionalidade produtiva’”.
CINEMA DO INCONSCIENTE
(Folha de Londrina, Londrina/PR, 28 de dezembro de 1998)
Marcos Losnak
“O sonho é o mito privado. O mito é o sonho coletivo”. Esta frase, atribuída tanto a Joseph Campbell quanto a Robert Walter, define com exatidão o fértil território onde o inconsciente semeia seus símbolos.
É exatamente neste território que o poeta, letrista e jornalista Ademir Assunção colhe os textos de seu novo livro, “Cinemitologias”, lançado pela Editora Ciência do Acidente. Trabalhando, num mesmo espaço poético, com imagens do inconsciente e reproduções de ícones de mitologias primitivas, realiza uma espécie de diário do sonho onde o consciente não deixa de lado as apuradas ferramentas da linguagem.
Após trabalhar com poesia em “LSD Nô” (Editora Iluminuras, 1994) e com prosa experimental em “A Máquina Peluda” (Ateliê Editorial, 1997), Ademir Assunção entra agora, em “Cinemitologias”, na floresta da prosa poética. Neste labirinto de árvores, dialoga com a linguagem cinematográfica para construir o que denomina de cinepoética, um campo onde as palavras caminham para um fluxo de imagens sucessivas.
Optando por uma tiragem restrita (100 exemplares assinados), o autor aponta a atividade poética como recurso ecológico de sobrevivência no mundo contemporâneo. A seguir, Ademir fala sobre os detalhes de seu trabalho.
MARCOS LOSNAK – Você define o trabalho de “Cinemitologias” como cinepoética. O que é exatamente cinepoesia? Trata-se de um conceito, uma idéia desenvolvida por você?
Ademir Assunção – Não sei se alguém já empregou este termo, mas, para mim, “cinepoética” serviu para nortear um rumo que vinha perseguindo. Se no livro “LSD Nô” explorei bastante a musicalidade das palavras, em “Cinemitologias” tentei trabalhar com a capacidade da palavra em evocar imagens. Não como pinturas, aquarelas ou gravuras. Queria um jorro de imagens em movimento, tentando fazer com que a escrita se movimentasse ao sabor de panorâmicas, aproximações (closes), sequências, cortes. Palavras não são imagens, mas a escrita pode utilizar procedimentos que venham de outras linguagens. Tudo depende do tipo de experiência que você está procurando.
LOSNAK – O livro trabalha com uma poética que incorpora o inconsciente e a mitologia primitiva. O que levou você a se aventurar por estes dois universos quase irmãos?
Ademir – A vontade de encontrar um conhecimento ancestral que existe em mim e em todos nós. Como escreve Marcelo Montenegro, um amigo-poeta: “Assassinaram os xamãs e agora nos vendem planos de saúde pelo telefone”. Não quero planos de saúde. Quero saúde. Uma saúde que envolva o equilíbrio da tribo.
LOSNAK – Mesmo estruturado em forma de um “diário do sono, do sonho” o livro não parece uma descrição de sonhos. Ele possui uma boa dose de realidade pessoal, experiências da mente no dia a dia. Onde termina o inconsciente e começa o consciente em “Cinemitologias”?
Ademir – Onde termina o céu e começa o inferno na vida de uma pessoa? Os limites sempre se confundem.
LOSNAK – Mesmo a poesia sendo um gênero literário que comporta infinitas possibilidades, existe a tendência de firmá-la dentro da lógica, da razão. Neste contexto, as criações poéticas desprovidas de lógica e razão são marginalizadas, tratadas com desdém. Por que você acha que isso ocorre?
Ademir – Penso que toda arte tem sua lógica própria — diferente da lógica que faz com que um avião levante vôo. O problema é que utilizamos a palavra para tudo e quando a vemos em “estado de poesia” não conseguimos entendê-la. O que é absolutamente “racional” para algumas culturas pode ser absurdamente insano para outras. É racional poluir os rios e entupir as cidades com automóveis? No entanto, as pessoas continuam fazendo isso em nome de uma “racionalidade produtiva”.
LOSNAK – “Cinemitologias” utiliza o inconsciente como matéria prima e a maneira mais fiel de se reproduzir a linguagem do inconsciente na literatura é através da “escrita automática”. No prefácio do livro você afirma que seu trabalho não tem nada de automatismo, pelo contrário, procura “desautomatizar a linguagem”. Isso seria uma forma de racionalizar o inconsciente?
