O POEMA EM PROSA E O RESGATE SIMBÓLICO: A TRADIÇÃO REINVENTADA[1]
O Poema em Prosa
No século XIX, o movimento romântico, onde quer que tenha ocorrido, foi o grande responsável por uma verdadeira revolução no pensamento estético e filosófico do homem. Na literatura, por exemplo, ele fez com que o romance se firmasse como o gênero por excelência da classe burguesa que consolidava um processo de ascensão iniciado com a formação das grandes cidades, ainda durante a Idade Média. Dessa forma, expressões como literatura burguesa e, sobretudo, romance burguês, ganham um sentido bastante peculiar: formas que servem, ao mesmo tempo, de entretenimento para uma classe financeiramente abastada, que se entediava com a própria fortuna, e um meio de se obter a cultura que faltava à burguesia e que era o único patrimônio que restara à nobreza arruinada do Antigo Regime.
Esteticamente, no entanto, foi na poesia que o movimento romântico logrou alcançar sua mais consistente revolução. Rejeitando os modelos e as tradições impostas pelos velhos manuais estéticos do classicismo, os poetas românticos libertaram, o quanto puderam, o verso. Assim, o signo poético romântico é o da ruptura, da quebra, da fratura, sempre em busca de uma liberdade ampla e irrestrita, uma liberdade tão radical que leva a poesia aos limites e fronteiras de um novo gênero: o poema em prosa. A França é o lugar em que este novo gênero mais se desenvolveu, embora sua origem, me pareça, está mesmo nos fragmentos literários publicados pelos primeiros românticos alemães – principalmente Novalis e Schlegel – ainda em fins do século XVIII e na primeira década do século XIX. Mais tarde apenas é que viriam Rimbaud, com suas Iluminações e Uma Temporada no Inferno; Baudelaire, com seu Spleen de Paris e J. K. Huysmans, com a coletânea La Drageoir aux épices. Tanto os fragmentos literários quanto os poemas em prosa refletem, em suas formas híbridas, decompostas, estranhas e diáfanas, a consciência estilhaçada do homem moderno.
Tzvetan Todorov, em Os Gêneros do Discurso (1980), dedica todo um entrecho do livro a abordar as questões essenciais da narrativa e o modo como esta, em determinados momentos ou casos, promove uma espécie de apagamento das distinções evidentes e características entre prosa e poesia, demonstrando como os limites entre os gêneros podem ser fluidos e traiçoeiros. Evitando determinações absolutas de toda ordem, Todorov propõe a tese de que o verso não é a categoria definidora da poesia e que não se trata de pensar o problema a partir da oposição básica entre prosa e poesia, mas de compreender que é “a prosa que se opõe ao verso” (p. 112) e que se este está excluído do jogo discursivo, deve-se perguntar “a que se opõe o poema” (p. 112), buscando definir a essência mesma do poético.
É a partir dessa proposição que Todorov afirma ser o poema em prosa o “lugar ideal para tentar encontrar uma resposta sobre a natureza da ‘poesia sem o verso’” (p. 112). Sendo assim, a problemática proposta não é tecnicamente a da distinção entre gêneros, mas sim como a essência mesma do poético subsiste alheia ao verso, como o poema em prosa, não se estruturando a partir da singularidade rítmica do verso, não deixa de ser uma manifestação naturalmente poética. Nesse sentido, o poema seria, então, apenas uma das formas – uma das estruturas – através das quais se expressa a natureza da poesia, do fenômeno poético, e não uma unidade absoluta de compreensão do próprio caráter da poesia. Uma das formas, não a única. É o que se pode perceber por meio dos estudos de Todorov; principalmente quando ele busca situar não as fronteiras e os limites entre os gêneros, mas a forma como estes se inter-relacionam, numa tentativa de superar suas próprias limitações estilísticas e estéticas.
Não é por acaso que a reflexão de Todorov sobre os gêneros discursivos envereda-se pelos mais diferentes caminhos: vai da noção mesma de literatura, passa pela discussão dos gêneros e se detém nas relações abertas entre narrativa e poética, prosa e poesia. A idéia é demonstrar que os gêneros não podem ser tomados como formas puras ou estanques de representação discursiva, que há narrativas que concebem seu substrato essencial a partir de uma estreita relação com a poesia – como é o caso do romance poético ou da narrativa poética -, assim como há manifestações poéticas que prescindem do verso e tomam de assalto a prosa, subvertendo e anarquizando as regras do jogo estético que nos impõem a crença de que a poesia, como manifestação discursiva, depende sempre do verso, do ritmo, do poema, em suma, para afirmar-se como forma e estrutura definida. E é justamente essa subversão radical entre os gêneros que engendra o poema em prosa e todas as suas interditas sutilezas.
Se o poema como forma de expressão, como uma apresentação, instaura uma ruptura em relação à linguagem de uma forma geral – e a linguagem literária particularmente –, o poema em prosa leva ao limite o ideal estético-criativo de ruptura: de um lado, representa a sublevação da própria linguagem criadora e, de outro, rejeita as formas pré-estabelecidas ou automatizadas das quais a poesia lança mão, negando a noção mesma de estrutura, pondo a perder o horizonte, as fronteiras demarcadas entre os gêneros literários. Talvez por isso seja tão difícil conceituar e definir, partindo de uma visada teórico-analítica, o que é, em essência, o poema em prosa.
Cada poeta que, em um dado momento de sua produção, rejeita o verso como medida e manifestação exemplar da poesia, nega os limites entre os gêneros e busca no poema em prosa uma nova maneira de se aventurar pelos caminhos e descaminhos da criação, acaba por conceber uma forma expressiva radicalmente nova, que não pode ser tomada, compreendida ou teorizada em relação à própria tradição literária a partir da qual se prefixou. O que equivale a dizer: cada poeta, ao valer-se do poema em prosa, encontra na tradição – legada sobretudo por Baudelaire e Rimbaud – não um modelo definido de composição – como aconteceu e acontece com o poema propriamente dito –, mas uma singularidade plena, absoluta, que não pode servir como guia, referência ou fundamento para um diálogo consciente. A condição determinante do poema em prosa é justamente essa impossibilidade de afigurar-se como um modelo exemplar, como uma forma mais ou menos padronizada de composição. Ele leva às últimas conseqüências a ruptura com os padrões normativos do gênero.
Assim, a característica essencial do poema em prosa diz respeito a essa singularidade plena, não-modelar, que se desvincula da tradição e não oferece parâmetros ou paradigmas estruturais mais ou menos definidos, diferentemente do poema e algumas de suas formas de expressão consagradas, como o soneto, a balada, a sextina, a terza rima e etc., todas circunscritas no tempo, modelares, sobremarcadas pela força ordenadora da tradição. Além disso, o poema em prosa não é, simplesmente, uma experimentação formal ou estilística, uma aventura criativa gratuita, sem maiores conseqüências, a qual o poeta, inadvertida ou conscientemente, resolve se lançar.
O poema em prosa é o resultado daquela mesma inquietação estética, sensível, que move o poeta em direção aos deslimites abissais da poesia, assim como propõe Claude Esteban em Crítica da Razão Poética: “A inquietação não é pois, no sentido tradicional do termo, uma paixão. Ela não se contenta em sofrer o choque dos contrários; trabalha – na incerteza do resultado ou da resultante das forças opostas, o que não significa de modo algum no ceticismo ou na desilusão dos atos que realiza. E direi de outra forma, usando conceitos já envelhecidos dos velhos fenomenólogos, que a inquietação é uma intencionalidade inquieta, e não uma consciência feliz ou infeliz. Voltada para o que não cessa de fazer-lhe falta, ela busca fora do alcance, fora da consecução”(1991, p. 37-38).
