As performances da voz no espaço da poesia brasileira contemporânea
Profa. Dra. Susanna Busato[1]
Resumo: Este artigo tem como proposta evidenciar na poesia de Ademir Assunção, em seu livro ganhador do Prêmio Jabuti de 2013, A Voz do Ventríloquo, os conceitos de “performance” e de “voz” como elementos que emergem dos sujeitos do discurso e dos sujeitos da cultura.
Palavras-chave: Ademir Assunção, voz, performance, poesia brasileira contemporânea.
“Há uma serpente enrodilhada nas ramagens
do poema”.
Ademir Assunção – A Voz do Ventríloquo
“O que há de mais fecundo para o
Pensamento que o imprevisto?”
(Paul Valéry – A Serpente e o Pensar)
“Mas, de fato, quem fala em um poema?
Mallarmé queria que fosse a linguagem, ela mesma.”
(Paul Valéry – A Serpente e o Pensar)
Perceber o espaço das molduras da poesia brasileira contemporânea é procurar distinguir no horizonte de suas vozes uma voz que tenha como roteiro uma ação performativa. Com isso quero dizer que tenho perseguido dentre tantas as que constroem espaços possíveis de elocução, ou seja, modos de expressar e construir um dizer as coisas, as que de alguma forma se posicionam para construir uma ação, uma performance única, que nasce da percepção do mundo e da linguagem. Difícil o roteiro, mais complicado ainda percorrê-lo. Elejo aqui o resultado de meu percurso até o momento, sujeito a releituras sempre necessárias. A pauta que rege, portanto, a voz que adentra meu pensamento crítico-analítico neste momento se tece a partir da que emana de A Voz do Ventríloquo (2012), obra premiada do poeta Ademir Assunção, com o Prêmio Jabuti de Poesia 2013. É nela que percebo a ousadia de ironicamente dizer, na abertura do livro, que “poetry is dead” (a poesia está morta), afirmativa que tem orientado parte da crítica da poesia brasileira contemporânea e também da crítica de arte neste novo milênio. Crítica que se pauta no sentido daquilo que hoje se produz como fruto da facilidade, da emulação e da cópia (sem fazer disso um procedimento crítico, pois normalmente informa o mesmo, a obviedade); como fruto da falta do que dizer, ou do uso deliberado de um acento abstrato e hermético de uma dicção, às vezes intimista ou descritivista de uma paisagem concreta ou imaginada (referência também à memória como lembrança, simplesmente), ou às vezes travestida em crônica de um cotidiano que morre em si mesmo, porque firmada sobre imagens já desgastadas e comuns que já perderam sua força redimensionadora do olhar.
A assertiva do livro de Ademir Assunção é alvo da “pequena fábula mundana”, uma pequena narrativa que abre a página da primeira noite do Diário do Ventríloquo, cujas sete páginas (escritas uma por noite) irão reunir o lote de sete conjuntos de poemas do livro, que é acrescido de mais dois ao final, sob o título de “Miséria Crítica” e “O Fim e o Início”. A fábula narra o flagrante da descoberta freudiana da diferença entre a dona Poesia e seu Prosa. E tal qual um Gênesis mítico que narra a dissolução da unidade e o drama humano da expulsão do Paraíso, o destino de ambos vai motivar o gesto bárbaro da arma apontada nas mãos de um deus diante da cena.
Com a legítima curiosidade de toda criança, Poesia puxou a calcinha e viu que era diferente de Prosa. Ficou encantada com a a diferença. Mas, com o tempo, o que era encantamento virou vaidade. Prosa, sentindo-se entendiado, caiu no mundo com uma traficante colombiana. Poesia, envaidescida, passou a se preocupar demasiadamente consigo mesma e se esqueceu do humano. Então, o humano virou as costas e foi ao teatro. E Deus, que olhava toda a cena, apertou o gatilho. (Assunção, 2012, p. 11)
A fábula introduz o leitor na trama de uma poesia que assume uma postura marginal no sentido de admitir o fato de sua própria morte. Em vez de fingir, aceita o argumento, ele próprio um simulacro, e o enfrenta com outro, que o dissolve. Traçará nos seus espojos a crise e assumirá a performance atávica de mergulhar no interior da cultura e da linguagem e de lá extrair as referências literárias, poéticas, históricas, midiáticas, e multiplicá-las por alusões, metáforas, citações, num alucinatório labirinto de signos, cujo objetivo é encarar de frente o tal “olho azul do mistério”, esse “it” que move o poeta para a linguagem e para a poesia. O livro é pois essa busca, esse mergulho, essa viagem para e pela poesia; uma crítica de si mesmo e da linguagem.