Ademir – O zen fala: não confunda o dedo que aponta para a lua com a própria lua. A linguagem não é algo “natural”, que nasce com a pessoa, como um fígado, um coração ou uma bexiga. Ela é um código, um acordo que os viventes fazem para tentar se entender. O grande erro é pensar que a linguagem “é” a experiência a que ela se refere. Automatizar a linguagem significa se distanciar ainda mais da experiência. Não posso concordar com a ideia de que “escrevendo automaticamente” (como se fosse possível) o escritor estará dando vazão direta ao inconsciente. A linguagem do inconsciente não se estrutura com palavras. Quando escrevo, já estou fazendo uma representação da experiência, dentro de um código regido por leis próprias. Muitas vezes é preciso até fraturá-lo, esticá-lo, romper com suas regras para chegar mais perto da experiência que estou tentanto transmitir. É o contrário de utilizá-lo automaticamente. Eu prefiro o método zen ao método surrealista. Já que a linguagem nos separa da natureza o jeito é encará-la como uma experiência em si e tentar obter o máximo dela. É preciso lembrar também que muito antes dos surrealistas as culturas indígenas já possuíam suas narrativas míticas e xamânicas, crivadas por imagens do inconsciente.
LOSNAK – No livro, logo no início, aparece a afirmação de que “palavras são lâminas”. A imagem das palavras como algo cortante é um tema recorrente na literatura. Você considera que as palavras são realmente perigosas?
Ademir – Uma lâmina é uma lâmina. Você pode utilizá-la para cortar o alimento ou para matar. O mesmo com as palavras.
LOSNAK – Hoje vivemos numa época em que tudo é em massa, milhares, milhões, e “Cinemitologias” está sendo lançado numa edição restrita de 100 exemplares numerados e assinados. Por que esta escolha?
Ademir – Eu queria fazer uma edição que em pouco tempo se tornasse rara. Apenas 100 pessoas terão um exemplar. Ao mesmo tempo queria testar o processo docutec de impressão. Vi que é possível conseguir um ótimo resultado gráfico com um custo baixo. Espero que sirva de estímulo para outros poetas praticarem uma guerrilha poética.
LOSNAK – Você define o livro como um “cinema do inconsciente”, um caderno de estudo para um outro livro de poemas — poemas que incorporam elementos do cinema. De que forma esta poética dialoga com a linguagem cinematográfica? Como será este próximo livro?
Ademir – Para a aproximação com a ideia de um “cinema do inconsciente” o projeto gráfico desenvolvido pelo Joca Reiners Terron em “Cinemitologias” foi fundamental. Fiz uma pesquisa de desenhos indígenas, brasileiros e norte-americanos. O Joca trabalhou com essas imagens de tal forma que o livro acabou se tornando um verdadeiro “cineminha”, um média-metragem. Quanto ao próximo livro, está pronto. Há muitos poemas que fazem referências a filmes de Kurosawa, Hitchcock, Wim Wenders, misturados com imagens vindas diretamente de sonhos. É mais um passo nesse caminho. Não sei exatamente onde tudo isso vai dar, mas só com o fato de percorrer o caminho já me sinto satisfeito.
“Os que se horrorizam com as novas tecnologias se esquecem que o livro foi uma invenção tecnológica. Antes do livro impresso a poesia era oralizada nas praças de Atenas, em volta das fogueiras nas tribos. Havia um sentimento mais coletivo. O livro criou o ambiente do leitor solitário. De certa forma, a cibernética possibilita uma retribalização.”
(Gazeta do Povo, Curitiba/PR, 1º de julho de 1996)
Josely Vianna Baptista e Francisco Faria
Ademir Assunção, poeta, letrista e jornalista, é o convidado de hoje de Musa Paradisíaca. Nascido em 1961 em Araraquara, interior de São Paulo, Ademir diz que se sente mais paranaense que paulista, pois ainda adolescente mudou a rota da viagem que o levaria para o curso de engenharia elétrica em Uberlândia e foi para Londrina estudar jornalismo.
No esbraseado norte do Paraná, na cidade que estava exportando a música de Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção, deu-se a formação do poeta quando jovem. Ali ele editou por algum tempo o caderno literário da Folha de Londrina, que fez época no jornalismo cultural paranaense, apresentando a muita gente biscoitos finos da poesia contemporânea internacional. Aos 25 anos Ademir mudou-se para São Paulo, e lá trabalhou no Estado de São Paulo e na Folha de São Paulo, fez letras de música (gravadas por Itamar Assumpção e Edvaldo Santana) e lançou seu primeiro livro de poemas, LSD Nô (Iluminuras, 1994). Nesse meio tempo participou de exposições de poesia visual em Paris, Lisboa e Sydney (Austrália) e firmou o namoro com o budismo, passando várias temporadas no Mosteiro Zen Morro da Vargem, no Espírito Santo, onde ajudou a fundar a Estação Cultural — uma casa-oficina de criação construída numa encosta da Serra do Mar capixaba, inaugurada em 1995 com uma exposição de Tomie Ohtake.