Mas parece insuficiente afirmar a inquietação como postulado fundamental que conduz o poeta à rejeição do verso e à conciliação com a prosa. A inquietação que motiva a poesia, manifesta em uma cadência, um ritmo, uma melodia que prescinde da música para que o jogo dos sentidos se aguce, é de outra ordem quando nos vemos entregues às sinuosidades e às armadilhas do poema em prosa. A inquietação estética que conduz o poeta aos deslimites do verso e às fronteiras da prosa é, na verdade, uma exacerbação dos sentidos e da consciência poética, o re-conhecimento de que há algo de arbitrário no universo nomenclativo, conceitual, que engendra as limitações teóricas e analíticas entre os gêneros. A inquietação que gera o poema em prosa é da ordem de uma ruptura absoluta e radical, que questiona não apenas as definições e distinções mais ou menos aceitas entre prosa e poesia, mas principalmente a arbitrariedade crítica e teórica que procura separá-las irremediavelmente.
O poema em prosa, então, é um ataque, um desafio e uma resistência contra os próprios postulados dos gêneros. Uma forma de dilaceração plena do eu, das coisas, do mundo e da criação em si mesma. Dilaceração que acena sempre para uma individualidade mais funda, exasperada por se firmar, por se re-conhecer, por se desvelar. Dilaceração sempre renovada, que entrevê, na prosa, a possibilidade de um registro narrativo de caráter fabular, ao mesmo tempo em que percebe, na poesia, a única forma verdadeiramente livre e subversiva de desautomatizar a linguagem cotidiana, rompendo drasticamente com a crença contemporânea na referencialidade e anunciando a extremada urgência de resgatar o poder simbólico da palavra.
O Resgate do Simbólico em Cinemitologias, de Ademir Assunção, e Dicionário Mínimo, de Fernando Fábio Fiorese Furtado.
Arlindo Machado, no ensaio Poesia e Tecnologia[3], afirma que no mundo contemporâneo, com o desenvolvimento constante e sempre mais acentuado de novos processos e procedimentos tecnológicos, “sucessivas gerações de poetas e analistas se tornam cada vez mais convencidas de que o conceito de escritura está se redefinindo profundamente em nosso século” (1998, 12). O crítico trata de uma forma de escritura – a poética – que tem suas estruturas drasticamente marcadas por esses novos processos tecnológicos: a infopoesia, a holografia, a videopoesia, e etc., seriam novas formas de escritura poética em que a palavra – sua matéria fundamental – acabaria por se transformar radicalmente a partir das possibilidades oferecidas por essas novas formas de mídia: o uso deliberado das cores; o movimento; a projeção; a ocupação espacial; a dissolução, seriam maneiras de re-significar a palavra, abrindo-lhe novas possibilidades de sentido:
Assistimos hoje a uma transformação tão importante no modo de produção textual quanto aquele que, em outros tempos, substituiu instrumentos como o pincel, o caniço e a pena de ganso por caracteres móveis uniformes, ou suportes como a pedra, o papiro, o pergaminho e o velino por folhas de papel seqüenciais. Saussure costumava dizer que o fato de uma palavra ser escrita com esta ou aquela cor, com pena ou cinzel, em alto ou baixo relevo não tinha a menor importância, quando o que estava em jogo era o seu processo significativo. Mas no discurso poético, os recursos expressivos de que lança mão o poeta são fundamentais para definir os significados construídos pelo poema.
Quando a palavra é colocada numa tela de televisão ou restituída tridimensionalmente através da luz coerente do laser (na holografia), quando ela ganha a possibilidade de movimentar-se no espaço, de evoluir no tempo, de transformar-se em outra coisa e de beneficiar-se do dinamismo cromático, a sintaxe que a rege torna-se necessariamente outra, as relações de sentido transformam-se e o próprio ato de leitura redefine-se. (Machado, 1998, 12)
Não há dúvidas de que os recursos expressivos tomados de empréstimo ao domínio das novas formas de mídia transformam os sentidos da palavra poética e redefinem o próprio ato de leitura, mas o que nos interessa, aqui, é perceber que o resgate do valor expressivo da palavra – sua dimensão simbólica, que abre o jogo dos sentidos – não vive e não pode viver na dependência restrita da técnica, não se dá apenas por meio de novos suportes ou diferentes instrumentos de escritura, mas também no domínio da tradição aberta e sedimentada pelo próprio livro. Assim, Arlindo Machado parece condicionar a mudança de rumos da escritura contemporânea aos processos oferecidos pelas novas tecnologias, o que significa um reducionismo gritante em relação à capacidade do poeta em redimensionar o valor e o poder simbólico da palavra sem contar com determinados aparatos técnicos.
Nesse sentido, o poema em prosa, gênero híbrido e estranho, passa a ser uma forma de manifestação poética na qual a palavra leva ao limite suas relações de sentido e o jogo declarado entre forma e conteúdo, abolindo até mesmo as demarcações mais claras e conscientes entre os gêneros literários e, por conseqüência, redefinindo profundamente o próprio gesto da leitura. É o que podemos entrever a partir de duas obras distintas, de dois poetas contemporâneos que, cada um a seu modo, resolvem resgatar o poder simbólico da palavra fazendo do poema em prosa o lugar ideal da invenção, do estranhamento e da re-significação da palavra poética: Cinemitologias, de Ademir Assunção, e Dicionário Mínimo, de Fernando Fábio Fiorese Furtado. Ambos os poetas buscam, em suas obras, reaver a força simbólica e expressiva da palavra, diluída pela ilusão contemporânea da comunicação absoluta, da informação total, da referencialidade plena. E tanto Cinemitologias quanto Dicionário Mínimo constroem-se como uma forma de romper esse cerco ilusório, que deposita nos processos tecnológicos e midiáticos de criação toda a sua crença artística e estética. Os dois livros representam, assim, uma resistência absoluta ao “fascínio do fácil”, que os novos suportes e as novas formas de escritura engendradas pela contemporaneidade podem oferecer.
Cinemitologias foi lançado originalmente em 1998, com uma tiragem limitada de apenas 100 exemplares, através de um processo de impressão conhecido como docutec, que barateava os custos de edição do livro. Em 2002, numa edição revista, Ademir Assunção publica, pela Atrito Art Editorial, uma tiragem de 500 exemplares, refazendo o projeto iconográfico da obra – símbolos indígenas, grafismos e desenhos primitivos, padrões de cerâmica antigos, e etc. –, que mantém um diálogo direto com os próprios poemas. Nessa obra, o resgate do simbólico passa necessariamente, pelo redimensionamento do valor do mito, das culturas primitivas, do paganismo e da liberdade plena dos instintos, tudo ordenado em uma escritura de matiz surrealista, que não descarta as referências a uma certa paisagem urbana contemporânea, pop, tão estranha e diáfana quanto a própria vazão onírica e mítica que a escritura de Cinemitologias enseja.