Insere-se A Voz do Ventríloquo, portanto, como uma performance da poesia no espaço contemporâneo da cultura, emergindo como sintoma e diagnóstico de uma época. Seu foco é a escritura de si e do mundo, voz que se multiplica em outras vozes, mirada sob a lente prismática do diário do Ventríloquo. Dois apêndices de poemas finalizam o livro, como mencionei agora há pouco: “Miséria Crítica” e “O Fim e o Início”. Cada um apresenta um poema: o primeiro, “Balada para Chatotorix”, desfere ironicamente sua mensagem, como se lê na referência do título ao poeta farsante e insuportável do mundo de Asterix, o Gaulês, e descreve o banquete bufo dos poetas críticos que devoram o “grande poema!”, preparado com o melhor da “comida boa, congelada, transgênica, / da mais alta visada, sequinha, / crocante, gema semântica”, e contra a qual o poeta impõe seu desejo de “filé e vinho, / uvas, saladas, damasco, farofa, mulheres / e um salmão bem temperado com cominho” (Assunção, 2012, p. 97). Tal diferença flagra o ambiente formal e conservador, regrado por uma poesia seguidora de padrões, ao qual se impõe como revolta o desejo do poeta, marginal a esse ambiente. O demônio do poeta esfomeado tem outros desígnios e desejos e termina a farsa do Jantar das Artes com um “estrondo – um ruidoso / ronco do estômago”, expondo nos versos pícaros o drama final do livro, cuja poesia, na sua procura por reinaugurar-se, vai resgatar, no poema seguinte, um início novo , a partir do quadro “A origem do mundo”, de Gustave Courbet, de 1866, cuja reprodução em cores figura na página. Os versos do poema de mesmo nome, “A origem do mundo (um esboço)”, alimentam-se dessa aberta ousadia final da imagem do pintor francês que choca, por um viés de realidade outra, o “isso” das coisas, seu “it” que lhe dá existência. O poema de Assunção usa o pronome demonstrativo com valor catafórico para trançar o viés que nos separa de duas realidades, ou melhor ainda, de duas vozes que reverberam outras mais: a da pintura de Courbet, que realisticamente exibe em contraplongé o púbis feminino desnudo, deslocando-o para uma outra esfera de significação, pois singulariza-o como signo da origem do mundo, como o mistério, o “it” indecifrável do universo; e a voz de uma realidade outra, recortada e vertiginosamente enumerada nos signos que a poesia recolhe como as pontas de um oroboro:
sem isso, nada disso
nem eu, nem você, nem ptolomeu
nem a música das noites em perpétuo movimento
nem os arrepios de pele, nem o estrondo do raio
nem o som do vento
nem a rebelião dos beats, nem a caverna de platão
a caravana, a bonanza, o uivo do cão
a voz aveludada de chet baker
a orelha cortada de van gogh
os versos mais loucos de leminski
[…]
os lábios entreabertos tocando de leve os mamilos
os braços arrancados da vênus de milo
[…]
sem isso, nem isso / esse poema / : o fim e o início
(Assunção, 2012, p. 103).
