(Nueva Revista del Pacifico nº 71, 2019)
http://www.nuevarevistadelpacifico.cl/index.php/NRP/article/view/155
Resumo: Este artigo tem por objetivo discutir, a partir de uma perspectiva pós-utópica, tal qual proposta pelo poeta, crítico e tradutor Haroldo de Campos, as articulações entre lirismo e política na obra de Ademir Assunção, especialmente aquelas presentes no livro A voz do ventríloquo, vencedor do Prêmio Jabuti (2013), maior prêmio da literatura brasileira. Entende-se aqui pós-utopia como uma poética da agoridade, engajada, crítica do futuro como um devir idealizado e que atenta ao passado, procurando encontrar, na tradição, e no posicionamento político crítico da desigualdade e do conservadorismo formas de reinvenção do presente. Da perspectiva aqui adotada, a poesia de Ademir Assunção, herdeira, sob muitos aspectos da poesia de Haroldo de Campos e dos poetas concretos, assume, desde a publicação do primeiro livro do autor, em 1994, papel crucial no cenário brasileiro contemporâneo, atravessado por séria ameaça à democracia. Com elevada carga inventiva e poética, a poesia de A voz do ventríloquo repropõe, nos termos haroldianos, a substituição do princípio esperança das vanguardas pelo princípio realidade que conclama à ação.
Palavras-chave: A voz do ventríloquo, Ademir Assunção, lirismo, política, pós-utopia.
Abstract: This article aims to discuss, from a post-utopian perspective, as proposed by poet, critic and translator Haroldo de Campos, the articulations between lyricism and politics in Ademir Assunção’s work, especially those present in the book The Voice of the Ventriloquist., winner of the Jabuti Award (2013), the largest award in Brazilian literature. Post-utopia is understood here as a poetic of agority, engaged, critical of the future as an idealized becoming and attentive to the past, seeking to find, in tradition, and in the critical political positioning of inequality and conservatism, forms of reinvention of the present. From the perspective adopted here, the poetry of Ademir Assunção, heiress, in many ways the poetry of Haroldo de Campos and the concrete poets, and has assumed, since the publication of the author’s first book, in 1994, a crucial role in the contemporary Brazilian scene, nowadays crossed by serious threat to democracy. With a high inventive and poetic burden, the poetry of The Voice of the Ventriloquist proposes, in Haroldian terms, the replacement of the hope principle of the avant-garde with the reality principle that calls for action.
Keywords: A voz do ventríloquo (the voice of ventriloquist), Ademir Assunção, lyrism, politics, post–utopia.
Este trabalho insere-se no conjunto de estudos voltados para a articulação entre lirismo, política e pós-utopia na poesia brasileira produzida entre 1980 e 2018, entendendo o conceito de pós-utopia no sentido atribuído ao termo por Haroldo de Campos, como questionamento ao cenário político brasileiro e latino-americano dos anos de 1980, quando o poeta formula o mesmo.
Diante de um cenário político que se agrava a cada dia no Brasil, avaliação da presença da pós-utopia como dispositivo de leitura do contemporâneo e resistência democrática em poetas das gerações compreendidas entre 1980-2018 torna-se crucial. Nessas obras, as relações entre poesia e política, suas tensões e o posicionamento lírico respondem a um modo de ser e estar no mundo que ora se afasta ora se aproxima de uma visada que tem na pós-utopia aspecto norteador, com ênfase para uma poesia do agora, do tempo presente, crítica do futuro, atuante, mesmo que erigida entre as ruínas do tempo, do espaço, da cidade ou do sujeito, expostos ao conturbado cenário político, à instabilidade econômica – pós-ditatoriais nos anos 1980 – ou, ainda, atualmente, assombrados pela ameaça do retorno do autoritarismo, cenário com o qual Haroldo, falecido em 2003, não poderia contar.
Ademir Assunção, que é também jornalista e atuou nessa área em importantes veículos(2), entrevistou Haroldo de Campos em 30 novembro de 1996. A íntegra da entrevista está publicada em Faróis no Caos: entrevistas de Ademir Assunção, Editora Sesc, 2012; nela, o poeta defende que a cultura e a tolerância nascem em um ambiente dialógico. Diz Haroldo:
“Bom, ou você é pessimista radical e não vê nenhum futuro para a humanidade – e se apoia, para essa visão, na própria natureza humana tal como é descrita desde o Eclesiastes, o homem que é predador do homem, o opressor que está sempre por cima do oprimido e não quer ceder nada, basta olhar para as elites brasileiras que não querem ceder nenhum pedaço de pão – , ou você tem uma visão informada por aquilo que é chamado de “utopia concreta”. […] A cultura, a tolerância, nasce em um ambiente dialógico. Onde existe monologia, fundamentalismo, há ditadura, opressão. (CAMPOS, 2012, p. 26).”