Nesta entrevista para o selo Novo Fogo Novo Fôlego — criado por Musa para o diálogo com jovens poetas e artistas — ele vai, sem muita frescura, disparando a metralhadora giratória, falando sem rodeios sobre algumas veredas do Brasil contemporâneo — na cultura, na política, no trabalho. Ademir tem o selo, o fogo, o tônus da geração que cresceu curtindo Hendrix e os azulíneos araçás de Caetano Veloso: entusiasmo e pouca paciência com papo-furado. Você pode até não concordar com ele. Mas vai descobrir uma voz que desafina o coro peroba de certinhos e bons-mocinhos.
em caso de cansaço, sente-se
como um tigre
imóvel
ao relento
atento
ao soprar do vento
pode ser
aconteça
uma flor de lótus
floresça
na lama
dos seus olhos
FRANCISCO FARIA – Ademir, “a primeira pergunta é: “qué és más macho”, alta cultura ou cultura de entretenimento?
Ademir Assunção – Sem dúvida pineapple és más macho qué knife. Não estou interessado em “entreter” ninguém. Gosto da ideia da arte ritualizada, capaz de levar a tribo a pensar, a sentir, a entrar em transe. O rock’n’roll foi capaz de provocar esse rito. Jim Morrison, por exemplo, era um cara superinformado — tinha uma poética sofisticada, usava elementos do teatro da crueldade nos shows dos Doors, as guitarras de Robby Krieger eram verdadeiros mantras hindus eletrificados. Walter Benjamim avisou há mais de 50 anos que havíamos entrado na era da reprodutibilidade técnica. As referências culturais se cruzam, se interpenetram com muito mais rapidez. Esse jogo de deslocamentos de contextos, das possibilidades de cruzar Pound com Jimi Hendrix no contexto da cultura de massas, me fascina. Talvez o jogo esteja mais pesado atualmente — o sistema se armou depois da grande rebelião dos anos 60. Há algum tempo se falava em cultura de massas. Hoje o termo vem sendo substituído por cultura de entretenimento porque a indústria cultural virou um grande negócio. Claro que existe um esquema milionário para enfiar toda espécie de lixo goela abaixo dos “consumidores”. Seria ingênuo demais não supor a existência de uma ideologia camuflada por trás disso: vamos manter as massas anestesiadas, paralisadas, idiotizadas. Por outro lado, o conceito de “alta cultura” me parece caduco. Frank Zappa, Jimi Hendrix, máscaras rituais de tribos africanas, cantos fúnebres dos índios caiapós são alta ou baixa cultura? Quando se fala em alta cultura, tenho a impressão que são intelectuais se referindo à cultura europeia, branca, “macha”. Esses mesmos intelectuais, fechados nas torres das universidades, evitam sujar seus pezinhos na cultura popular, do mesmo modo que sentem dificuldades em dar respostas vigorosas aos problemas da nossa época. Quando falam, por exemplo, da “grande música erudita”, falam da música europeia dos séculos 18 e 19, mas se omitem sobre as experiências de compositores do nosso século, como Varése, Stockhausen, Berio. São pessoas que vivem em outro espaçotempo. Da minha parte, estou interessado tanto em Nietzsche quanto em Cazuza. Os dois têm uma vitalidade que me alimenta. Não quero saber se a cultura é alta ou baixa. Quero saber se ela está viva.
JOSELY VIANNA BAPTISTA – Por falar nisso, você tem trabalhado com músicos brasileiros, como Itamar Assumpção e Edvaldo Santana. Você avista alguma coisa nova no horizonte da música pop brasileira?
Ademir – Ainda não apareceu nada tão contundente quanto “Clara Crocodilo”, de Arrigo Barnabé. Ele realmente colocou a música num impasse. Mas sinto que a grande novidade é a diversidade. O Brasil é um país miscigenado, há várias culturas diferentes dialogando, atritando, o tempo todo. Edvaldo Santana e Itamar Assumpção, principalmente o Itamar dos três primeiros discos, são dois exemplos de artistas que trazem uma informação cultural riquíssima. Itamar é negro, começou na música tocando atabaques em terreiro de umbanda e acabou criando um universo sonoro até hoje pouco assimilado no Brasil. Edvaldo é um cara que vem do subúrbio de São Paulo, uma metrópole internacional. Conhece os ritmos nordestinos como a embolada e ao mesmo tempo se liga no clima vaudeville de Tom Waits. Sabe que o cantor de coco do Pernambuco é uma espécie de rapper ancestral. Tem uma poesia áspera e uma atitude moderna, vigorosa. Gosto também do vigor da Cássia Eller — uma cantora e tanto, com personalidade tão forte quanto Vera Negri, uma cantora/compositora pouco conhecida, mas que é um torpedo —, da rapaziada do manguebeat e do Lenine e Suzano, que inventou um novo jeito de tocar percussão. O Brasil é essa mistura mesmo — e isso é fantástico. O próprio Arrigo é um exemplo dos cruzamentos possíveis entre universos culturais. É um cara que conhece profundamente a música “erudita de vanguarda” e ao mesmo tempo escreve estorietas em que os personagens são office-boys, caixas de supermercado, garotas que vestem calcinha imitando pele de leopardo. Acredito, inclusive, que as narrativas do Arrigo, cortadas por técnicas de cinema e quadrinhos, deveriam inspirar mais os poetas brasileiros. Mallarme é legal? Ok. Arrigo também.