A poesia estaria assim asseverada como experiência de um fim e de um princípio para as coisas, a partir dos choques, dos gestos violentos desferidos na linguagem imagética do livro, mímese do movimento de um oroboro: a auto-devoração como crítica: “há uma serpente enrodilhada nas ramagens / do poema” afirmam os versos de “O pântano” (Assunção, 2012, p. 57) que na sequência aponta para a consciência das “ciladas, armadilhas, areias movediças/ no pântano […] do poema”, sendo que, a partir daí, “um monstro de folhagens está pronto para emergir “ao simples toque / da sineta de Pã”. Seria esse um desafio para a poesia do agora? O que deseja a poesia que fala pela voz do Ventríloquo? Um dos roteiros que percebo nessa voz é o da metapoesia, que deliberadamente se refere ao ser do poeta como um “orfeu” no mundo dos infernos, do qual sai com a experiência na carne, renovado, assegurando uma identidade de luta e enfrentamento: “e quando volto do inferno, quase em farrapos / sou invencível, sou fogo sobre a relva // eu sou o matrimônio da luz e da treva // […] // eu sou poeta e sigo em frente / em linhas tortas // eu não lido com palavras mortas”. (Assunção, 2012, p.48-9)
Na “Declaração de Bens”, poema-prefácio na abertura do livro, percebe-se a assinatura retórica do poeta maldito, que encena, pois, a performance de seu tempo histórico, em nota dramática:
talvez cinco ou seis destes poemas
prosperem na eternidade
talvez mais, talvez nenhum
já o esquecimento será eterno
exceto o instante, este istmo, este agora
que se grafa na pele, na palma, na pálpebra
e se esgarça no mar do espanto
Eis a cena: o “mar de espanto”. Eis o tempo: o “instante, este istmo, este agora”. Eis o corpo: a pele, a palma, a pálpebra em que se grafa na vigilância de tudo agora. Eis a utopia: a dúvida e a certeza da poesia como arma, tal qual a cena leminskiana de um mundo em ruínas para onde o poeta se lança para grafar o impossível:
sirenes, bares em chamas,
carros se chocando,
a noite me chama,
a coisa escrita em sangue
nas paredes das danceterias
e dos hospitais,
os poemas incompletos
e o vermelho sempre verde dos sinais
(Leminski, 2004, p. 17)
Essa “coisa escrita em sangue” reverbera na poesia de Ademir Assunção na atitude deliberada de um sujeito que emerge da cena bárbara com o objetivo de grafá-la, como encenam os versos de “O olho azul do mistério”, no gesto violento:
palavras escritas na água, na carne
dos que sofrem, escrevo com sangue, escrevo
com porra nas paredes das salas
iluminadas com a luz monótona dos aparelhos
de televisão
(Assunção, 2012, p. 14)
A poesia de Ademir Assunção tem sua voz projetada no diapasão de um mundo em ruínas, as que não têm caráter histórico nem turístico; as que não frequentam cartões-postais. A realidade é perpassada por um viés imagético de caráter surreal, que expõe o absurdo e o exagero como uma estratégia de construção plástica que procura mimetizar as sensações dessa realidade urbana pelo olhar do sujeito que não somente observa a cena de longe, mas a sente de perto, como tragédia, como ameaça, como um corpo que deixa seus traços no tempo e no ar. Há urgência no registro. Há urgência em viver, enquanto houver tempo. Assim também demiurgicamente advertem os versos do poema “Viralatas de Córdoba” (Assunção; Watanabe; Góes; Dohogne, 2013), que integram a primeira faixa do CD Viralatas de Córdoba, de Ademir Assunção e da Banda Fracasso da Raça[2] e que diz o seguinte:
Eles saem solitários pelas ruas
trotando, farejando, observando
São os primeiros a perceber
que uma fina substância misteriosa
circula pelos becos, pelas vielas
pelas veias da cidade
Ninguém ainda sabe seu nome
mas alguns já sentiram
seu hálito quente por perto
Talvez seja melhor abrir as janelas
Talvez não haja mais tempo
Vem-me à lembrança aqui o pintor expressionista alemão Ludwig Meidner (1884 – 1966) cujos traços sombrios e tensos com que cobria suas paisagens urbanas, pintadas num momento anterior ao conflito mundial da Primeira Grande Guerra, apresentavam um dado de violência histérica que simbolizava o colapso da cultura européia de sua época. (Miesel, 2003, p.110) Menciono o nome desse pintor em particular pois dedicou-se posteriormente à escritura de textos literários em prosa expressionista e ao ensino de arte. E um de seus textos sobre realização artística que me interessa aqui, na referência que faço à poesia de A Voz do Ventríloquo, é o chamado “An Introduction to Painting Big Cities”, de 1914 (“Uma introdução à pintura de grandes cidades”), uma espécie de guia-manifesto sobre as técnicas e instrumentos necessários para a experiência com a pintura tendo a cidade como motivo. Ao mencionar as técnicas de pintores como Pissarro e Monet na realização de pinturas de ruas de grandes cidades, Meidner afirma que ainda eles não conseguiam captar das ruas urbanas sua grotesca imagem, uma vez que sua técnica voltava-se sobretudo para as pinturas de paisagem, cujo lirismo impressionista procurava captar a imagem de árvores e arbustos mais por uma perspectiva tradicional, por meio da exploração de uma tonalidade cromática em procura dos efeitos de luz e das dissoluções dos contornos das figuras e também das cores complementares.[3] Afirma o pintor alemão que