Organizado sob a forma de um diário que, entrecortado, abrange o período de tempo de um ano – de 02.01 a 02.12 –, sendo que é justamente a dimensão temporal que a poética mítico-simbólica de Ademir Assunção abole em sua essência. Isso porque a característica central do mito – proposto no próprio título – é prescindir da condição temporal do homem e abrir um canal de comunicação coma condição humana em si mesma, no que ela tem de mais primitivo, no sentido antropofágico do termo, e de mais original, no sentido de busca pela gênese primeira e rediviva da essência humana. Diário do mito e do inconsciente, segundo o próprio autor na introdução à segunda edição:
A estruturação do livro em datas remete, evidentemente, à idéia de um diário. Trata-se, porém, de um diário do sono, do sonho, do tempo dormido. O que busquei nesta pequena aventura literária foi um fluxo vertiginoso das imagens, como os processos oníricos, reciclados e transformados em linguagem escrita. Como um cinema do inconsciente. (Assunção, 2002, 9)
Realmente, Cinemitologias permite entrever sua estrutura imagética latente, que pulsa e se oferece ao olhar como uma provocação, um desafio e um deslumbre. Cada poema em prosa é concebido como o fragmento de um filme cujas cenas se confundem e distorcem, criando uma paisagem de fundo surrealista. Mas Ademir Assunção continua:
Glauber Rocha comparava a estrutura de montagem da linguagem cinematográfica com a estrutura dos sonhos. Os surrealistas chegaram a produzir vários filmes influenciados diretamente por sonhos – como Un Chien Andalou, de Salvador Dalí e Luis Buñuel. Cinemitologias nada tem a ver, no entanto, com automatismos de escrita. Em meu trabalho, procurei sempre desautomatizar a linguagem. (2002, 10)
Nesse mundo contemporâneo, em que o discurso sociológico, político, filosófico, artístico e estético acena, sempre, para a ruína da representação, para a falência, a impossibilidade e as limitações do próprio discurso – inclusive como instância primeira do próprio ideal de representação –, cabe ao poeta, num esforço ao mesmo tempo lúdico, mágico e intelectual, resgatar a capacidade, o poder e o valor simbólico da linguagem. Ao poeta, fica a ingrata missão de representar o mundo, as coisas, o homem. Indo mais longe: cabe ao poeta recriá-los, reinventá-los a cada instante. É o poeta quem redimensiona e abre novamente a linguagem aos deslimites dos sentidos. Se a verdade ruiu, junto com a crise da representação, os grandes sistemas ideológicos e com o próprio homem, resta ao poeta seu desígnio primeiro e seu infortúnio eterno: restaurar a verdade para além de seus próprios escombros.
E o poeta sabe que restaurar a verdade, valendo-se do poder simbólico da linguagem, é cifrar os sentidos, omitir, negar, a priori, toda significação que se dê ou ofereça passivamente, que permaneça no limiar da reflexão. Assim, o mito é a única forma do poeta adentrar o espaço da reflexão; a única maneira de desvirtuar o automatismo da linguagem, de reaver as verdades mais primitivas, essenciais, nas quais inevitavelmente nos reconheçamos. O mito instaura nossa representação ideal porque se constrói a partir do fluxo irrefreável da vida mesma. O mito extrai sua fratura mais decisiva da comunicação secreta, íntima e interdita, com as dimensões mais profundas da própria existência:
02.01
Recuerdos de um ácido na Ilha do Desterro: que a vida seja aquela contínua risada que se derretia enquanto o ácido atuava nas células cerebrais. No fim, todas as coisas continuavam em seus lugares: o mar no mar, a cachoeira na cachoeira e a água estava viva, como sempre esteve. (Assunção, 2002, 13)
A poesia, enquanto “recuerdos de um ácido”, lugar de abandono e desterro, cifrando os sentidos, negando os sentidos, possibilita, paradoxalmente, a experiência e a percepção das coisas eternamente em seus lugares, simples, apreensíveis, distribuídas e dadas, que o universo do discurso contemporâneo – pondo em circulação informações, conceitos, imagens absolutamente esvaziadas de qualquer sentido real – não nos permite entrever. A poesia re-significa o mundo quando os discursos organizam-se como simulacros de uma realidade contingente, simulada, que busca no domínio da técnica a aparência de verdade que denota. E a água viva, “como sempre esteve”, resgata a força mítica da velha parábola heraclitiana do tempo em constante transformação, agindo de forma implacável sobre os homens, o mundo e as coisas, sobre o próprio poeta, ao mesmo tempo em que nos sugere nosso destino eterno, alheio a toda dimensão histórica. Trata-se da aproximação entre o mito e a poesia como forma de nos alertar que, talvez, seja a hora de ensaiar uma nova transcendência, nossa íntima superação.
A poesia é o instante intemporal em que o poder do mito volta a nos comunicar a essencialidade das coisas e dos seres, ambos vistos sem ênfase ou cuidados. É o caso de afirmar, com Alfredo Bosi, que “a poesia recompõe cada vez mais arduamente o universo mágico que os novos tempos renegam” [4]. A poesia que dialoga com o mito nada mais é do que a tentativa de trazer à tona, fazendo da linguagem seu artifício supremo, os mistérios insondáveis e esquecidos da história, da vida, do espírito humano. Ao resgatar o mito, a poesia reencontra um dos mais antigos canais de comunicação entre o indivíduo e si mesmo – sua essência original –, o mundo, assim como o concebe, e o sagrado, o eterno, o atemporal – a mais urgente de suas buscas.
Assim, a poesia é, também, uma luta do indivíduo contra o esquecimento, contra o apagamento de seus traços individuais na História, apagamento que o mundo contemporâneo leva a efeito quanto instaura a crise da representação, do discurso e da idéia de verdade, passando a controlar, de forma cada vez mais maciça, o imaginário coletivo, negando o mistério, promovendo a proliferação descontrolada de imagens, afirmando a verdade a partir de uma lógica supostamente racional, que já não é a da divisão racional do trabalho – e o seu ideal de funcionalidade objetiva –, mas sim a da ilusão do conhecimento que a ideologia da superinformação faz circular. E não é preciso ir longe para compreender esse estado de coisas da contemporaneidade: obras como Tela Total, A Transparência do Mal e Da Sedução, do filósofo e sociólogo francês Jean Baudrillard, por mais polêmicos ou discutíveis que sejam seus pontos de vista, acenam e levam às últimas conseqüências as interrogações sobre a que caminhos essa realidade construída na contemporaneidade poderá nos conduzir, já que se fia na ideologia da superinformação e o modo como esta se esvazia de sentidos, criando aparências, simulacros e simulações de uma verdade que já não pode ser definida ou precisada em termos absolutos.
A poesia que se volta para o mito, que afirma os interditos da linguagem e se abre à percepção de todos os sentidos, instaura uma verdade de si para si, tão rebelde e singular que arruína, ainda que de dentro da própria poesia, esse espaço de aparências e ilusões que marcam o real, invertendo a lógica determinada do pensamento: a verdade é a que se cria de acordo com as múltiplas experiências individuais do artista, e não aquela que se dá a partir da circulação irrefreável de imagens e informações. Desse modo, a verdade da poesia é alternativa e resistência às ilusões do real:
23.06
Vento que vem de longe, abra-me as portas da percepção e as mantenha abertas. Como um grego antigo diante do mar, como um primata segurando o fogo primordial nas mãos. O primeiro olhar sobre os vales cheios de perigo. O deslumbramento de uma mente que descobre o véu da Grande Mãe. (Assunção, 2002, 49)
A poesia como um jogo aberto de sentidos acena para a percepção igualmente aberta e irrestrita do mundo, da realidade em breve abolida. Mas trata-se de uma percepção que busca a essência primeira das coisas, o olhar natural do “grego diante do mar”, do “primata” que vislumbra, pela primeira vez, o poder incompreensível do “fogo primordial”, da “mente” que desvela o segredo original do mundo – “o véu da Grande Mãe” –, que volta a se encobrir na linguagem ritualística do poeta. É ele quem deve resgatar a comunicação – por quê não dizer a comunhão? – secreta do homem com a essência perdida ou desgastada das coisas e de si mesmo. O poeta, como um xamã da linguagem, afirma o valor de suas múltiplas experiências, faz circular seu conhecimento cifrado, simbólico, do mundo, transformando este mesmo conhecimento numa experiência universal, coletiva. Resgatar o mito é abrir os sentidos de uma linguagem que procura instaurar o mundo, numa luta renhida com os próprios limites da representação, com o próprio re-conhecimento de que a linguagem é um jogo ao qual o poeta não pode se submeter sem antes desvirtuar ou subverter as regras desse mesmo jogo:
19.01
Riscos de adagas na pele da face. Palavras são lâminas. (Assunção, 2002, 15)
Como num ritual primitivo, tribal, a poesia grafa-se no próprio corpo, na pele, como um rito de passagem, como uma forma de marcar-se, para sempre, e de fazer com que vida e arte se confundam indelevelmente. E, nesse ritual, o poeta reconhece os perigos das palavras, seu caráter incisivo, seu modo de transformar-se em instrumento e motivo dessa celebração ritualística que é a manifestação poética. Assim, em Cinemitologias, o resgate do simbólico se dá por uma adesão incondicional ao mito no que este tem de mais singular e misterioso, de mais primitivo e ritualístico, de mais fantástico e ostensivo. Adesão antropofágica, oswaldianamente rebelde, de matiz surrealista – ainda que acene sempre para a superação de certas facilidades estilísticas impostas pela diluição das vanguardas –, que reordena a própria estrutura interna do mito pela notação subjetiva, que particulariza primeiro para, só então, explodir numa espécie de teogonia poética profundamente marcada e perturbada pelo vazio atordoado de imagens e sentidos que caracterizam nosso tempo, estabelecendo uma relação inviolável, crítica e ácida, entre a dimensão atemporal do mito e o registro subjetivo que flerta com a contemporaneidade e suas referências mass-mídia. Como em:
13.03
Não vai entender. Vai abrir a garrafa térmica e dizer que o café está horrível. Tem palavras frias na ponta da língua. Olhos negros, lábios rasgados pelo bisturi de Deus. Vai fumar um cigarro atrás do outro e me deixar sozinho vendo TV até a madrugada. Não vai me mandar embora. Vai me deixar sozinho na sala, com um bicho preto roendo minhas fibras. (Assunção, 2002, 19)
Ou em:
07.04
Tenho sonhado fotografias. Quando acordo, há centenas de imagens espalhadas pelo quarto. O cérebro funciona como uma Polaroid. Tento juntar tudo pra ver se vira um videoclipe mudo. (Assunção, 2002, 23)
Contra o vácuo atormentado da contemporaneidade, Cinemitologias encontra no poder do mito sua forma de resistência, a possibilidade de reaver, por uma nova simbologia, os sentidos esvaziados ou perdidos dessa linguagem impessoal, robótica, industrializada e informatizada que se firma sobre a ideologia da operacionalidade, do funcional, do objetivo e do pragmático:
16.04
Lembranças, alucinações, pensamentos, projeções. O Estúdio Realidade (William Burroughs) é manipulação incessante de sons e imagens. A televisão é a droga mais letárgica do século. Comparado ao poder de impacto da tevê só a bomba de Hiroshima. (Assunção, 2002, 23)
A televisão e a bomba: talvez os dois grandes símbolos do mundo contemporâneo – os mais imediatizados, recorrentes, incontornáveis –, produtos da nova lógica industrial e do domínio técnico, que exerce seu poder a partir da manipulação ostensiva – seja pela força coercitiva da bomba, seja pelo controle deliberado de uma linguagem vazia de sentidos, que não permite, pela rápida circulação das imagens, a menor ou mais inconsistente reflexão, como no caso da TV. Mesmo que o poeta tente organizar sua poesia, as imagens recorrentes que o tomam e invadem, como um “videoclipe mudo”, ele sabe que o canal de comunicação que essa mesma poesia abre é de outra ordem:
As coisas possuem um sentido. Mesmo no caso da mais simples, casual e distraída percepção, verifica-se uma certa intencionalidade, segundo demonstram as análises fenomenológicas. Assim, o sentido não é só o fundamento da linguagem como também de toda apreensão da realidade. Parece que nossa experiência da pluralidade e da ambigüidade do real se redime no sentido. À semelhança da percepção comum, a imagem poética reproduz a pluralidade e, ao mesmo tempo, outorga-lhe unidade. […]
Assim, a imagem reproduz o momento de percepção e força o leitor a suscitar dentro de si o objeto percebido. (Paz, 1982, 131-132) [5]
A imagem poética retoma uma experiência elementar, primordial, perdida em algum lugar de nós. Daí seu caráter mítico-simbólico, seu sentido sempre em devir, sua incapacidade de se reduzir aos limites da simples representação. A imagem poética é, na verdade, uma apresentação de tudo quanto habita em nós e permanece desconhecido de nós:
15.01
O Guardião se cansa de guardar a entrada da Gruta Sagrada e resolve dar uma banda pelo Túnel do Tempo. Moléculas se desintegram, líquidos se misturam, tigres saltam de um lado a outro do Estreito – nuvens vermelhas encobrem o Jardim da Lua Mundana. Livre de vigilância, a Gruta Sagrada se abre aos bárbaros, como uma prostituta em quarto-minguante. Enfim conhece os espasmos mais secretos. (Assunção, 2002, 13)
Aqui, a instância simbólica acena para a experiência do corpo em sua dimensão sexual. E o sexo é uma das experiências essenciais que motivam o homem, como um instinto básico, elementar, do qual não se pode fugir e que nos determina o destino: O Guardião, a Gruta Sagrada, o Estreito, o Jardim da Lua Mundana – símbolos cujo sentido só pode ser entendido como sentido em devir. A referência ao sexo é elementar e a leitura se dá até que com certa facilidade. As múltiplas experiências que estes símbolos concentram é que não se permitem entrever facilmente. Por isso o caráter de sentido em devir, que ainda esta para se perfazer e realizar, mas que nunca se perfaz ou se realiza completamente. A Gruta Sagrada também significa uma inversão poética do mito da caverna platônico. Nesse sentido, podemos compreender seu poder simbólico como o espaço de revelação e vivência de uma verdade íntima, velada, que se guarda e se protege, e que só pode ser descoberta quando tomada de assalto, quando os “bárbaros” aventuram-se a romper as barreiras cifradas do símbolo e penetrar os sentidos velados da criação poética. Assim, o poema faz circular um conjunto de sentidos que, desarticulados, nos revelam a própria condição metalingüística que envolve a criação:
25.04
Zonzo de banzo de um amor que esqueci na calçada. Onde estarei, meu amor, quando a chuva gritar meu nome e a tempestade rasgar as páginas do poema que ainda não escrevi? (Assunção, 2002, 25)
Os poemas ainda não escritos, destruídos pela chuva e pela tempestade – mais uma vez a água transparece como símbolo do tempo e da transitividade das coisas – só confirmam a instância em devir do sentido, que o poder simbólico da linguagem concentra. E é a circulação plural e incontrolável dos sentidos no interior do símbolo que nos leva a poemas vertiginosos como este:
13.05
É como se um pássaro pousasse na pálpebra de um Dragão Adormecido. É como se o Dragão Adormecido sonhasse um planeta habitado por flores de oxigênio. É como se as flores de oxigênio roçassem a têmpora de um samurai enlouquecido. É como se o samurai enlouquecido só existisse no sonho de um poeta que sonha com um dragão sonhando. É como se nada disso existisse. É como se fosse pintura de Matisse. É como se fosse cena de um filme de Kurosawa: Sonhos. (Assunção, 2002, 29)
Jogo incessante de imagens e circulação irrestrita de sentidos: o Dragão Adormecido, as flores de oxigênio, um samurai enlouquecido, o poeta que sonha. Todo o poema articula-se como uma realidade que prescinde da lógica e só conhece a verdade primordial da criação em si mesma. O que equivale a dizer: o resgate do simbólico, em Cinemitologias, afirma-se pela urgência extremada do poeta não só em restituir a força do mito ao universo da arte, mas também em criar, ao mesmo tempo, seus próprios mitos: a Ilha do Desterro, a Grande Mãe, a Gruta Sagrada, o Jardim da Lua Mundana, o Dragão Adormecido – mitos que se configuram como uma resposta ao esvaziamento de sentidos que a contemporaneidade nos impõe com seu jogo irrefreável de imagens que se desgastam justamente pela incontornável facilidade com que se dão a perceber, com que se instauram como uma forma de controle deliberado do imaginário coletivo. Ademir Assunção toma para si e subverte drasticamente a lógica da circulação irrestrita de imagens que as novas formas de mídia levam a efeito. O poema em prosa, então, é a forma perfeita para provocar, em plena contemporaneidade, o estranhamento, o choque e a ruptura que a linguagem poética solicita.