FARIA – Você tem sido um observador atento dessas discussões que volta e meia rondam o ambiente da poesia brasileira: poesia de vanguarda x poesia tipográfica, poesia pura x poesia híbrida, poesia com metáfora x poesia sem metáfora, etc, etc. O que você acha? Este debate é importante para a poesia brasileira? Qual você considera o debate a ser travado (senão as questões mais importantes a serem enfrentadas) pelas novas gerações de poetas brasileiros?
Ademir – Conseguir manter a linguagem viva continua sendo o grande desafio. Detesto a ideia de que exista um único caminho. O caminho que ainda não foi trilhado é sempre o melhor para um novo poeta. Existe uma história zen que vem a calhar com essa pergunta. Um mestre e um monge chegaram à beira de um rio e encontraram uma mulher, toda oferecida, pedindo que alguém a levasse no colo até a outra margem do rio. O monge não quis levá-la. O mestre, já velhinho, pegou a mulher no colo e a deixou na outra margem. O monge seguiu em silêncio, meio contrafeito. Dois dias depois, ainda incomodado, perguntou ao mestre: “Por que o senhor pegou aquela mulher vulgar no colo, mestre?” O velho respondeu: “Eu a levei até a outra margem do rio, você a está carregando nas costas há dois dias”. É isso. Acho que essas questões já foram mais que debatidas. Bola pra frente.
JOSELY – Em entrevista recente a esta página, o poeta Augusto de Campos disse que as poéticas visuais funcionam “por um lado como antenas da revolução tecnológica, e por outro como resistência à apropriação desses meios pelos subprodutos do consumo”, duas operações críticas “que as poéticas mais tradicionais são incapazes de perfazer, por se colocarem aquém das exigências de sua época”. Você já trabalhou com a conjunção de signos verbais e visuais, verbais e vocais, já participou de exposições de poesia visual em Paris, Lisboa e Sidney e também trabalha com computador. Como vê o horizonte crítico criativo nestes tempos internéticos?
Ademir – Mas isso de trabalhar com vários signos, para mim, é normal. Não sinto necessidade de ficar justificando nada a ninguém. Se tenho alguma ideia que se expresse melhor visualmente, vou lá e faço, simplesmente. Augusto tem razão: muitos acadêmicos ainda não entenderam a energia icônica da poesia e as possibilidades de certas poéticas. Agora, já vi muita poesia visual péssima. Não é só se cobrir com o manto de uma suposta vanguarda para ascender a um status artístico e se colocar acima do bem e do mal. Não é o caso de Augusto, óbvio, que tem uma atuação criativa intensa. Mas a vanguarda precisa tomar cuidado para não se enredar em papos acadêmicos e acabar se tornando um pouco acadêmica também. Quanto às ondas internéticas, se conseguir uma boa prancha para surfar no ciberespaço, estarei lá. Adoro manobras radicais. Os que se horrorizam com as novas tecnologias se esquecem que o livro foi uma invenção tecnológica. Antes do livro impresso, a poesia era oralizada, cantada, nas praças de Atenas, em volta das fogueiras nas tribos. Havia um sentimento mais coletivo. O livro criou o ambiente do leitor solitário, como escreveu McLuhan. De certa forma, a cibernética possibilita uma retribalização. O importante é não tornar o negócio um fetiche. Não troco por nada uma boa trepada real por uma virtual.
JOSELY – E o que é A Máquina Peluda, título de seu livro inédito? Que história é essa, naquele seu texto em que o Unabomber é um dos personagens principais, que diz que “do sangue jorrará a nova poesia”?
Ademir – “A Máquina Peluda” foi um termo inventado por minha filha Naiara, de 4 anos. Devo o título a ela. Mas não vou dizer o que é. Nem sob tortura. Podem arrancar todos os meus pentelhos com pinça. Quem sabe, depois que o livro for publicado, um dia, eu falo. Fica o enigma. Mas no livro, “A Máquina Peluda” é uma matriz de computador que o Unabomber, o terrorista norte-americano, está tentando penetrar e tem todo um sistema de defesa tentando impedí-lo. Quando consegue, ele se conecta com todos os computadores do planeta. De certa forma, é uma metáfora do artista, o grande sabotador. Quando ele manda para o ciberespaço a frase “do sangue jorrará a nova poesia”, talvez ele esteja reafirmando a ideia de utilizar a tecnologia para injetar sangue quente, vida, em suas veias eletrônicas.
JOSELY – Nas Cartas do Escriba ao Rei (texto que abre A Máquina Peluda) o escriba faz uma viagem delirante pelo espaçotempo da história, sua linguagem epistolar vai incorporando gírias e falares regionais, ele vai se hibridizando, se erotizando, e é literalmente possuído pelo carnaval sígnico que é o Brasil. Isso lembra o Cartesius/Descartes do Catatau do Leminski — que olha alucinado a natureza brasileira depois de fumar um baseado — e também Occam, o monstro semiótico que sempre que aparece transtorna o texto do romance. Essa simetria foi proposital?