A street isn’t made out of tonal values but is a bombardment of whizzing rows of windows, of screeching lights between vehicles of all kinds and a thousand jumping spheres, scraps of human beings, advertizing signs, and shapeless colors.[4]
[…]
It is emphatically not a question of filling an area with decorative and ornamental designs à la Kandinsky or Matisse. It is a question of life in all its fullness: space, light and dark, heaviness and lightness, and the movement of things – in short, of a deeper insight into reality.[5] (Meidner apud Miesel, 2003, p.111)
Meidner busca, no procedimento pictórico expressionista a que se lança, ao pintar as grandes cidades como urgência de sua época, o traço reto, direto, pontiagudo, e uma luz branca, prateada, violeta ou azul, pouco importa, o fato é que tanto essa luz, que deve suspender os objetos, quanto os traços, que cortam a paisagem concebida da cidade, numa geometria outra do espaço, ambos devem dar à cidade que aí nasce uma existência fantástica e ambígua, porque de igual maneira é assim percebida e sentida. Sabe-se que o pintor tem como repertório que soube introjetar trabalhos de pintores como Bosch, Blake, Delacroix e Van Gogh, dentre outros. O resultado é dramático, emerge a pintura como afirmação de um combate, de uma voz inquieta que sente, vocifera e ameaça pela presença exasperante do gesto que confirma a cidade, ou melhor, um olhar para a cidade, que ao mesmo tempo que a comemora, revela o desejo de conhecê-la. E o traço violento, de guerra, é ambíguo: representaria a guerra ou um desejo de encontrar o mistério do mundo por um mergulho nos instrumentos e técnicas da pintura do seu agora? E, portanto, a guerra seria apenas um leitmotif para a exploração das potencialidades da linguagem? Afirma Meidner no mesmo texto:
Let’s paint what is close to us, our city world! The wild streets, the elegance of iron suspension bridges, gas tanks which hang in white-cloud mountains, the roaring colors of buses and express locomotives, the rushing telephone wires (aren’t they like music?), the harlequinade of advertising pillars, and then night… big city night…”.[6] (Meidner apud Miesel, 2003, p.114-5)
Meidner, Ludwig. Die brennende Stadt (Burning City), 1913
óleo sobre tela, 66.5 x 78.5 cm
St. Louis Art Museum, St. Louis (Mo.)
Este pequeno parêntesis que faço ao mencionar o trabalho crítico e estético do pintor Ludwig Meidner serve como referência para pensar essa voz que anima a poesia de A Voz do Ventríloquo e boa parte da poesia brasileira contemporânea, que tem no gesto formal da linguagem a urgência do gesto que redimensiona o dado de realidade de sua época a partir do eco grotesco dos traços urbanos. Talvez nada de novo nessa temática da cidade que pega fogo, de uma cidade apocalíptica, de um espaço de sonho mais próximo da fantasmagoria de um pesadelo, onde o humano se encontra com o inumano do mundo. Mas talvez a urgência e insistência desse traço se insiram no plano dos versos[7] como um corte que mimetiza nossa condição inquieta diante do mundo. Como exemplo desse gesto a que a poesia brasileira contemporânea se lança, teríamos, por exemplo, os versos do primeiro poema de “Rarefato – outra trilogia do tédio”, do poeta Frederico Barbosa, que abrem o livro Rarefato, de 1990:
Nenhuma voz humana aqui se pronuncia
chove um fantasma anárquico, demolidor
amplo nada no horizonte deste deserto
anuncia-se como ausência, carne em unha
odor silencioso no vento escarpa
corte de um espectro pousando na água
tudo que escoa em silêncio em tempo ecoa
(Barbosa, 1990, p. 3)
Ou ainda, os versos de “Dupla Realidade”, do poeta Donizete Galvão, em O Homem Incabado, de 2010, dos quais transcrevo alguns:
apartado de ti
esse outro recebe
a lufada de esgoto
vinda do rio
com suas águas de chumbo
no trem, cerra os olhos
para que a visão crua
não o fira
mais do que já foi ferido
vaga por calçadas
e busca nos muros motivos
para essa errância
que não encontra repouso
[…]
(Galvão, 2010, p. 46)
Ao trilhar o caminho das vozes que emanam da voz do Ventríloquo posso performatizar pela leitura um percurso: o do mergulho na realidade para dela extrair os matizes de luz do seu espectro de sombras, o que implica perceber os objetos da cultura na sua urbana presença. Seriam eles mesmos vozes a reverberar pela voz do Ventríloquo, esse sujeito que se desdobra para criar uma forma ritualística de protagonizar a crise de sua época. Como um demiurgo, é uma voz que se assoma diante do mundo apocalipticamente percebido e criticamente representado, numa procura não apenas temática das formas, mas numa procura formal em termos de seus instrumentos de construção artística.