É preciso salientar que o poema em prosa atravessou todo o movimento romântico-simbolista, mas chegou timidamente ao século XX. A identidade vacilante e despedaçada dos indivíduos, agora, transparece em narrativas igualmente dilaceradas, como o Ulisses, de James Joyce. A narrativa passa a ser o lugar da fragmentação, do estilhaçamento, da surpresa e, por vezes, da manifestação poética. O poema em prosa perde sua força original de ruptura e inovação. Na América Latina, sequer chegou a ser uma tradição verdadeiramente articulada. Apenas na segunda metade do século XX, com O Fazedor, de Jorge Luis Borges e História de Cronópios e de Famas, de Julio Cortázar, é que o poema em prosa verdadeiramente desperta para a literatura latino-americana. E é justamente sob a influência de Borges e Cortázar que Fernando Fábio Fiorese Furtado publica o seu Dicionário Mínimo (2003). Diferentemente do cinismo trágico de Rimbaud, da morbidez violenta e cruel de Baudelaire, da beleza decadente de Huysmans ou dos passos vacilantes de nosso Cruz e Souza – autores que podem ser considerados aqueles que verdadeiramente trabalharam, na Europa e no Brasil, a forma volátil do poema em prosa – Fernando Fábio concebe uma poesia em prosa que se volta para o jogo cerebral entre as formas e os conteúdos de composição, entre a palavra e suas possibilidades latentes de sentido.
O único ponto de contato entre um dicionário comum e este Dicionário Mínimo é a proposta de relacionar, alfabeticamente, o significado das palavras. Mas, ao contrário de um simples dicionário, o livro de Fernando Fábio escolhe, para cada letra, uma única palavra e lhe descobre ou desvela sua secreta poesia. Assim, o poeta cria significados alheios às próprias palavras que relaciona, e reinventa a tradição do poema em prosa ao situá-lo nos limites do jogo lúdico de confundir e enganar, criando citações, notas de rodapé, passagens, entrechos e definições que, como vamos percebendo, não existem ou se confirmam. É a esse jogo simbólico que se refere Iacyr Anderson Freitas no ensaio-prefácio Minerações do Mínimo, que abre a obra de Fernando Fábio:
Pelo menos uma ordenada série de verbetes, contendo os sentidos usuais de vocábulos ou expressões, eis o mínimo que se espera de um dicionário. Mas não deste Dicionário Mínimo. E é aí que a porca torce o rabo. No lugar do habitual, brilha então um registro vivo de interpretações abertas e poeticamente desconcertantes. Registro menor na escolha das palavras – apenas uma para cada letra do alfabeto – e maior na potenciação dos horizontes lúdicos e afetivos dessas mesmas palavras, em que pouco se pode falar em definições. Afinal de contas, definir é definhar, é matar o objeto focalizado. (Furtado, 2003, 7)
Assim, lendo Dicionário Mínimo, é inevitável não pensarmos nos jogos de espelho criados por Borges através de suas constantes e inverificáveis citações. Impossível não pensarmos naquele flerte com o absurdo que encontramos na primeira parte de História de Cronópios e de Famas, quando Julio Cortázar cria um singularíssimo manual de instruções, ensinando aos leitores como chorar, cantar, sentir medo, entender três quadros famosos, matar formigas em Roma, subir uma escada ou dar corda no relógio. Os jogos de espelho e o flerte com o absurdo, na verdade, já se anunciam a partir da orelha do livro que, assinada por um Paschoal Cunha Garcia, se torna incompreensível na medida exata em que ironiza uma certa linguagem acadêmica, oficiosa, de um beletrismo desgastado, que mescla uma pseudo-erudição vocabular – que vai do preciosismo de uma língua portuguesa exageradamente culta às citações em latim e grego – a uma tentativa sempre frustrada de definir o objeto sobre o qual se volta:
As abas que se apõem à capa de um livro, tanto para conferir-lhe feição mais respeitosa quanto para permitir a inserção de textos encomiásticos acerca do autor e da obra, denominam-se de orelhas. À exceção do aspecto morfológico, posto que apensas ao que o vulgo confunde com a folha de rosto, trata-se de um termo impróprio, pois sua fisiologia não inclui a função auditória, e por conseguinte seria adequado ao menos adjetivá-las de moucas. Ou incluir o vocábulo, cum grano salis, no elenco das aberrações orgânicas produzidas pelo consensu omnium, uma vez que tal orelha tem antes uma função parlatória. (Furtado, 2003)
A passagem ilustra com perfeição o jogo de enganar a que os poemas em prosa de Fernando Fábio nos conduzem. A orelha do livro – sempre circunscrita aos limites da definição ou do comentário, sempre isolada do corpo textual da obra em si mesma – faz parte, em Dicionário Mínimo, da própria feitura do livro. Impossível separá-la ou distingui-la da escritura mesma da obra. De certa forma, a ironia que atravessa o próprio questionamento do conceito de orelha como as “abas que se apõem à capa de um livro”, e que mente sua verdadeira função – ao invés de auditiva, parlatória -, é a base sobre a qual boa parte dos poemas do livro se constituirão. Trata-se de uma ironia que se aproxima do riso declarado, da blague, da graça deliberada e franca, numa aventura crítica que busca demonstrar a fragilidade que norteia o próprio processo de construção dos sentidos. Fernando Fábio aponta para os dicionários como fraudes incontornáveis, porque pretendem fixar o que toda a palavra tem de mais móvel e diáfano: seu próprio sentido.
Inútil dizer que não existe nenhum Paschoal Cunha Garcia que, segundo as referências que acompanham a orelha da obra, é “Decano do Centre de Lettres Classiques de l’Université Alfred Jarry (Paris MCMLXIII) e Professor Titular de Filologia e Etimologia das Faculdades Integradas do Vale do Pirapetinga” (Furtado, 2003). Tudo não passa de uma armadilha criativa pronta a iludir os mais incautos. Armadilhas verbais bem ao gosto dos autores sob os quais acabamos por filiar Fernando Fábio – Jorge Luis Borges e Julio Cortázar. E, em se tratando de armadilhas, a orelha do livro é a mais perigosa e engraçada de todas. Representa, como já dissemos, um anacronismo total, absoluto, construído sobre uma teia de palavras e frases latinas que só fazem acentuar uma patética e desafiadora incompreensibilidade. E a crítica que ela instaura vai de encontro à vaporosidade que certos discursos são capazes de promover. Alfred Jarry, diga-se, é o escritor e dramaturgo francês considerado o precursor do teatro do absurdo com sua peça Ubu-Rei. Nada mais justo que um dos grandes precursores do absurdo para ilustrar uma crítica direta ao engessamento e à paralisia dos discursos críticos, teóricos e artísticos concebidos pela contemporaneidade.
O resgate do simbólico, em Dicionário Mínimo, se dá por meio desse jogo constante com a referencialidade que já não pode ser comprovada ou atestada a partir de determinadas e imutáveis verdades; por meio de uma transferência absoluta de sentidos, um deslocamento semântico que faz com que as palavras delirem dentro do processo simbólico de re-significação:
Flamboyant
Nem palavra nem árvore. Flamboyat é bote, boiando acima da tarde.
No período de floração, flamboyant é flama. Convém manter as crianças à distância. Os amantes nem tanto.