Ademir – As Cartas do Escriba ao Rei têm a ver com o Catatau tanto quanto as Galáxias de Haroldo de Campos têm a ver com o Finnegans Wake de James Joyce. Claro que conheço o Catatau do Leminski. Tanto que em suas próprias cartas, num lance megalômano, o escriba diz ao rei que três serão os textos fundadores da literatura brasileira: as suas próprias cartas, a literatura pau-brasil, do poeta Pinto Calçudo d’Andrade, e o Catatau, de um maluco chamado D. Pavlvs Leminsczewski. Nesse sentido, as Cartas são o que se costuma chamar de texto pós-moderno: um texto que está se referindo a outros o tempo todo. Ali tem não só Leminski, mas Guimarães Rosa, Gregório de Matos, Dorival Caymmi. Isso é intencional, claro. Para escrever as Cartas, parti da carta original de Pero Vaz de Caminha sobre o descobrimento do Brasil. Acontece que ao chegar aqui os índios oferecem uma estranha erva aromática à esquadra portuguesa. Ao fumá-la, Caminha tem a impressão que pode se deslocar no tempo, “tanto do presente para o passado, quanto do futuro para lugar nenhum”. Isso que justifica seus “encontros” com Gregório de Matos, Guimarães, Leminski. Há muitas referências nas Cartas que terão de ser decifradas. Parti do texto da “descoberta”, ou invasão do Brasil, e pincelei uma outra realidade. Agora, essa é apenas uma parte do livro. A Máquina Peluda está toda colocada neste contexto de referências. Todos os personagens do livro são figuras conhecidas, desde Pero Vaz de Caminha a Roberto Marinho, aos piratas do Capitão Gancho e ao General Custler. É realmente um livro pirado, virtual, que inclusive se autoironiza o tempo todo.
FARIA – Você além de poeta é jornalista. Como você vê o papel da imprensa no debate cultural do Brasil nos últimos anos? Nós certamente sabemos que ela já foi mais substancial, mais analítica do que é hoje. Você acharia desejável que a imprensa abordasse as questões culturais de uma maneira diversa da que está sendo feita, ou não?
Ademir – As redações dos grandes jornais, hoje, parecem escritórios de contabilidade. Um clima burocrático, sem criatividade. O que pode realmente sair de inquietante de um ambiente como este? O que eu venho observando e denunciando onde posso é que existe uma grande manipulação, inclusive no jornalismo cultural. Primeiro, não se trata de jornalismo cultural, mas de um jornalismo a serviço da indústria cultural. Os grandes jornais, com honrosas e escassas exceções, estão funcionando como agências de publicidade: vendem livros, vídeos, espetáculos, enfim. É uma ideia um tanto limitada pensar que a cultura de um país ou do mundo se resume a esses “produtos”. E mesmo nessa área, é um treco ridículo: vendem apenas uma parcela da produção cultural, omitem, silenciam sobre outras. Nisso há uma manipulação e uma camada ideológica: ao invés de informar os leitores, criam consumidores. Para os jornalistas, parece que cultura no Brasil é só Caetano Veloso e Gilberto Gil. Os jornalistas hoje, são extremamente desinformados. Não estão percebendo quase nada do que está acontecendo. Eles falam apenas de uma minúscula parcela do ambiente cultural como se fosse o todo. Adoraria que os outros jornais do Brasil, ao invés de procurar copiar a old big mídia do eixo Rio-São Paulo, procurassem seus próprios caminhos, mais criativos e inteligentes.
FARIA – É preciso estar em São Paulo para sua voz ser ouvida hoje em dia? Existe, a seu ver, em São Paulo, uma noção paulista de cultura brasileira?
Ademir – Costumo dizer que São Paulo é uma província internacional. Gosto do caos cultural da cidade, mas odeio o provincianismo das igrejinhas artísticas e jornalísticas. O Brasil é muito maior do que a USP ou a Folha de São Paulo.
JOSELY – Como jornalista, quais foram seus projetos mais interessantes?