Haroldo faleceu em agosto de 2003 e não viveu para ver as possibilidades reais de estabelecimento da democracia no país, por meio de políticas levadas a cabo por um governo implicado com a superação da desigualdade e que apenas começava a dar sinais de melhora até o golpe de 2016; tampouco viveu para assistir ao desalento em que mergulha o Brasil diante de uma grave crise política institucional, estabelecida nos últimos três anos, que atravessa os poderes e as diferentes instâncias da sociedade, culminando na ascensão da extrema direita.
Trata-se de entrevista importante porque o posicionamento político de Haroldo de Campos surge de modo contundente, ao mesmo tempo importa para que, a partir do que ele diz, seja possível compreender a relação entre política e pós-utopia e, ao mesmo tempo, dada essa relação, a função polifônica da poesia, sua dimensão questionadora, crítica e subversiva no sentido de que denuncia escombros, colocando, por assim dizer, as “palavras” nas feridas, ou, se quisermos, traduzindo-as, transcriando-as, nomeando instâncias cuja identificação, sem a poesia, seriam um ponto de impossibilidade, dada a situação de “experiência e pobreza” (3), mas que a operação tradutora/transcriadora recoloca em foco.
Assim como para Benjamin a tradução devolve ao original algo que lhe é essencial, a transcriação luciferina de Haroldo, enquanto poética pós-utópica, abre no corpo da experiência história que a poesia conta/canta a possiblidade de novos relatos, devolvendo à tradição transcriada – a sua essência. O que quero dizer é que a criação, em última instância, é sempre transcriação e que, para Haroldo, a partir dos anos de 1980, a transcriação alinha-se com o que ele chama de poética pós-utópica, fixada na agoridade, crítica do futuro, recriadora do passado.
Chamo a atenção para o fato de que Haroldo de Campos vê na tradução a operação pós-utópica por excelência e a razão dessa ligação está atrelada ao pensamento de Walter Benjamin; deste turno, o Benjamin de “As tarefas do tradutor”, porém, como disse acima, tomando a tradução não como operação angélica, mas luciferina, que desbabeliza (ou re-babeliza) o mundo, repara ruínas (4), como “vivissecção implacável” (CAMPOS, 2005).
Como Haroldo, muitos outros poetas vêm construindo, nos últimos 30/40 anos, obras que de um lado reconhecem o valor da democratização e de outro, ao não fazerem concessões às críticas à sociedade capitalista, problematizam o contexto e, de muitas formas, anteciparam o cenário é que atravessado pelo país hoje. Nesse espectro, é contra a monologia de que fala Haroldo e em defesa da pluralidade que se situa a poesia de Ademir Assunção, cuja leitura farei a partir do conceito de pós-utopia haroldiano (CAMPOS, 1997) e das “Teses sobre o conceito de história de Walter Benjamin” (BENJAMIM, 1996), em diálogo com outros referenciais que surgirão aqui e ali ao longo deste texto. Tal poesia desafia a tendência à sedimentação tanto da tradição poética, pelo rigor e inventividade, demonstrados na variação das formas dos poemas, na preocupação com os expedientes da expressão e do conteúdo, quanto pela desestabilização da barreiras entre temas, de modo que lirismo, política, cultura e subjetividade encontram-se amalgamados na obra de Ademir Assunção, articulando, um “pensamento-paisagem”, ou seja, um pensamento que implica, como estabelece Michel Collot (2014), um local, um olhar, uma imagem, a experiência sensível do sujeito lírico fora de si (5).
É na desapropriação de si, na rejeição de um “eu” narcísico e egoico que o sujeito poético se realiza, abre-se para a alteridade do mundo. Afastando-se de um lirismo do eu, sentimental e auto-orientado, o sujeito lírico de Ademir Assunção deixa-se afetar pelo mundo e é “inseparável dos objetos que afetam seu corpo” (COLLOT, 2013, p.224) e se inscrevem no seu olhar que bem pode ser o núcleo das experiências que os versos veiculam, mas, ao mesmo tempo, não faz dessas experiências pretexto para falar de si, ao contrário: é em termos de transitividade (6) (abertura) e alteridade que essa poesia se constrói.