Flamboyant cresce à margem do dicionário. Parce que il ne parle pas, il flambe. (Furtado, 2003, 27)
Ao escolher a grafia francesa da palavra, o poeta sabe e re-conhece o poder simbólico que a palavra irá assumir. Em português, ficaria limitado à idéia mais ou menos translúcida de que a palavra acena para um determinado tipo de árvore. Mas em francês, flamboyant assume a própria e inalienável pluralidade de sentidos: reluzente, brilhante, rutilante, resplandecente, flamejante, faiscante, espaventoso, vistoso. Os sentidos deliram e a escritura mesma assume esse delírio essencial: contra os limites da prosa, o jogo aliterativo do flamboyant como “bote, boiando acima da tarde” – e as consoantes revelam o ideal mesmo de deriva que o verbo boiar sugere –; do flamboyant como flama – a imagem do fogo concentrada na repetição sistemática de conceitos que apontam para a similaridade de sentidos, nunca para a igualdade: flamboyant, flama, flambe. É a poesia quem redefine o valor semântico da palavra: de árvore à bote, algo perdido na tarde, quando floresce, flama, arde, queima, e, assim, cria um espectro semântico que aponta para a própria noção de desejo, crescendo à margem, avessa a qualquer dicionário e, por isso mesmo, alheia a toda definição. É justo lembrar que na literatura de um modo geral, o flamboyant sempre foi visto como o símbolo do amor, da paixão ou do desejo, sobretudo numa certa tradição romântica de criação.
Derivando dessa mesma linhagem, a de Borges e Cortázar, os poemas em prosa de Fernando Fábio revitalizam o gênero e radicalizam os processos de enganar, mentir e dissimular, indispensáveis quando a idéia é associar o inconfundível lirismo da poesia com a exatidão inverossímil da invenção mais radical, típica da narrativa moderna. O esvaziamento da referencialidade denotativa das palavras conduz ao preenchimento de cada vocábulo a partir de uma possibilidade de sentidos que se firma com a poesia e que demonstra a verdade das coisas e das palavras como símbolos que se grafam a partir do jogo cerebral entre forma e conteúdo, significante e significado, estrutura e sentido. O que os poemas de Dicionário Mínimo concebem é uma radicalização do processo simbólico que envolve a criação poética, processo largamente teorizado pelos românticos alemães e que Todorov procura demonstrar através de seu comentário sobre a teoria romântica do símbolo e a natureza elementar que este carrega consigo:
(1) O símbolo mostra o devir do sentido, não seu ser; a produção, e não o produto acabado. (2) O símbolo é intransitivo, não serve apenas para transmitir a significação, mas deve ser percebido em si mesmo. (3) O símbolo é intrinsecamente coerente, o que quer dizer que um símbolo isolado é motivado (não-arbitrário). (4) O símbolo realiza a fusão dos contrários, e mais especificamente, a do abstrato e do concreto, do ideal e do material, do geral e do particular. (5) O símbolo exprime o indizível, isto é, aquilo que os signos não-simbólicos não chegam a transmitir; é, por conseguinte, intraduzível, e seu sentido é plural – inesgotável. (Todorov, 1980, 97)
Sob esta perspectiva, Fernando Fábio, ao se valer do deslocamento semântico dos sentidos no interior da palavra, redimensiona o signo pluralizando sua capacidade significativa e transformando a própria palavra no lugar da diferença, no espaço do estranhamento, tornando-a uma realidade motivada (não-arbitrária), que se constitui, às vezes, de um registro irônico, lacerado, crítico e ácido do mundo e das coisas e, noutras vezes, de uma força afetiva, que resgata a memória perdida da infância, como em:
anágua
A madureza me surpreende com a palavra anágua.
O dicionário diz do étimo taino, ainda recendendo a Antilhas; diz da travessia do Atlântico, quando as tormentas do espanhol – enaguas – para o português exigiram reparos na proa e o lançar ao mar o lastro do plural.
A moda diz de uma peça obsoleta ante o império da transparência, do corpo-virtine, sem vincos, menos fusco que fátuo fulgor. Desvendado, desventrado, dissipado.
Na infância se escondia sob as saias que jamais levantei. Ou acena do varal, com rendas e aromas. Cet clair objet du désir nunca estava no rol de roupas sujas. Não se misturava com panos de prato, fronhas e toalhas.
Na madureza, restou apenas a prosódia líquida da palavra. Um mundo animado de anas e águas, de avas e vagas. Vocábulo de tanque, de cisterna. (Furtado, 2003, 17)
O registro afetivo, que se firma a partir de um inconfundível lastro lírico, revaloriza os sentidos de uma palavra em desuso, enraizada nos dicionários, marginal à língua comum, cotidiana, mas viva na memória que estabelece um jogo entre madureza e infância, presente e passado, lembrança e esquecimento, resgatando a antiqualha da palavra sob o prisma da nostalgia que o tempo acaba por conferir a todas as coisas. Assim, a poesia restabelece a força simbólica, capaz de provocar, ao mesmo tempo, surpresa e encantamento: da etimologia atravessada por questionáveis e insondáveis Antilhas, Atlânticos, navios, passa para a nossa língua perdendo o “lastro do plural” – uma forma de acomodá-la a nossas possibilidades prosódicas –; desgasta-se com o tempo e com o uso, numa época em que o corpo se mostra em sua plena gratuidade e translucidez, nu, livre de roupas ou vagos pudores, “desvendado, desventrado, dissipado”; mas vive plena de memória e afetividade, retomada à infância, quando ainda suscitava velhos e confusos desejos – e o trocadilho com o filme de Luis Buñuel, Esse Obscuro Objeto do Desejo, só faz com que o poder simbólico da palavra aflore em toda sua plenitude, já que a expressão francesa usada pelo poeta – clair – nos remete diretamente a relação claro/escuro, presente passado, infância/madureza presentes como indícios nostálgicos de uma época que só pode ser retomada por meio das armadilhas inescrutáveis da memória. A anágua não é só palavra, roupa de baixo, desejo latente infantil, ao contrário, ela é o próprio tempo resgatado, a própria infância posta em circulação no interior dos sentidos, rearranjados e reinventados a partir do poder simbólico que a criação solicita.
Dicionário Mínimo leva às últimas conseqüências a certeza de que todo signo subsiste apenas e a partir da própria fluidez significativa, da própria capacidade de se converter num universo simbólico que singulariza cada palavra, cada idéia, cada gesto, revelando novas e insuspeitas dimensões de sentido presentes no espaço da língua, da linguagem, ou, como quer Émile Benveniste, em Problemas de Lingüística Geral II, não podemos perder de vista esse processo de “simbolização, o fato que justamente a língua é o domínio do sentido. E, no fundo, todo o mecanismo da cultura é um mecanismo de caráter simbólico. Damos um sentido a certos gestos, não damos um sentido a outros, no interior de nossa cultura” (1989, 25). É o que faz Fernando Fábio em seus poemas. Ao escolher uma única palavra para cada letra do alfabeto, seu suposto dicionário privilegia essa natureza mutável, alheia e adversa do processo de significação, fazendo com que a poesia se manifeste como força doadora de sentidos a palavras tão estranhas entre si quanto anágua e bilosca, por exemplo, que, em outros domínios discursivos – digamos, numa obra verdadeiramente lexicográfica – veriam exploradas apenas sua característica teoricamente referencial.
bilosca
No princípio era bolinha de gude. Bilosca veio depois, quando o polegar já se entregara a outros dentes.
Embora substantivo simples, a sua redondez exige justaposição com búlica, vocábulo que ensina ao signo vazio.