Ademir – Comecei a trabalhar profissionalmente em jornal como repórter de política da Folha de Londrina, em 1983. Depois passei para editor de política. Simultaneamente, editava a página literária “Leitura” que saía aos domingos. Em torno dela se aglutinou toda uma geração: o Rodrigo Garcia Lopes e o Maurício Arruda Mendonça (que traduziam Ginsberg, cummings, Pound, Gary Snider), o Marcos Losnak, o Bira, um grande artista gráfico que me ajudou a entender a importância da linguagem visual na comunicação. Causamos um grande barulho em Londrina. Na época, Leminski escreveu um texto no Correio de Notícias, de Curitiba, dizendo que o que estava acontecendo em Londrina era a vanguarda do jornalismo cultural brasileiro. Dizia inclusive que era uma experiência de nível internacional. Bem, depois disso fui para o Caderno 2 do jornal O Estado de São Paulo, em 1986, onde tive uma experiência muito rica também. Trabalhei com Caio Fernando Abreu, Alberto Villas, José Marcio Penido, José Carlos Conte, Sérgio Pinto de Almeida, um time de primeira. Ali, deu para experimentar muito em termos de linguagem. Sou fascinado pelas possibilidades de linguagem num contexto de comunicação de massa. A experiência durou até 1988. Aí colocaram um sujeito chamado José Onofre para acabar com a festa e encaretar o Caderno 2. Acho que foi uma burrice do Estadão. Se aquela experiência tivesse continuado, acho que todo o jornalismo cultural brasileiro estaria bem diferente hoje. Quando saí do Estadão, passei um tempo freelando para várias revistas e para o Jornal da Tarde, onde fiz uma série de entrevistas com poetas, como Alice Ruiz, Roberto Piva, Sebastião Nunes, etc. Em 1991, fui convidado para participar de um projeto de reformulação da Ilustrada, da Folha de São Paulo. Fui editor assistente do caderno durante 2 meses. Até hoje não entendi o que aconteceu. O projeto foi abortado, algumas pessoas demitidas. Só perdi meu tempo. Em seguida, fui editor-contribuinte da revista Marie Claire. Viajei pelo Brasil e fiz pelo menos três grandes reportagens que me agradaram muito: acompanhei uma turnê dos Titãs pelo nordeste durante oito dias, passei dez dias vivendo com os monges budistas no alto do Morro da Vargem, no Espírito Santo, e subi o rio Amazonas em um gaiolão (barco popular), de Belém a Manaus, durante cinco dias e cinco noites. Quer dizer, sempre aproveitei bem as oportunidades que apareceram. Hoje, estou vivendo de free-lance, as oportunidades para grandes trabalhos estão bem escassas. Mas se alguém abrir alguma porta, estou a postos, pronto para recolocar o pé na estrada.
FARIA – Você tem um relacionamento continuado com o budismo, já esteve algumas vezes num mosteiro budista e seu primeiro livro se chama LSD NÔ. Qual é a do zen no Brasil?
Ademir – O zen tem uma visão dinâmica, criativa, sutil da vida. Se fosse para escolher entre fazer dois anos de mestrado numa universidade ou morar dois anos no mosteiro zen, ficaria com o mosteiro. Ali, no alto da montanha, certamente vou aprender muito mais.
JOSELY – Como é que a chuva pode molhar uma lágrima?
Ademir – É só sair na chuva chorando com o guarda-chuva fechado. Você está se referindo a um dos poemas do LSD NÔ que mais gosto: “sons/e silêncio/de águas/a chuva/molha/uma lágrima. Gosto da sutileza desse poema. Imagine: uma gota de chuva se fundindo com uma lágrima. É zen. O zen possui uma simplicidade sofisticadíssima.
FARIA – A pergunta está no CD Poesia é Risco do Augusto e do Cid Campos: “E para que poetas em tempo de pobreza?” A pergunta de Hölderlin atravessa os séculos e cai como uma clava no meio do mangue, no meio da lama dos subúrbios, no meio do apartheid social dos grandes centros urbanos e da brutalidade generalizada (e algumas vezes higienizada) do Brasil contemporâneo. São massacres no Rio, massacres em São Paulo e Pará, é uma guerra civil camuflada. Então: “E para que poetas em tempo de pobreza”?
Ademir – Acho que o movimento dos sem-terra está dando um exemplo que deveria ser seguido inclusive pelos intelectuais e artistas. Eles pararam de blablablá e partiram para a ação. É a única forma de acelerar as mudanças. Diante do quadro de guerra civil existente no país, certas firulas intelectuais me soam nojentas. Odeio quando vejo intelectuais defendendo cegamente a ordem norte-americana de globalização. Um minuto, cara-pálida. É para o Brasil ser o esgoto da globalização? Certamente o mundo está mudando rapidamente, mas vamos discutir melhor esse negócio de globalização, como vamos entrar nesse jogo. O que o Brasil ganhou até agora com isso? Temos um intelectual no poder, que conseguiu estabilizar a moeda mas não a economia. A miséria está crescendo aceleradamente. Vejo isso nas ruas de São Paulo. Saímos de uma ditadura política para uma ditadura econômica. O Brasil continua nas mãos dos velhos caciques, que não vacilam em varrer com tiros de metralhadora quem ousa interferir nos seus interesses. Os que comeram o “amargo caviar do exílio” hoje fazem vistas grossas à legião de miseráveis e entrega bilhões de reais nas mãos dos banqueiros que passaram anos roubando. Poxa: tenho dois filhos e fico me perguntando: em que país essas crianças vão crescer? Será que daqui a alguns anos vou ter que levá-los para a escola em um carro blindado? Acho que qualquer pessoa que se interessa pelo país deveria estar se fazendo essas perguntas e procurando interferir, modificar esse panorama. Quanto aos artistas em tempo de pobreza, sinceramente, acho que sem a verdadeira sensibilidade artística, esse planeta já teria ido pelos ares.