A voz, para Paul Zumthor (2014, p. 82), “é uma coisa”. Sua materialidade revela o corpo que a reverbera: um corpo-linguagem que articula os signos da cultura que a habitam. “A voz repousa no silêncio do corpo”, afirma Zumthor (2014, p. 82) e mais: ela emana dele e depois volta. “Nesse lugar em que a voz se dobra nela mesma, identifica-se com o sopro, de onde tantos outros simbolismos, recolhidos pelas religiões: o sopro criador, animus, rouah; a voz como poder de verdade.” (Zumthor, 2014, p. 82)
Uma de suas teses formuladas no livro Performance, recepção, leitura, de que me sirvo aqui, diz que
a voz é uma subversão ou uma ruptura da clausura do corpo. Mas ela atravessa o limite do corpo sem rompê-lo; ela significa o lugar de um sujeito que não se reduz à localização pessoal. Nesse sentido, a voz desaloja o homem de seu corpo. Enquanto falo, minha voz me faz habitar a minha linguagem. Ao mesmo tempo me revela um limite e me libera dele. (Zumthor, 2014, p. 81)
Uma outra, também importante para nosso raciocínio aqui, é a seguinte:
Escutar um outro é ouvir, no silêncio de si mesmo, sua voz que vem de outra parte. Essa voz, dirigindo-se a mim, exige de mim uma atenção que se torna meu lugar, pelo tempo dessa escuta. Essas palavras não definiriam igualmente bem o fato poético? (Zumthor, 2014, p. 81)
Percorrendo esse prisma de leitura, percebo que a poesia de A Voz do Ventríloquo irá procurar construir uma sintaxe própria para seu verso para poder dar a ele uma espontaneidade de expressão e um ritmo que plasme a oralidade pensada como a voz soprada do Ventríloquo, que nasce de dentro dele (e da linguagem) e se deseja naturalmente reverberada nas paredes do poema. Por isso deve-se pensar a lógica que rege a construção dos versos de sua poesia a partir de uma ótica do fragmento, da justaposição e da enumeração disparatada, compreendidos como dispositivos construtores do ritmo interno dos poemas que se torna, pois, o diapasão do modo de sentir desse sujeito que se desaloja de si mesmo ao construir uma voz que vai habitar o espaço das imagens que, virtualmente ou simbolicamente, nascem da realidade. Poderia chamar de “inferno” o espaço virtual provocado pelas imagens que se assomam pelo plano enunciativo e expressivo dos versos. Alerta Paul Zumthor (2014) que o
pressentido não é necessariamente uma imagem: ele é imaginável, ele tem a possibilidade de produzir uma imagem. De qualquer maneira o virtual frequenta o real. Nossa percepção do real é frequentada pelo conhecimento virtual, resultante da acumulação memorial do corpo. (p. 79)
Assim, pois, completa o autor, “o virtual aflora em todo discurso. No discurso recebido como poético, invade tudo. Está aí, no nível do leitor, uma das marcas do ‘poético’” . (p. 79-80) A ideia de jogo pode ser aventada aqui também diante da profusão das vozes que emergem desse espaço construído no poema, animado pelas imagens, e do discurso vertiginoso que principia a viagem crítica e apocalíptica do discurso poético do Ventríloquo.[8] O inferno como imagem, percebida e vocalizada no discurso do Ventríloquo e nas vozes que emanam dele: eis o que emana de um espaço urbano que abdica da mera referencialidade no poema para se projetar como um “não-lugar”, ou melhor, como um espaço não-habitável, movente e dinâmico, que irá encontrar sua plástica num cenário fantasmagórico e infernal, este sim habitado pelas vozes que emanam do Ventríloquo.