Até os anos 60, acomodar bilosca na letra u de búlica era questão obrigatória nas provas de caligrafia, o que explica a sobrevivência do acento agudo que, à época, funcionava como ponto de mira. Difícil a bilosca não resvalar no b ou no l, desaparecendo na nota vermelha. (Furtado, 2003, 19)
O deslocamento semântico promovido por Fernando Fábio perde de vista a referencialidade plena e absoluta em favor da relatividade simbólica do discurso poético. Bilosca é um regionalismo mineiro para a locução adjetiva bola de gude, jogo infantil que consiste em atirar, umas contra as outras, pequenas bolas de vidro com o propósito de deslocá-las do centro fixo em que devem permanecer. O poema, desse modo, estabelece uma espécie de jogo com o próprio caráter lúdico da criação poética, já que o poeta contrapõe à bilosca o termo búlica, ‘que ensina ao signo vazio”, justamente pelo fato de que esta é uma forma não reconhecida pelas obras lexicográficas contemporâneas, uma forma perdida no tempo, resgatada ironicamente pela nota de rodapé que o poema traz consigo, associada às provas de caligrafia, buscando explicar a precedência de búlica, um arcaísmo, sobre bilosca, a palavra viva, corrente, fluida, engendrada pela língua em constante transformação. E a nota aponta para a obra de Paschoal Cunha Garcia – Subsídios para uma história do ensino de caligrafia no Brasil: dos jesuítas ao século XX. A obra, assim como o próprio autor, não existem, e Fernando Fábio destila sua crítica sutil e irônica à crença inquebrantável na referencialidade que o mundo contemporâneo nos obriga: nada melhor que o falseamento de um hipotético tratado acadêmico para legitimar uma palavra em detrimento de outra, um conjunto de sentidos em lugar de outro.
Se “de fato, mas manifestações do sentido parecem tão livres, imprevisíveis, quanto são concretos, definidos e descritíveis os aspectos da forma” (1989, 221), como sugere Benveniste, os poemas em prosa de Dicionário Mínimo desvelam justamente essa tensão constante entre forma e conteúdo, entre palavra e sentido, entre referencialidade absoluta e reapropriação simbólica da palavra, que o discurso poético leva a efeito. E as notas de rodapé que aparecem ao longo de boa parte do livro demonstram com perfeição esse estado de inconfundível tensão, de re-significação simbólica das palavras que já não aponta para as coisas, o mundo ou as instâncias categoriais do real. Assim, no vocábulo linha, por exemplo, o poeta afirma, em nota devidamente apartada do texto, que os aforismos ali relacionados são “excertos de anotações apócrifas realizadas durante as aulas ministradas por Paul Klee na Bauhaus, Weimar, em 1924”. É claro que tudo não passa de um exercício lúdico, de uma invenção tão incoerente que o próprio poema se desmente e revela:
Quem leia saiba, linha ilude algum dentro. Pára em meio, recolhe o ar, o arco, o caracol. No contorno da maçã, disfarça a mão armada. Desvio longo, até onde?
Linha acode como apóstrofe ao espelho.
Lápis pássaro deslimita. Será varal ou meridiano? Rubrica sobre a água ou giz na calçada?
Linha turista quando a pele é o único disfarce.
Rabiscar esconde armadilhas no mapa. Olho não descansa até desmontar a lâmina.
Linha é leque ou libelo?
Em sendo uma máquina simples, linha acomoda do horizonte a medida, da ponte as aspas, da esquina o adeus, do caderno o entorno, do gesto a infância.
A garatuja basta, inteira paisagem.
O que é a linha senão um capricho do tempo: bifurcações sem sentido até que se realiza o arabesco. (Furtado, 2003: p. 39)
A ambigüidade em torno do conceito de linha só pode se explicitar a partir da nota que, supostamente, relaciona a autoria dos aforismos ao pintor Paul Klee: a linha, presente na criação literária, também é uma das bases de composição da pintura. Assim, a ambigüidade não elide apenas a significação imediata que o conceito parece conceber, mas, principalmente, eleva a um profundo grau de indeterminação o sentido geral do poema. O deslocamento semântico imposto ao conceito de linha produz uma potencialização de sentidos que só podem ser divisados partindo da inter-relação aberta entre escritura e pintura. O que Fernando Fábio faz é criar um poema que denota, no plano das idéias, a mesma sinuosidade que se afigura entre os limites das artes e as fronteiras da criação. Não é por acaso que, no fim do poema, encontramos a afirmação de que “Linha erra: onde se lê autor, leia-se personagem” (2003, pág. 39).
Esse processo de concepção estética que desloca o conteúdo semântico das palavras e lhes oferece uma nova visada, um conteúdo estranho e alheio à própria definição, nada mais é do que um atentado contra os postulados lógicos da linguagem, e está na gênese mesma da criação poética, principalmente se pensarmos na definição de Octávio Paz, em O Arco e a Lira (1982), segundo a qual
A criação poética se inicia como violência sobre a linguagem. O primeiro ato dessa operação consiste no desenraizamento das palavras. O poeta arranca-as de suas conexões e misteres habituais: separados do mundo informativo da fala, os vocábulos se tornam únicos, como se acabassem de nascer. (Paz, 1982: 47)
Indo mais longe: separadas da linguagem midiática, do domínio da técnica, da informação que se fia unicamente no esvaziamento dos sentidos que tomam a comunicação humana de uma forma geral, as palavras, na poesia de Fernando Fábio, oscilam entre a consciência de que, por um lado, são construtos organizados que acenam para o próprio jogo – consciente e cerebral – da criação poética, e, por outro lado, deslocadas de seu universo rigorosamente lógico, alcançam o delírio imagético e imaginativo que a criação poética solicita. Cada palavra, então, é um novo símbolo, que instaura uma nova ordem, que solicita outras formas de pensamento e de abordagem do fenômeno poético.
Os poemas desvelam, em seus reflexos irreais, na superfície enganosa das palavras, o secreto dom de iludir. As referências cifradas, as citações enganosas, o diálogo com uma certa tradição literária, tudo isto está presente em Dicionário Mínimo, às vezes de forma tão explícita – como uma espécie de provocação – que é impossível não esboçar um sorriso cínico, de quem pactua com o engano sugerido pelo autor. É o que podemos perceber na nota de rodapé em cadeira: “Do catálogo das cadeiras Kerouac, que as Lojas Beat fizeram publicar em Nova Iorque no verão de 1922”. A nota toda é uma armadilha irônica: Jack Kerouac, escritor norte-americano da Beat Generation, é reconhecido por seu On The Road (Pé na Estrada) e por ter criado uma literatura de viagens, móvel, sugestiva, inquietante. Nada mais paradoxal do que constar em um catálogo de cadeiras – signo da imobilidade absoluta.
Desse modo, Dicionário Mínimo surge sob a ordem da inventividade, da ironia, do engano e do cerebralismo que fazem com que seus poemas em prosa não caiam nas tentações do lirismo fácil, da pura especulação subjetiva, da notação interior, confessional, e se transformem, sim, num exercício da inteligência, que busca estabelecer uma nova e necessária experiência com a linguagem poética, fazendo com que ela se desligue, de forma sutil e dissimulada, do excesso de referencialidade e concretude que a poesia contemporânea lhe imprimiu:
demudar
Creio que foi o poeta Edmilson de Almeida Pereira, estranhador de palavras, quem me apresentou este verbo.
No particípio, quando finge de adjetivo, sem nunca conseguir sê-lo ou selo.
Na verdade, o tempo mais adequado é o gerúndio, demudando.
Verbo heraclitiano par excellence.
Estudos recentes indicam que demudar está em desuso. Embora resista, próximo ao fóssil nos dicionários, inelutável nos seres imaginários de alguns mitos, súbito nos poemas que ainda serão escritos. (Furtado, 2003, 23)
No jogo lúdico, na ironia paródica, sutil e dissimulada, o poeta resgata o simbólico pelo próprio símbolo, penetrando surdamente no reino das palavras, como queria Drummond, e rompendo a lógica imperativa de uma estrutura assentada sobre a convenção da velha dicotomia significante/significado, forma/conteúdo. Demudar, aqui, simboliza devir, vir-a-ser, tornar-se. Logo, é símbolo indefectível da própria temporalidade. As palavras mesmas têm de, necessariamente, voltar à sua condição de símbolo. E cabe ao poeta, através do signo poético, forçar esse retorno. Se o poeta é o “doador de sentidos”, nos dizeres de Alfredo Bosi, seu objetivo primeiro deve ser o mergulho em profundidade na linguagem, o resgate de todas as instâncias e possibilidades significativas.