A persona poética marcada em muitos, ou talvez a totalidade dos poemas, de A voz do ventríloquo não é a expressão de movimentos interiores tautológicos, mas se faz do contato com o exterior, experimentando o mundo tanto quanto este o experimenta, espanta, choca, encanta, decanta, arruína, azula. Sobre esse cruzamento de um olhar sensível para o mundo – sensível aqui diz respeito àquilo que se funda no que afeta o poeta – a dor, o amor, o espanto, a miséria – que se instaura, a meu ver, uma cisão entre aquele que olha e a coisa olhada (sentida) e que a poesia tenta circunscrever à existência, ultrapassar, grafar na “pele, na palma, na pálpebra” com a palavra (ASSUNÇÃO, 2012 [sp]), porque, afinal, como diz Bonsusan (2015), “existir é estar no meio das coisas que existem, expostas a ela, como uma pele” que o olhar figurativiza, encena.
Acompanhando o pensamento de Didi-Huberman, o que se estabelece na poesia de Ademir Assunção é a consciência de que há uma cisão de ver (no ato de ver), pois aquilo que se vê remete a uma obra de perda, a um vazio, na medida em que há sempre algo do objeto olhado que escapa a quem olha, um hiato entre a pele que sente o mundo e a si mesma e o sentido das coisas. O gesto de ver migra do ter, ou seja, da sensação de que é possível apropriar-se do objeto pelo olhar, para o ser, quando se sabe que, mais do que ter o que se olha, é necessário ser um pouco (ou muito) do que se olha, doar-se para o que nos olha.
É também saber que não há um ser em totalidade naquele que olha, mas sempre entre cacos, fraturas, faltas, pois “ver é sentir que algo inelutavelmente nos escapa, isto é, quando ver é perder” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 34), é também um vazio. Na poesia de Ademir Assunção, como um desafio à oquidão – ou por que não, como um mergulho em busca de sentidos, a palavra poética preenche as lacunas do mundo visível, “sutura angústias” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 40), reinstaura o mundo, questionando-o e desafiando-o, também preenche as lacunas daquele mesmo mundo visto de olhos fechados (7), nos recônditos da memória, para logo vê-las todas dissipadas, como se dissipa a água do mar que preenche um buraco na areia da praia para logo ser absorvida pelos milhares de grãos, inundando-os e sendo por eles granulada.
Por isso, a poesia de Ademir Assunção não está nem na interioridade, nem na exterioridade que busca a objetivação ou o engajamento panfletário, mas na tensão dialética de um olhar sensível que se doa e se empresta ao universo que o circunda, à pele da vida, “suas fissuras, ranhuras”, “nos trilhos do metrô” entre “fumaças de cigarro”, no lirismo de um monólogo de Lili Maconha, ou no tom ácido de fábulas contemporâneas (8).
O olhar das coisas que devolve o olhar do sujeito, é fundamental em A voz do ventríloquo, obra que é objeto deste artigo. Acompanhando o que disse acima, o sujeito poético parece ter consciência dos hiatos do olhar, sobretudo porque este se dirige, em muitos poemas, para ruínas que o olham de volta –que lhe revolvem o ventre, de onde vem a voz do ventríloquo, de modo que ver e falar/escutar são pedras angulares da obra. Entre a voz e o olhar, a linguagem toma o leitor de chofre, direta, precisa, mesmo quando as imagens proliferam em aquários, semáforos, leões, bruxas e risadas ou ao som seco de um blues pela porta dos fundos enquanto um homem encostado num poste acende um cigarro, ferido pela partida da amada ou pela cidade atroz, enquanto mais adiante medita sobre a origem do mundo.
Todos os temas são caros a essa poesia que ao mesmo tempo que se engaja com a denúncia de um mundo vil, não deixa de se engajar com a linguagem e de se perguntar sobre o amor; aliás o amor é um tema importante a percorrer a poesia de Ademir Assunção. Na “leveza da brisa” ou nas “tantas pontas soltas”, as palavras deste poeta, considerando um conjunto de poemas observados, desde seu primeiro Livro LSD Nô, de 1994, à Voz do Ventríloquo (2012), ou mesmo em Pig Brother (2015), o amor tem sua hora e sua vez e é importante para este poeta; merece ser cantado, seja em meio à perda, seja para tingir de suavidade os oásis, os corpos, a vida que pulsa, os olhos-corpos que se afagam sob lençóis.
Afinal, quando um poeta ama, o amor não silencia e os versos simplesmente brotam, como diria Jorge Luís Borges, são inevitáveis. Quando um poeta se engaja pela linguagem, o silêncio vem vestido de formas sutis ou grandes profusões do verbo; quando um poeta se engaja na denúncia da miséria humana ou do mundo, ou ambas, também os versos irrompem – a matéria do poeta é a língua, um poeta não se cala sobre o que sente, porque é esta a sua condição de existir, sua sina: se ama, se se indigna, se sofre ou se alegra é na palavra e pela palavra que o poeta pode haver-se consigo, com os afetos, com a vida ou a morte, com a injustiça ou a democracia. Só não é possível escrever sobre o que não o toca a fundo, o que não pulsa, o que não acende ou o que afoga, sobre o que é protocolar, seja a política, seja a metalinguagem, seja o amor ou o lirismo – não é possível escrever sobre o amor quando não se ama, tanto quanto é inevitável escrever sobre o amor quando se ama. E isso vale para todos os temas, que aliás não devem, a meu ver, ser hierarquizados, nenhum se sobrepõe ao outro, mesmo que haja um pendor para o engajamento e para a luta ou até para questões existenciais, todos os temas são caros a esse poeta, amalgamam-se, não se excluem.