Em termos plásticos-formais, o discurso do fragmento rege, portanto, a sintaxe do livro e rompe com a lógica da contiguidade para impor um dado de rarefação no encadeamento discursivo. A rarefação do sentido constrói uma ordem segunda, a da lógica por similaridade. Assim é que a “voz” do Ventríloquo se inscreve nas páginas de seu diário e ecoa nos poemas, reverberando as sensações, a cultura, a crítica, enfim, outras vozes de que se compõe o mosaico de objetos e personagens que habitam o mundo e que têm origem no processo de reflexão instaurado como enunciação nas páginas do diário desse personagem.
Na voz do Ventríloquo há um processo instaurador de uma descoberta: “pra saber quem eu sou / preciso descer até o inferno”. (Assunção, 2012, p. 48) A memória de seu corpo, como agente do tempo e do espaço de linguagem, pelo olhar sente seu tempo e inaugura um lugar, ou melhor, um “não-lugar”, esse continente-conteúdo movente das referências que vão construindo o espaço da escrita. Tal qual um “orfeu”, desce aos infernos das imagens de seu tempo para descobrir-se na pele dessas outras vozes.
Há ainda nessa voz a descrição objetiva de cenas que alegoricamente acenam para os fantasmas que habitam as ruas e as noites geladas das andanças e experiências do sujeito, este se identifica a uma espécie de flanêur, um habitante da linguagem, cujo olhar colherá sempre um momento de lirismo em meio ao caos, como os excertos seguintes podem mostrar: “e essa linda lua / malandra, lambendo a água / no asfalto”; ou: “o anjo balança suas asas / na face ferida da tarde”; ou ainda: “há manchas de sangue e raiva / na penumbra do poema”; ou ainda mais esta: “a miragem / de um navio fantasma / tremula / no poema”.
A voz do Ventríloquo na poesia de Ademir Assunção emerge a partir de dentro da própria linguagem. Seu destino bom ou ruim desconhece a si mesmo e é pela enunciação de um desejo que constrói no corpo do sujeito do poema um dizer as coisas por um roteiro cujo mapa já está escrito no destino maldito deste “Orfeu nos quintos dos infernos”, título do poema a seguir:
pra saber quem eu sou
preciso descer até o inferno
lá encontro o Homem do Nariz de Ferro
o mais tenebroso dos internos
jogo pôquer com o rei das profundezas
e com o escroque especialista em safadezas
vejo o velhaco encurralando a vil marmota
e o desespero do banqueiro em bancarrota
lá eu vejo a queda do império de ilusão
quem banca o esperto logo sai sem um tostão
e quando volto do inferno, quase em farrapos
sou invencível, sou fogo sobre a relva
eu sou o matrimônio da luz e da treva
eu sou o barco e o barqueiro
o alvo, a flecha e o arqueiro
eu sou a mandíbula do tubarão
e o grito de dor do surfista
a mentira na manchete do jornal
e a bomba do atentado terrorista
eu sou a faca que atravessa
o peito do político traidor
e as ruínas queimadas do templo
do vigarista mercador
eu sou poeta e sigo em frente
em linhas tortas
eu não lido com palavras mortas
(Assunção, 2012, p. 48).
O sujeito de A Voz do Ventríloquo parece já permear a obra de Ademir Assunção desde muito antes, e o poema seguinte é uma amostra da auto-identidade desse sujeito meio-demônio, meio-homem, um maldito por natureza, que admite sua existência como um cão que ladra e disfere sua mordaz mandíbula contra o mundo. A linguagem de sua pele toca a linguagem do mundo concebido como o “inferno”, imagem que será presente ao longo de sua obra.