Mas reaver a potencialidade simbólica da linguagem poética não representa, unicamente, a doação do sentido, a experiência literária ao nível do significado apenas. É preciso, antes de tudo, que a experiência singularizadora do poeta rejeite, a priori, todas e qualquer forma imediatamente dada. Daí o apelo ao poema em prosa, essa forma alheia a modelos ou tradições estabelecidas. Demudar: signo eterno da criação poética: por isso sua existência simbólica, ou melhor, sua não-existência, sua inconcretude, sua atemporalidade possível apenas e verdadeiramente “nos poemas que ainda serão escritos”, na especulação sempre renovadora das formas de composição poética, na resistência contra o esvaziamento de sentidos da linguagem e dos discursos contemporâneos. Demudar: nos dicionários, fossiliza-se inutilmente; nos mitos, é condição e marca indelével; na poesia, é princípio e força ordenadora, centro de gravidade da própria criação. A poesia só existe em função de sua inalienável capacidade de converter-se naquilo com que primeiro se sonhou, imaginou, viveu ou intuiu.
Conclusão
Nessa espécie de Idade de Ouro às avessas em que vivemos, a linguagem parece ter se contaminado pela ideologia tecnocrata vigente, sujeitando-se aos princípios da tecnologia, automatizando-se barbaramente. Há o que se pode chamar de triunfo da técnica, como, um dia, no início do século XX, sonharam os futuristas, antes de despertarem para o pesadelo de um progresso que arrastou a humanidade para os excessos de duas grandes guerras. O século XXI principia sob a égide de um pensamento automatizado, sob uma nova ideologia das máquinas: os computadores, com seus códigos binários, com sua linguagem simplificadora, com sua infovia e seus registros programados – o Html, o Java, o Linux – impõe um pensamento que se quer lógico e preciso, esvaziado de sentidos, denotativo e referencial ao extremo, um pensamento que, em suma, abdique completamente da dimensão simbólica e reveladora da linguagem.
Nesse sentido, Ademir Assunção e Fernando Fábio Fiorese Furtado buscam, cada um a seu modo, através de suas próprias e singulares idiossincrasias, desautomatizar a linguagem, redimensionar o mito e reaver o paraíso perdido do símbolo como forma de compreensão do mundo, dos seres e das coisas, como espaço ideal a ser ocupado pelo grito inconsciente do espírito e como lugar essencial de luta e resistência contra o risco contemporâneo de transformar o homem num código programável. Contra a referencialidade, Cinemitologias e Dicionário Mínimo abrem caminho em direção ao sonho, à imaginação, ao delírio verbal e à secreta lógica do absurdo.
Mesmo que os poemas de Dicionário Mínimo reivindiquem, na sua estrutura, a lógica racional da referencialidade e da conceituação, características marcantes de toda obra lexicográfica, essa reivindicação não passa de um pretexto para que o poeta, no jogo lúdico da representação, sobreponha ao referencial – ou à aparência de referencialidade – a dimensão simbólica da linguagem poética. Trata-se, então, de desautomatizar a linguagem, o discurso, por meio da poiésis, parodiando uma estrutura discursiva das mais engessadas e automatizadas de que se têm notícias. Esse resgate do simbólico pela invenção, pelo humor, pela blague, pela subversão da forma e do conteúdo, é um modo de resistir ao esvaziamento da linguagem e da cultura contemporânea; uma maneira de desacreditar a ideologia dominante da técnica e da racionalidade postas em cena ao longo de todo o século XX e que se afirmam, hoje, através da suposta imediatização do conhecimento e da informação pelas novas formas de mídia.
Por outro lado, que dizer de um livro como Cinemitologias, que nos toma de assalto, de repente, que nos vampiriza e rouba, talvez de forma irremediável, nossa alma suja e gasta pelo vazio absoluto em que a palavra – inclusive a poética – parece ter se precipitado, roída pelo uso, condenada para sempre à voz impostora de tantos poetas de gabinete? É isso mesmo: aquela profecia prefigurada por Drummond no poema Política Literária parece ter se confirmado. Hoje em dia, quase que só há poetas oficiais. E a poesia acaba refém de uma linguagem protocolar, insensível, oficiosa e burocrática, que mente fingindo se expressar. Quebrar esse cerco significa impor à linguagem um delírio ritualístico, reinventar o mito, construir uma poesia que, como sugeriram os surrealistas, pusesse abaixo a realidade e adentrasse ao mundo dos sonhos.
Cinemitologias concebe em si as duas utopias. Mas ao invés de adentrar o mundo dos sonhos com a licenciosidade que uma certa tradição surrealista acabou criando, Ademir Assunção prefere o caminho mais audacioso: arrebentando as portas do sonho e arruinando para sempre a realidade, que se desespera e perturba diante da ressurreição e da insurreição do mito. Cinemitologias não nos desafia apenas a partilhar de sua linguagem viva e pulsante, de sua liberdade extremada, que é quase um grito de apelo, uma tentativa agônica, e às vezes frustrada, de se fazer ouvir. Antes de tudo, ele exige que, feito o poeta, nós também sejamos capazes de pactuar com sua força essencial, com seu frágil e, ao mesmo tempo violento, centro de gravidade: a vida no mais puro estado de loucura criadora. A loucura de Hörderlin, que foi a mesma loucura que levou Rimbaud às Iluminações e a Uma Temporada no Inferno, que guiou Lautreámont pelas mãos na perdição poética dos Cânticos de Maldoror, que também foi a loucura sensual e cruel de Baudelaire em seu Spleen de Paris.
A loucura que excita a linguagem e a leva a um transe constante, a uma espécie de cio poético, que luta contra o tédio e o vazio que nos toma quando o mundo não passa de uma máquina ilusoriamente perfeita, com suas engrenagens enrustidas e seu caótico funcionamento, e quando nossos gestos se confundem com as repostas programadas dos autômatos que constroem a velha e inestimável ordem social, política e econômica. Os poemas em prosa de Cinemitologias são feitos de ruas impossíveis, de dragões, centauros, serpentes, mulheres perdidas, morcegos com asas de cristal, abandono e revelação. Cada palavra nos permite entrever sua matéria volátil, seu delírio visual, sua rejeição absoluta aos velhos ídolos de barro. A poesia de Cinemitologias e de Dicionário Mínimo nos redime de nossa falta mesma de saídas. É sempre uma experiência gratificante poder encontrar nos limites abissais da criação poética a revelação espantosa de nossa mais plena e absoluta condição, o desafio cifrado, o jogo simbólico que nos obriga nossa própria e inadiável leitura.
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TODOROV, Tzvetan. Gêneros do Discurso. São Paulo: Marins Fontes, 1980.
__________________. Teorias do Símbolo. Campinas: Papirus, 1996.
[1] Parte desse artigo que se refere ao livro de Fernando Fábio Fiorese Furtado, Dicionário Mínimo, foi publicada em 30 de setembro de 2004 no jornal A Tribuna Impressa de Araraquara. Por sua vez, encontra-se, aqui, revisto e ampliado, problematizando uma questão que não poderia ser tratada no espaço exíguo do jornal.
[2] Doutorando em Estudos Literários pela Faculdade de Ciências e Letras da UNESP – Araraquara. Crítico, escritor e poeta. Autor do livro de ensaio A Poesia como Transcendência ou o Mundo Desenraizado de Jorge de Lima: um Olhar sobre Invenção de Orfeu (no prelo), com o qual venceu o concurso de Ensaios Jorge de Lima no Contexto Universal da Poesia 2003. É professor de Teoria da Literatura na Faculdade Santa Rita – FASAR – de Novo Horizonte.
[3] Machado, Arlindo. “Poesia e Tecnologia”. In: Revista da Biblioteca Mário de Andrade. São Paulo, V. 56, janeiro/dezembro de 1998.
[4] Bosi, Alfredo. O Ser e o Tempo da Poesia. São Paulo: Cultrix, 1977, pág. 150.
[5] Paz, Octávio. O Arco e a Lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.