Trata-se de duas fidelidades aqui, uma ao que o poeta sente; outra àquela urgência de transformar a matéria sentida em verbo, ou “transformar o vivido em verbo”, para dizer com Ferreira Gullar, porque disso parece depender a vida do poeta, como a vida do artista depende da cor e da forma, como a vida de um músico depende dos acordes. Muitas coisas podem levar um poeta ao silêncio, mas nada ou nenhum sentimento podem levar ao silêncio um poeta que olha o mundo, ciente da inelutável cisão de ver, como Ademir Assunção. Nesse caso, só há silêncio, seja para qual tema for, da política ao amor, para o que, me parece, não o toca, não o mobiliza, para aquilo que não chega a arranhar o espesso tecido da vida. A voz do ventríloquo é exemplar para iluminar essas considerações.
O livro, publicado em 2012 e agraciado com o Prêmio Jabuti, o mais prestigiado reconhecimento da literatura brasileira, abre-se com a epígrafe de Sérgio Sampaio: “o pior dos temporais aduba o jardim” (9). Essa epígrafe atua como um orientador de leitura na medida em que os poemas se apresentam ao leitor e dão a ver um sujeito poético vindo do temporal, ou em meio ao temporal, que o impele ao futuro, como o Anjo de Klee, lido por Walter Benjamin (1996, Tese IX Sobre o Conceito de História), permitindo situar o próprio livro, a linguagem que ele encena, como a matéria-terra que a chuva forte aduba, faz florescer e vicejar, na agoridade dos poemas, no jogo de vozes, entre as inúmeras referências que permeiam, mais uma vez, o trabalho de Assunção.
Em A voz do ventríloquo, os escombros do mundo, do amor, da cidade se confundem com os escombros do sujeito, que recolhe os restos dos naufrágios e reconstrói a nau da experiência com as velas das dores, o leme da palavra, o lirismo de quem ainda acredita na poesia sem âncoras, vertiginosamente mar adentro:
A VERTIGEM DO CAOS
um estranho, entre estranhos, nômade
entre escombros, procuro sem
procurar, um não-lugar, um ventre
de látex de uma replicante quase
humana, as ruínas enfim apaziguadas
da bombonera, as águas que refluem
por dentro da baía de todos
os infernos, ali, onde a eternidade
são os dentes de estanho do último sol
mastigando oceanos como fatias
de pizza lançadas ao ocaso
do fundo de um naufrágio, ante
a dança misteriosa de um feiticeiro cherokee
(ASSUNÇÃO, 2012, p. 46)
A ÚLTIMA LIQUIDAÇÃO
quase nada mais a dizer
a não ser os súbitos lumes
dessas luas opacas, cabeças
de bonecas destroçadas,
clarões de nenhum lugar na mente
destronada, o ônibus em chamas
na noite escura
a fuligem sufoca o céu
e o outdoor anuncia a última
liquidação dos sentidos,
sílabas caídas, penduradas, frases
que não dizem nada,
ante o rugir das labaredas
e o cheiro de gasolina queimada
(ASSUNÇÃO, 2012, p. 76)
ÀS VEZES AS NOITES SÃO FRIAS
risadas chegam de longe, o vento
sobra de ontem, nada que a brisa
dissipe, a mancha vermelha de sangue,
um anjo com asas de areia, pousado
no beiral da janela, treme de frio, inútil, uma
lástima, no olho esquerdo uma lágrima,
chove sobre os gerânios, cavalos
tremulam as crinas, sombras vestidas
de névoa, sirenes dobram esquinas
luzes se apagam na sala, espelhos,
gilete, uma bic, a pilha de pratos
na pia, a garrafa de vinho vazia
a mancha vermelha de ontem, nada
que a brisa dissipe, o vento sobra
de sangue, risadas chegam de longe
(ASSUNÇÃO, 2012, p. 47)
COMO SE CHAMA?
a tarde aspira o aroma do incenso
a vida dura um tempo
mínima moldura onde flora e transfigura
o que se fez fundo, beijo, iluminura
e como se chama mesmo aquilo que se faz
em nós, nômades em paz na borda de um oásis,
a brisa breve valsa sem nenhum alarde
névoa espessa, uma vez desfeita, nunca mais
(ASSUNÇÃO, 2012, p. 68)
Ouvem-se na caixa acústica dos versos, a algaravia do erudito e do popular, da cultura de massa, o silêncio do zen, o rock, a voz de personagens de quadrinhos, sons dos ritos africanos, a voz do ventríloquo que é falado e fala e a voz do sujeito poético dos poemas, lírica e contundente, diante da experiência que lhe invade os sonhos, os sentidos, brisa breve valsa, a vida mesmo – entre ruínas, mas também com o leve aceno de memórias afetivas, tênues e sutis como madeleines proustianas, iluminuras.