O Coisa Ruim
me querem manso cordeiro
imaculado
sangrado no festim dos canibais
me querem escravo ordeiro serviçal
salário apertado no bolso
cego mudo e boçal
me querem rato acuado
rabo entre as pernas
medroso um verme pegajoso
mas eu sou osso duro de roer
caroço faca no pescoço
maremoto tufão furacão
mas eu sou cão
ladro mordo arreganho os dentes
incito a revolta dos deuses
toco fogo na cidade
qual nero
devasto o lero lero
entro em campo desempato
eu sou o que sangra
um poeta nato
(Assunção, 2001, p.22)
A poesia é voz de uma experiência. Mas, de uma experiência estética, que, eu diria, se performatiza em choques. O gesto é violento. Seus poros e seus vasos reverberam sua voz, uma voz que vem de dentro. Ressoa nela sua cultura, sua história, sua urgência, em complexas confluências vocálicas e consonantais (sua língua). Em imagens, citações e referências, sua voz ritmiza-se como sangue a pulsar nas sílabas e na sintaxe de seu canto. Como uma serpente que se enovela e, sempre alerta, avança na linguagem a língua apontada para o corte necessário, este aqui-e-agora de um tempo e espaço que se aninham na periférica trama, na marginal façanha: a de descobrir, de conhecer, para além das molduras, a realidade. A realidade: espaço que lhe serve de fundo e do qual se separa, para entrever no familiar que obstaculiza a percepção o elemento insólito, o estranho, o olho azul do mistério das coisas. Seria esse o movimento da serpente que habita a voz do Ventríloquo, metáfora da poesia? Seria essa uma imagem para a busca do conhecimento? Recorro a Paul Valéry (apud Campos, 1984), pela serpente do discurso de seus Cahiers, para pensar a imagem que confere ao movimento de descoberta da poesia uma outra, a da serpente que come a própria cauda. Seu fim é o seu princípio, o retorno. A poesia: um oroboro. Em 1944, escreve:
Mas é só depois de um longo tempo de mastigação que ela reconhece no que ela devora o gosto de serpente. Ela para, então… Mas ao cabo de um outro tempo, não tendo nada mais para comer, ela volve a si mesma… Chega então a ter a sua cabeça em sua goela. É o que se chama “uma teoria do conhecimento”. (Campos, 1984, p. 113)
Tarefa insólita a da poesia que deseja compreender o mundo, porque o “azul do mistério”, esse espaço intangível que o recobre evola-se sob camadas de realidade, estas sempre mais híbridas e complexas que as imagens televisivas do mundo urbano querem supor. A mídia mosaical de nossos dias reprime a realidade e a compartimentaliza em fragmentos de vozes (manchetes, textos e imagens). E a manipula. Sua ventriloquacidade está em seu poder de repetição e de exaustão dos significados.
Ventríloquo será aquele que, não desejando mostrar que fala, assumindo boca e rosto – ou a per-sona, a máscara através da qual soa a voz -, não faz outra coisa que falar, mas, ao falar com a barriga, mal fala, embora fale suficientemente para atingir seu fim, o logro do receptor quanto à origem da voz. (Tiburi, 2015, s/p.)
Mas a poesia tem sede e em nossos dias evola sua serpente como uma forquilha sobre o solo da linguagem. Procura também uma voz que do ventre dessa linguagem possa reinventar-se diante da memória de nosso tempo. Diante disso, um jogo se estabelece: a voz que vem do ventre da linguagem só se concretiza pelo corpo do ventríloquo. Este performatiza em voz, corpo e palavra as muitas vozes que escuta, de sua memória e experiência poética e de vida. Na impossibilidade de criar num mundo de cópias e emulações como o nosso, em que a noção de original é vaga e a de cópia, tradução e adaptação ganham espaço para dar conta dos vários textos que se desdobram no seu trajeto de representar o homem e seus questionamentos mais arquetípicos, a poesia encontra um modo de se insurgir como ação e como procura. Lograr o receptor quanto à origem da voz passa a fazer parte do jogo, e deixa de ser negativo para se configurar como um jogo salutar, porque questiona juntamente com o procedimento o modo de olhar e a profusão dos pontos de origem dessa voz, que vão mosaicar o mundo complexo do Ventríloquo: o mundo complexo da poesia que se desdobra nesse espaço.
Referências Bibliográficas
ASSUNÇÃO, Ademir (2012). A Voz do Ventríloquo. São Paulo: Edith.
___. Zona Branca (2001). São Paulo: Travessa dos Editores.
CAMPOS, Augusto de (1984). Paul Valéry: a serpente e o pensar. São Paulo: Brasiliense.
CAILLOIS, Roger (1986). Los juegos y los hombres: la máscara y el vértigo. Trad. Jorge Ferreiro. México: Fondo de Cultura Económica.
LARA, Larissa Michele; PIMENTEL, Juliano Gomes de Assis (2006). Resenha do livro os jogos e os homens: a máscara e a vertigem, de Roger Caillois. Revista Brasileira de Ciência e Esporte. Campinas, v. 27, n. 2, p. 179-185, jan.
LEMINSKI, Paulo (2002). La vie en close. 5ª. ed. São Paulo: Brasiliense.
MEIDNER, Ludwig (2004). An introduction to painting big cities. In: MIESEL, Victor H. Voices of German Expressionism. London: Tate Publishing. p. 111 – 115.