JOSELY – Como foi que você se interessou por poesia?
Ademir – Acho que a primeira vez que tive uma noção intuitiva de poesia foi aos sete anos de idade, ouvindo Caetano Veloso cantar Alegria, Alegria, no rádio. Aquelas palavras me impressionaram pra caramba: “Eu tomo uma coca-cola, ela pensa em casamento”… Na escola, durante a adolescência achava poesia um negócio chato, enfadonho. Não conseguia entender aqueles poemas que os professores me empurravam goela abaixo. Um ou outro me fazia a cabeça. Mas quem me levou a escrever poesia mesmo foi Jimi Hendrix. Quando ouvi aquela guitarra zunindo, pensei: “caramba, quero escrever com essa mesma eletricidade”. Em seguida, descobri Torquato Neto e bateu no ato: ele tinha aquela eletricidade. Depois, Leminski. A leitura do ABC da Literatura, de Ezra Pound também foi importantíssima. Ali descobri que poesia não tinha que ser um troço chato, pachorrento. Passei a ler tudo que caía nas mãos; Arnaut Daniel, Safo, e. e. cummings, Augusto e Haroldo de Campos, Ferreira Gullar, Homero, Rimbaud. Ao mesmo tempo ouvia Frank Zappa, The Doors, Lou Reed, Raul Seixas, Gilberto Gil. Sou um cara da época da cultura de massas. Uma das imagens mais chocantes da minha infância foi ter visto pela TV a chegada do homem na lua. Isso está refletido na minha poesia. Não me interesso em usar palavras difíceis, eruditas, metáforas em excesso. Tem gente que faz isso melhor do que eu. Por que vou usar o termo “caverna epúbera” se posso simplesmente escrever “grandes lábios”? Talvez quando eu tenha 80 anos me torne mais polido e educado.
JOSELY – Que livros você levaria para uma ilha deserta?
Ademir – Nenhum. Aproveitaria todo o tempo livre para escrever meus próprios livros. Gostaria de levar só um mestre zen e uma mulher inteligente, sensível e gostosa.
JOSELY – Quais são seus próximos projetos?
Ademir – Quero lançar A Máquina Peluda ainda este ano e estrear o show de poesia chamado Ritual. Poesia falada acompanhada por ritmos e climas de percussão e violão. Eu, o percussionista Ricardo Garcia e o violonista e compositor Madan, estamos ensaiando desde o começo do ano. A estreia, ao que tudo indica, será em setembro. Gostaria muito de levar esse trabalho para Curitiba. No ano que vem, pretendo lançar um CD, resultado desses shows, provavelmente com produção do baixista e compositor Paulinho Le Petit, que foi da banda de Itamar Assumpção, Cássia Eller e atualmente toca com Edvaldo Santana, além de desenvolver um trabalho próprio, instrumental. Ainda no ano que vem talvez já tenha pronto um novo volume de poemas, cujo título provisório é Cosmorama.
JOSELY – Por que seu apelido é Peter Pin?
Ademir – Porque em outra encarnação fui uma chinesa que tinha a capacidade de voar e que se recusou a vida toda em se tornar uma adulta.
“Ademir Assunção é um poeta para todas as eras. Fazedor e admirador da poesia em todas as suas facetas (e falsetas, em geral cheias de humor): a música, a plasticidade, o logos. Faz com que todas convivam em consonância. Ou dissonância, que é a sonoridade mais comum da vida. Ademir olha para o mundo como se estivesse num bar, ao lado de Mallarmé e Bukowski. Suas aliterações não pretendem somente criar um simulacro sublime do que vê, mas cravar-se como um punhal no coração da vida. ”
Geraldo Carneiro
O livro A Voz do Ventríloquo (vencedor do Prêmio Jabuti) + o cd de poesia e música Viralatas de Córdoba. Preço promocional na aquisição dos dois produtos.
Inusitada fusão de poesia falada com blues, rock’n’roll e baladas, o disco conta com a participação especial de Fabiana Cozza no blues “67-1556” (o único poema cantado), Thaís Piza (vocalise e backing vocals) e Ricardo Garcia (berimbau de boca, pandeirola, caxixis, congas e percuteria). A banda Fracasso da Raça é formada por Marcelo Watanabe (guitarras, violão, bandolim, cavaco-banjo e vocais), Caio Góes (baixo elétrico e fretless) e Caio Dohogne(bateria).
Rebelião na Zona Fantasma é essencialmente um disco de poesia. Mas não somente poesia falada, com leitura linear e fundo musical. É mais que isso. Um disco em que linguagem poética e linguagem musical se fundem de tal forma que a palavra se reveste de entonações, ritmos, divisões e prosódias inusitadas, dentro de surpreendentes estruturas de blues, baladas, jazz e rock’n roll. Participações especiais: Zeca Baleiro e Edvaldo Santana. Raridade.