O poema “Declaração de Bens” que atua como uma espécie de prefácio anuncia esse duplo caminho, entre o amargo e o leve, a algaravia (da vida esvaída e que ainda vale ser vivida) e o silêncio (do mar do espanto), assim:
talvez cinco ou seis destes poemas
prosperem na eternidade
talvez mais, talvez nenhum
já o esquecimento será eterno
exceto o instante, este istmo, este agora
que se grafa na pele na palma na pálpebra
e se esgarça no mar do espanto
(ASSUNÇÃO, 2012 [sp])
O livro está organizado em sete seções chamadas “diário”, seguidas de títulos específicos que se articulam ao conteúdo dos poemas em cada seção, e duas seções finais, deste modo: Diário do Ventríloquo – Primeira Noite (Poetry is dead (pequena fábula mundana)); Diário do Ventríloquo – Segunda Noite (Sarja Freta); Diário do Ventríloquo – Terceira Noite (Sangue no supercílio); Diário do Ventríloquo – Quarta Noite (Driving in the dark side); Diário do Ventríloquo – Quinta noite (Aquilo); Diário do Ventríloquo – Sexta Noite (Fábula bufa numa tarde chuvosa); Diário do Ventríloquo – Sétima Noite (Um quilo menos disso); Miséria Crítica; O Fim e o Início.
A estrutura do livro, meticulosa, revela logo ao leitor mais avisado que se trata de um projeto. As sete noites do diário contrapondo-se aos sete dias de criação, são um sinal de menos, corroborado pela “Miséria crítica”, mas afirmados pelo fim e o início: “sem isso, nem isso/esse poema/ : o fim e o início”, poema erótico, uma espécie de elogio à vulva, à vagina, à mulher, ao amor e ao gozo, em diálogo com o famoso quadro de Gustave Coubert (1866), “A origem do mundo”, faz pensar que tal erotismo precisa também ser compreendido em chave mais ampla, como pulsão de vida ou mesmo como pulsão criativa, pós-utópica, nas palavras de Haroldo de Campos, uma utopia concreta, que “se não pode mudar o mundo, busca mudanças na vida, por meio da poesia” (10): uma poética que se ancora no presente, que revisita o passado e é crítica de um futuro idealizado, mas que flagra o aceno da vida na última janela do trem:
A VIDA PASSA NA JANELA DE UM TREM
Para Boris Schnaiderman
quantos giros por aí, até me perder
de mim, e encontrar lá na frente, um outro,
eu mesmo, enfim, no rodopio,
deste mundo maluco, o passo
às vezes em falso, pisando o chão sujo
da américa, confuso caminho no tempo
e no espaço, poema
sem métrica fixa, estrela muda, quase
nula, graveto estalando na tulha, um grão
no pó da galáxia, ouço tiros, vejo música,
escrevo sinos, o sangue fluindo no pulso,
céus de ontem, azuis ou brancos, trens
que partem sem hora ou destino,
e na última janela a vida passa e acena,
chapéu de flores, sorriso nos lábios,
por detrás do vidro, a límpida face,
nos convidando pra próxima sessão de cinema
(ASSUNÇÃO, 2012, p. 71)
Os poemas, muitas vezes extremamente líricos, conferem singularidade e lugar de destaque para A Voz do Ventríloquo na cena da poesia brasileira atual, sobretudo porque, seguindo a seara de Haroldo e de Leminski, a insurgência dos beats e da contracultura, a poesia de Ademir Assunção tem no manejo ímpar da linguagem o grande alicerce. Está aí, a meu ver sua força, estética, ética e (pós)utópica.