MIESEL, Victor H (2004). Voices of German Expressionism. London: Tate Publishing.
TIBURI, Márcia (2015). Ventriloquacidade. Revista Cult. Disponível em http://revistacult.uol.com.br/home/2015/11/ventriloquacidade/. Data de acesso: em 15/12/2015.
ZUMTHOR, Paul (2014). Performance, recepção, leitura. Trad. Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo: Cosac Naify.
The voice performances in the space of Brazilian contemporary poetry.
Susanna Busato
Abstract: This article aims to point out in Ademir Assunção’s winner book of 2013 Prize Jabuti – A Voz do Ventríloquo – the concepts of “performance” and “voice” as elements that emerge from the relations between the subject of discourse and the subjects of culture.
Key-words: Ademir Assunção, voice, performance, Brazilian contemporary poetry.
[1] Susanna Busato, Professora Assistente-doutor do Departamento de Estudos Linguísticos e Literários – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP, câmpus de São José do Rio Preto/ SP. susanna.busato@gmail.com
[2] A poesia oralizada com o acompanhamento da Banda Fracasso da Raça, em ritmos que vêm do rock, do jazz e do blues, é uma das atividades do poeta Ademir Assunção, enriquecendo sua performance criativa e crítica.
[3] “We cannot solve our problems by using Impressionist techniques. […] Traditional perspective inhibits our spontaneity and is meaningless for us. ‘Tonality’, ‘colored light’, ‘colored shadows’, ‘the dissolving of contours’, ‘complementary colours’, and all the rest of it are now academic ideas.” (Meidner apud Miesel, 2003, p.111)
[4] “Uma rua não é feita de valores tonais mas de um bombardeamento de esfuziantes fileiras de janelas, de gritantes luzes entre carros de todos os tipos e de mil esferas saltitantes, de fragmentos de seres humanos, cartazes de publicidade, e de cores disformes”. (tradução nossa)
[5] “É enfaticamente não uma questão de preencher uma área com desenhos decorativos e ornamentais à la Kandisnki ou Matisse. É uma questão de vida em toda sua completitude: espaço, luz e sombra, densidade e leveza, e o movimento das coisas – em síntese, é uma profunda percepção dentro da realidade”. (tradução nossa)
[6] “Pintemos o que está perto de nós, nosso mundo urbano! As tortuosas ruas, a elegância das pontes férreas suspensas, dos tanques de gás que se aglomeram em montanhas de nuvens brancas, as cores tremulantes de ônibus e locomotivas, os fios exasperantes de telefones (não são como música?), a arlequinados pilares de publicidade, e a noite… a grande noite da cidade…” (tradução nossa)
[7] Em termos estruturais, no plano do verso, o uso da fragmentação, da não-pontuação, da letra minúscula, dos dísticos e das estrofes longas, da liberdade em rimar ou não, dos enjambements fazedores de sentidos, enfim, nada disso é novidade para a poesia do agora, que se situa na liberdade formal das estruturas para se insurgir. Não percebo na poesia de Ademir Assunção a inauguração de uma forma nova no plano do verso; talvez não esteja aí o compromisso de sua poesia, ainda que ela eleja uma forma. Essa questão, sobre a qual não irei me deter neste momento, é importante para perceber que o plano formal do verso nasce a partir da voz e lhe dá concretitude.
[8] Faço aqui uma referência breve ao conceito de “mimicry” e “ilinx”, que Roger Caillois (apud Lara; Pimentel, 2006), na sua obra Los juegos y los hombres: la máscara y el vértigo, explica no contexto da noção de jogo. Roger Caillois categoriza como formas institucionalizadas, ligadas ao sistema, o “mimicry”, na sua referência ao “uniforme, os cerimoniais, os ofícios de representação”; e o “ilinx”, por sua vez ligado às “profissões que exigem domínio da vertigem” (apud Lara; Pimentel, 2006, p.180). Afirma-se também que a “ligação de mimicry e ilinx, em suas formas mais claras, aparece como metamorfose das condições de vida, constituindo-se num dos recursos principais da mescla de horror e fascinação. Nessas duas coligações, apenas as categorias mimicry e agon são consideradas verdadeiramente criadoras”. (Lara; Pimentel, 2006. p. 182) Poder-se-ia pensar, portanto, que o discurso lúdico das vozes que habitam A Voz do Ventríloquo estaria no âmbito da vertigem formal do discurso, da sintaxe vertiginosa.