“Ademir é bem sucedido ao articular os tons das séries de poemas. Muitos chegam sujos de coloquialidade e oralidade daqueles que ‘ainda não abandonaram o barco e insistem/ em beber sozinhos no canto mais escuro do balcão’. Esse tom se alterna com outros mais contundentes, chutando o pau da barraca. Nesses, a narrativa aproxima a violência, em diversas formas, com a violência do mundo financeiro (oscilações da bolsa), destroçando tudo em nome do capital e da propriedade. E há ainda outros momentos mais líricos, como em ‘A canção dos peixes’ (a imagem inesperada de os peixes cantando blues).” – Apresentação de Fabrício Marques
Uma das mais importantes revistas literárias brasileiras independentes, com arrojado design gráfico e publicação de poemas, contos, traduções, fotografias, quadrinhos e ensaios críticos de artistas nacionais e estrangeiros. Autores desta edição: Bernardo Magalhães, Claudio Daniel, Marcelo Mirisola, Fabiano Calixto, Luís Dolhnikoff, Fabrício Marques, Itamar Assumpção, Karen Debértollis (Brasil), Ogwa-Flores Balbuena (Paraguai), Po-Chü i (China), Eduardo Milán (Uruguai), Pedro Juan Gutierrez (Cuba), Jacques Roubaud (França) e Cunha de Leiradella (Portugal).
Uma das mais importantes revistas literárias brasileiras independentes, com arrojado design gráfico e publicação de poemas, contos, traduções, fotografias, quadrinhos e ensaios críticos de artistas nacionais e estrangeiros. Autores desta edição: João Gilberto Noll, Micheliny Verunschk, Márcia Denser, Jorge Rocha, Sylvio Back, Maria Esther Maciel, Luiz Carlos França, Valério Oliveira, Otávio Ramos, Paulo Leminski, Augusto Silva (Brasil), Adonis (Síria), Evgen Bavcar (Eslovênia), Reina Maria Rodríguez (Cuba), Reynaldo Jiménez (Perú) e Leon Félix Batista (República Dominicana).
Uma das mais importantes revistas literárias brasileiras independentes, com arrojado design gráfico e publicação de poemas, contos, traduções, fotografias, quadrinhos e ensaios críticos de artistas nacionais e estrangeiros. Autores desta edição: André Sant’Anna, José Agrippino de Paula, Maria Esther Maciel, Luiz Roberto Guedes, Marcelo Schellini, Maurício Arruda Mendonça, Beto, Caio Meira, Rogério Ivano, Dennis Radünz (Brasil), Frank O’Hara, William S. Burroughs (EUA), Georges Bataille, Sade (França) e Victor Sosa (Uruguai).
Uma das mais importantes revistas literárias brasileiras independentes, com arrojado design gráfico e publicação de poemas, contos, traduções, fotografias, quadrinhos e ensaios críticos de artistas nacionais e estrangeiros. Autores desta edição: Flavia Rocha, Walter Ney, Carlos Eduardo Zago, Luci Collin, Sergio Monteiro de Almeida, Márcia Denser, Wilson Luques Costa, Marcelo Tápia, Rodrigo de Souza Leão, Sérgio Medeiros (Brasil), Cecila Vicuña (Chile), Charles Bukowski (Alemanha), Edmond Jabés (Egito), Furio Lonza (Itália), Heriberto Yépez (México), Yi Sang (Coréia).
Uma das mais importantes revistas literárias brasileiras independentes, com arrojado design gráfico e publicação de poemas, contos, traduções, fotografias, quadrinhos e ensaios críticos de artistas nacionais e estrangeiros. Autores desta edição: Horácio Costa, Ademir Demarchi, Ronaldo Bressane, Sylvio Back, Dennis Radünz, Leo Pinto, Cris Bierrenbach, Tadeu de Melo Sarmento, Barbara Lia, Alberto Pucheu, Thadeu Wojciechowski (Brasil), Jorge Luis Borges (Argentina), Walt Whitman (EUA), Serge Pey (França), Marosa di Giorgio (Uruguai) e Nicholas O’Neill (Irlanda).
Uma das mais importantes revistas literárias brasileiras independentes, com arrojado design gráfico e publicação de poemas, contos, traduções, fotografias, quadrinhos e ensaios críticos de artistas nacionais e estrangeiros. Autores desta edição: Iatã Canabrava, Joca Reiners Terron, Alberto Lins Caldas, Celso Borges, Pedro Salgueiro, Beatriz Bajo, Márcia Denser, Zhô Bertjolini (Brasil), Yukio Mishima (Japão), Wislawa Szymborska (Polônia), Jack Kerouac (EUA), Michel Houellebecq e Paul Éluard (França).