Quando o poeta situa-se diante das ruínas, é capaz de perceber que o princípio-esperança das vanguardas e muitos dos sonhos da esquerda malograram; em seu lugar é preciso haver um outro modo de pensar o devir. No ensaio sobre a pós-utopia, Haroldo de Campos sustenta que: “Sem esse princípio-esperança, não como vaga abstração, mas como expectativa efetivamente alimentada por uma prática prospectiva (os sonhos diurnos), não pode haver vanguarda entendida como movimento […] Sem perspectiva utópica, o movimento de vanguarda perde o seu sentido” (Campos, 1997, p.266,268). Sugere que ao princípio-esperança de Bloch coloca-se, a partir de meados dos anos 1970, o princípio-realidade (11). A meu ver, os poemas de A voz do ventríloquo vão desde a constatação do caos, ácida e crítica, ao alumbramento diante da vida, mesmo que seus matizes sejam ínfimos. É como se fosse possível reencontrar a utopia, a urgência da vida – como destaca Fabrício Marques na orelha do livro, em meio aos entulhos, ao sangue, à exploração, à desilusão de uma solitária garrafa de vinho vazia sobre a pia entre a louça acumulada. Esse reencontro da utopia vem, em termos benjaminiano, pela herança cultural que o poeta incorpora e intensifica em seus versos.
Nesse sentido, a despeito da carga distópica e do ceticismo de muitos poemas, a organicidade da obra não leva à desilusão, tampouco é um elogio de escolhos, mas é pulsação de linguagem, por meio da poesia crítica e, simultaneamente, da crítica a certo tipo de poesia que tem a voz com diarreia, para falar com João Cabral; por meio do espanto, do alumbramento, do fim e do início deste corpo que se chama poema e é feito de versos, muitas vezes marcado pelo enjambement, a íntima discórdia da poesia, nos termos de Giorgio Agamben (12) dá o tom ao ventríloquo, este eu do poeta que é um outro.
O enjambement é uma figura singular para dar conta da imagem do ventríloquo e de sua voz, da discórdia, ou do desacerto entre ela e a voz do eu-poético, que se buscam uma a outra, no âmago do sujeito – no ventre – mas também nas ruas, nas pontas soltas, que já aguardam outras tantas logo ali na última janela do trem, no bang bang de sábado à noite, “no sol de ontem/ atrás das nuvens”. Se de um lado o enjambement é o despenhadeiro do verso, de outro também é o expediente pelo qual um verso em abismo agarra a mão que o verso seguinte lhe estende, por isso, a voz do ventríloquo que corre pela seara do verso, como arado (13), de um verso a outro, é denúncia e acalanto. É a voz de Ninguém e de Alguém (14) à espera.
O que muda, efetivamente, segundo a leitura que Haroldo de Campos faz para a contemporaneidade, é que o pós-utópico passa a pensar no agora em virtude de um necessário adensamento do tempo presente, impondo uma leitura crítica do passado, no sentido do Jetztzeit benjaminiano. Sob essa perspectiva, o futuro importa menos como possibilidade de realização, como importaria para Bloch, mas na medida em que virá apenas se o agora o tornar viável, o foco passa a estar no presente, embora não deixe de mirar o futuro. Parece-me que a reiteração dos enjambements no livro em questão figurativiza a densidade do agora, ao mesmo tempo que critica a dispersão a que nos leva a avalanche dos fatos, da violência, ao tempo que ao se acelerar, esvai-se, ao se esvair cria a ilusão de que a velocidade constrói enjambements, conecta a nós todos, mas na verdade, ao contrário da tensão poética entre o silêncio do branco do verso e o verso seguinte, a sociedade dromocrática funda dispersões, ergue muros de linguagem estragada entre as pessoas, pulveriza informações, manipula sobremaneira os homens, as mulheres e, para falar com Ademir Assunção, os peixes e seus líricos blues.
A poesia da agoridade, portanto, não é antifuturo, mas, como diz Haroldo de Campos, é “crítica do futuro e de seus paraísos sistemáticos” (CAMPOS, 1997, p.266), que se mostraram, por mais que fossem pensados a partir do presente, irrealizáveis. É nesse sentido que o conceito formulado por Haroldo de Campos se afasta do “princípio-esperança” de Bloch, que pensa a utopia em um momento em que o futuro era marcado pela aura de um devir ideal, ainda que fosse construído objetivamente no presente. A pós-utopia corresponderia, assim, à desauratização do futuro, não à sua negação.
Despida de aura, a voz do ventríloquo é lamparina acesa, sempre. E em algum lugar da tão real e idílica Praia Brava , topos par excellance dessa poesia, ou mesmo sob a névoa da cidade caótica e hostil, dos olhos de um anjo uma chama azul faz crer que a poesia é possível e mais: é feita de ação, de linguagem e de pulsação.
NOTAS
(1) Ademir Assunção (Araraquara/SP, 2 de junho de 1961) “poeta, escritor, jornalista e letrista de música brasileira. Autor de livros de poesia, ficção e jornalismo, venceu o Prêmio Jabuti 2013 com A voz do Ventríloquo (Melhor Livro de Poesia do ano). Poemas e contos de sua autoria foram traduzidos para o inglês, espanhol e alemão, e publicados em livros e revistas na Argentina, México, Peru e EUA”. Para aproximação à obra de Ademir Assunção, consulte-se o site do autor: https://www.zonabranca.com.br. Acesso em 3/7/2019.
(2) Folha de Londrina, Folha de São Paulo, Estado de São Paulo, Revista Veja, Revista Marie Claire, entre outros. Encontra-se em processo de edição, pela Editora da UNB, o título: “Deus Salve a Rainha e evite engarrafamentos: textos de jornalismo cultural”, trabalho que reúne quase 30 anos de atividades jornalísticas dedicadas à cultura, em uma diversidade de textos, desde matérias a resenhas e críticas de cinema. Além deste, cf. o mencionado Faróis no Caos, voltado para entrevistas, dentre as quais, destaco algumas realizadas com: Haroldo de Campos, Augusto de Campos, Caetano Veloso, Paulo Leminski, Roberto Piva, Itamar Assumpção, Alice Ruiz, Jorge Mautner, Luís Fernando Veríssimo, Grande Otelo, Néstor Perlongher.
(3) Utilizo aqui este sintagma em sentido benjaminiano.
(4) A discussão extrapola os limites deste texto, mas relaciona-se também à concepção derridiana de tradução, ambas conectadas por Haroldo de Campos no ensaio “O que é mais importante, a escrita ou o escrito: teoria da linguagem em Walter Benjamin”, publicado originalmente na Revista da Usp, n. 15, set-nov. 1992 e consultada por mim no volume Haroldo de Campos, transcriação, organizado por Marcelo Tápia e Thelma Médici Nóbrega, pela Editora Perspectiva, 2013, p. 141-154. Essa discussão é fértil para a conceituação da pós-utopia, inclusive pela coerência messiânica que existe no pensamento benjaminiano e que não passa despercebida a Haroldo, quando lê o Benjamin de “Die Aufgabe des Überstzers” [A tarefa do tradutor], de 1923, e aquele de“ Über den Begriff der Geschichte”[Sobre o conceito de História], de 1940.
(5) Diz Michel Collot:“Estar fora de si é ter perdido o controle de seus movimentos interiores e, por isso mesmo, ser projetado para o exterior. Esses dois sentidos da expressão parecem-me constitutivos da emoção lírica, que perturba o sujeito no mais íntimo de si mesmo e o leva ao encontro do mundo e do outro […]. É pelo corpo que o sujeito se comunica com a carne do mundo, que ele abrange pelo olhar e pela qual é envolvido. Ele lhe abre um horizonte que o engloba e o ultrapassa. Ao mesmo tempo vendo e visível, sujeito de sua visão e sujeito à visão de outrem. Corpo próprio e, contudo, impróprio, que participa de uma intercorporeidade complexa, fundamento da intersubjetividade que se manifesta na palavra. […]É fora de si que ele a pode encontrar. A emoção lírica, talvez, apenas prolongue ou reacione esse movimento que constantemente leva e expulsa o sujeito para fora de si, e por meio do qual unicamente ele pode ek-sistir e se ex-primir. É somente saindo de si que ele coincide consigo mesmo, não ao modo da identidade, mas ao da ipseidade, que não exclui, mas ao contrário, inclui a alteridade […]Não para se contemplar no narcisismo do eu, mas para se realizar a si mesmo como um outro.[…] Mas esse componente “subjetivo” de nossa relação com o mundo é tão “real” quanto seu componente “objetivo”: “A transformação operada pelo sujeito lírico sobre o objeto de seu enunciado transforma a realidade objetiva em uma realidade subjetiva vivida, o que faz com que ela subsista enquanto realidade” (2013, p.223-231)
(6) Uso o termo “transitividade” na mesma acepção dada a ele por João Alexandre Barbosa, em seu “A imitação da forma: sobre a poesia de João Cabral de Melo Neto. Para João Alexandre, a poesia cabralina sustenta-se na dialética entre composição poética, fechada em si, intransitiva, metalinguística, e transitiva, aberta à comunicação. Penso que a poesia de Ademir Assunção, ainda que pese a consciência formal do poeta e a metalinguagem inevitável, está principalmente voltada para a comunicação, alias, não só a poesia, mas toda a sua trajetória criativa e jornalística (como não poderia deixar de ser) voltam-se para a comunicação.
(7) Retomo aqui a visão do túmulo a mãe por Stephen Dedalus (James Joyce, Ulysses), acompanhando a relação estabelecida por Didi-Huberman entre a visão e a cisão do ver.
(8) Faço referência aqui às seguintes criações do autor: “Trilhos do Metrô”, letra musicada por Zeca Baleiro, que pode ser ouvida em https://www.youtube.com/watch?v=BtEX3oZ0Qgk, acesso em 3/7/2019; ao livro Pig Brother (Editora Patuá, 2015), cuja personagem principal é Lili Maconha, e às Fábulas Contemporâneas (mimeo), que se referem a textos de fôlego longo, em que a fronteira entre poesia e prosa é tênue, têm teor politico, sobretudo concernentes à crítica ao contexto brasileiro desde 2016.
(9) Trata-se de um verso da canção “Ninguém vive por mim”, do compositor capixaba Sérgio Sampaio (1947-1994), gravada em um compacto pela Continental em 1977 e remasterizada no CD Tem que acontecer, pela Warner, em 2002, (o CD leva o nome do álbum que o artista lançou em 1976) e que inclui a canção.
(10) Trecho extraído de entrevista que o poeta concedeu a Diana Junkes, em julho 2019 [mimeo]
(11) Aqui Campos se refere ao princípio realidade freudiano, que se opõe ao princípio do prazer e concerne a dar conta das exigências do mundo real, onde há necessidade e escassez.
(12) “O enjambement exibe uma não-coincidência e uma desconexão entre o elemento métrica e o elemento sintático, entre o ritmo sonoro e o sentido, como se, contrariamente a um preconceito muito generalizado, que vê nela um lugar de encontro, de perfeita consonância, entre som e sentido, a poesia vivesse, pelo contrário, apenas de sua íntima discórdia” (AGAMBEN, 1999, p.32).
(13) Giorgio Agamben, no mencionado Ideia da Prosa, atenta para a versura, movimento do arado na terra.
(14) Protagonista da obra Ninguém na praia brava, de 2016. Os nomes Ninguém e Alguém fazem alusão direta à Odisseia de Homero.
Referências bibliográficas:
ASSUNÇÃO, Ademir. Zona Branca. Site do autor. https://www.zonabranca.com.br.
______. Ninguém na praia brava. São Paulo: Patuá, 2016
______. Pig Brother. São Paulo: Patuá, 2015
______. A voz do ventríloquo. São Paulo: Edith, 2012.
_____. Faróis no caos. São Paulo: Sesc, 2012
______. LSD Nô, São Paulo: Iluminuras, 1994.
ASSUNÇÃO, Ademir; BALEIRO, Zeca. “Trilhos do Metrô”.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=BtEX3oZ0Qgk, acesso em 3/7/2019.
ASSUNÇÃO, Ademir. Entrevista a Diana Junkes (mimeo). São Paulo, 3 de julho de 2019, [s.l.].
AGAMBEN, Giorgio. O que é contemporâneo. In: O que é contemporâneo e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009, p. 57-73.
AGAMBEN, Giorgio. What is the Contemporary. In: ______. What is apparatus and other essays. Stanford: Stanford University Press: 2009, p. 39-55.
______. What is apparatus? In: _____What is apparatus and other essays. Satanford: Stanford University Press: 2009, p.1-24.
______. Ideia da Prosa. Lisboa: Cotovia, 1999.
BARBOSA, João Alexandre – A metáfora crítica. São Paulo: Perspectiva, 1974.
BENJAMIM, Walter. “Teses sobre o conceito de história” In: Magia e Técnica, Arte e Política/ Obras Escolhidas. Tradução: Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1996. Vol. 1, 10ª reimpressão.
BENJAMIN, Walter. On the concept of history. In______. Selected Writings, vol 4 (1938-1940). Cambridge Massachusetts: The Belknap Press of Harvard University Press, p.390-411.
BLOCH, Ernest. El principio esperanza. Vol I,II,III. Editora: Biblioteca Filosofica Aguilar, 1980.
CAMPOS, Haroldo de. Da morte do verso à constelação. Poesia e modernidade. O poema pós-utópico. In: ______O Arco Íris Branco. São Paulo: Ed. Imago, 1997, p.243-270.
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COLLOT, Michel. Poética e filosofia da paisagem. Coordenação da tradução: Ida Alves, Rio de Janeiro, Oficina Raquel.
______. O sujeito lírico fora de si. Tradução Zena Faria. Patrícia Souza Cesário. Revista Signótica. Goiânia: Universidade Federal de Goiânia. Disponível em: https://www.revistas.ufg.br/sig/article/view/25715
HUBERMANN, Didi. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 2013.
SAMPAIO, Sérgio. “Ninguém vive por mim”. São Paulo: Continental, 1977. Remasterizada no CD Tem que acontecer, pela Warner, em 2002, (o CD leva o nome do álbum que o artista lançou em 1976) e que inclui a canção.